Fortino Mario Alfonso Moreno Reyes. Sabem não? Então, vamos encurtar: Cantinflas. Isso mesmo, aquela metralhadora verbal que encantava o ...

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Fortino Mario Alfonso Moreno Reyes. Sabem não? Então, vamos encurtar: Cantinflas. Isso mesmo, aquela metralhadora verbal que encantava o público do cinema em partes diversas do mundo. O mexicano que saiu da extrema pobreza para a fama quase universal.

Lembrei dele ao me deparar, há pouco, com a informação de que seu nome está dicionarizado. Aparece no Dicionário da Real Academia Española para definir “pessoa que fala, ou atua,

O ano era 1973 e aqui em João Pessoa um comerciante soube que o jovem S.B. estava terminando suas férias e voltaria ao Rio de Janeiro, ond...

O ano era 1973 e aqui em João Pessoa um comerciante soube que o jovem S.B. estava terminando suas férias e voltaria ao Rio de Janeiro, onde residia. O comerciante propôs que ao invés de voltar de avião ele fosse dirigindo uma Kombi que se destinava ao irmão. Tratava-se de uma Kombi daquelas antigas, que apresentava folga na direção e péssimo sistema elétrico (6 amperes), tanto assim que para buzinar ou ligar os faróis era necessário cuspir no dedo e apalpar os fusíveis a cada meia hora. O jovem S. B. gostou de economizar a grana da passagem e convidou o amigo A.G. para acompanhá-lo.

Nasci em João Pessoa em 1949, mas passei os cinco primeiros anos de minha infância em Alagoa Grande, para onde meus pais foram transferido...

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Nasci em João Pessoa em 1949, mas passei os cinco primeiros anos de minha infância em Alagoa Grande, para onde meus pais foram transferidos. Papai, coletor federal; mamãe, professora do grupo escolar e dona da única escola de datilografia da cidade, que, aliás, funcionava no terraço da nossa casa. Portanto, usava o trem João Pessoa—Alagoa Grande—João Pessoa com a mesma freqüência com que usava os bondes da capital.

Nunca mais vi Nadege. Nome pouco comum, não? Pois a conheci, há tempo; morava no final da Rua da República. Foi ela a responsável pela ave...

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Nunca mais vi Nadege. Nome pouco comum, não? Pois a conheci, há tempo; morava no final da Rua da República. Foi ela a responsável pela aventura, digamos oficial ou oficiosa, da erupção de meu primeiro poema.

Erupção mesmo, posto haver um vácuo profundo, uma cratera de criatividade que nunca explorara. Somente lia os augustos anjos versejadores, dentro do paraíso ou parnaso literário dos livros didáticos.

São instantes nem sempre tão fugidios quanto possam parecer. - Tudo bem, seu Luiz?! Vou indo por algum desígnio oculto, talvez pela s...

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São instantes nem sempre tão fugidios quanto possam parecer.

- Tudo bem, seu Luiz?!

Vou indo por algum desígnio oculto, talvez pela sombra mesma que começa a se estender meando a calçada, quando ouço, bem em cima de mim, o “seu Luiz” de trato familiar. Era por Luiz, e não havia de ser de outro modo que vinham os chamados de minha mãe. Luiz é o que ouço de dona Edith há sessenta e um anos, desde que a ela me apresentei, correndo atrás, entrando na marinete onde a mocinha entrou, descendo na esquina onde desceu, e mal entra em casa ouve-me as palmas e o nome entrando afoitos pela janela da rua São Sebastião, na Torre.

Eu ouvi um grito, um ruído de pneus riscando o asfalto, vi uma bola atravessando a estrada. Olhei para um lado assustado, meu espanto se r...

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Eu ouvi um grito, um ruído de pneus riscando o asfalto, vi uma bola atravessando a estrada. Olhei para um lado assustado, meu espanto se refletiu no espelho, mais assustado do que eu era o rosto de um menino que, poucos metros dali, mirava para debaixo do carro.

Aconteceu perto de casa, essa semana, quando eu voltava de viagem. Eu vinha desligado, pensando no mundo frenético, grande e fascinante que é lá fora.

Já contei mil vezes como conheci Dom José Maria Pires ( 1919-2017 ), o arcebispo da Paraíba de 1965 a 1995, mas – como o tema exige - lá ...

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Já contei mil vezes como conheci Dom José Maria Pires ( 1919-2017 ), o arcebispo da Paraíba de 1965 a 1995, mas – como o tema exige - lá vem a milésima primeira:

por volta de 73, 74, apresentei aos donos do circo cultural - circo, mesmo, destinado a concertos, teatro, cursos, etc - que havia próximo ao final da Ruy Carneiro - e que eram o maestro Pedro Santos, o escritor Adalberto Barreto e o produtor Eduardo Stuckert - um texto teatral em que os quatro hipotéticos evangelistas (ante um mundo sem líderes, mas em que havia a espera messiânica dos judeus), criavam Cristo, assimilando o melhor do pensamento platônico, que dominava os intelectuais de todo o Império Romano.

Para o cinéfilo poder voltar às salas de cinema após mais de dois anos de confinamento é uma experiência de júbilo e contentamento. E esse...

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Para o cinéfilo poder voltar às salas de cinema após mais de dois anos de confinamento é uma experiência de júbilo e contentamento. E esse retorno é um duplo prazer quando se trata de assistir à adaptação de um maravilhoso clássico da literatura para o formato audiovisual.

A transmutação das “Ilusões Perdidas” (Honoré de Balzac, 1843) para as telas (em 2021) é uma experiência que deu certo porque respeita o texto original e dialoga bem com o imaginário das gerações informadas pelos audiovisuais. Entretanto, o seu grande mérito – para o melhor e para o pior — reside na sintonia com o espírito do tempo do sec. XXI, em que a vida

A morte é um acontecimento existencial! Finitude! Essa é uma palavra que minha mãe vinha usando muito nos últimos tempos. Quando fez 8...

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A morte é um acontecimento existencial!

Finitude! Essa é uma palavra que minha mãe vinha usando muito nos últimos tempos. Quando fez 89 anos, sentindo-se indisposta, ouviu do médico, do alto do seu poder maior: “A senhora não tem nada. É a finitude!” E ela, bem contrariada com esse diagnóstico devastador, desde então, não parou mais de falar esse mantra.

Venho em contato com a morte desde a despedida do meu pai, há quase três décadas. De lá para cá, muitas perdas de tios, primos, amigos queridos. No caso do meu pai, lidei muito mal. Tinha 39 anos e a minha crise dos

Caminho pelas veredas literárias de Ariano Suassuna como um caçador de esmeraldas, ansioso por descobrir a pedra valiosa, a recolher ao ...

Caminho pelas veredas literárias de Ariano Suassuna como um caçador de esmeraldas, ansioso por descobrir a pedra valiosa, a recolher ao bornal preciosidades das artes por ele lapidadas no reino onde é soberaníssimo. A produção literária dele é mina e fonte de água cristalina que sacia a sede de nossa alma.

Quem bebe no manancial de seus livros será enriquecido e alimentado pela sabedoria de personagens que brotam da terra castigada pelo Sol. Tudo é fonte de inspiração, terra iluminada pelas malacachetas.

O ser humano tem dificuldade de pensar ou agir por conta própria. Necessita de quem o oriente, sugira um roteiro segu...

O ser humano tem dificuldade de pensar ou agir por conta própria. Necessita de quem o oriente, sugira um roteiro seguro nos descaminhos da vida. Essa característica da nossa espécie é que propicia o aparecimento de orientadores espirituais ou guias de comportamento.

Não falta quem se aproveite do nosso natural desamparo para nos vender fórmulas ou manuais de conduta, nos quais estaria a chave para a conquista da felicidade. Só que esse caminho não existe fora de nós; deve ser construído por cada um. Nenhum guru conhece das pessoas o que elas intimamente são, por isso não pode apontar a ninguém o caminho que as faça felizes.

Fiquei em dúvida se escrevia ou não este texto. Às vezes acontece isso comigo. Alguns temas são delicados ou ambíguos, potencialmente cap...

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Fiquei em dúvida se escrevia ou não este texto. Às vezes acontece isso comigo. Alguns temas são delicados ou ambíguos, potencialmente capazes de gerar controvérsias. Fujo deles, tal como fazia um homem sábio, Machado de Assis. Há quem goste de polêmicas, muitos as procuram. Não é o meu caso. Delas, tenho tédio, como Machado, pois aprendi que nunca levam a nada, salvo à radicalização dos pontos de vista em conflito, ou seja, elas pioram muito o que muita vez já era ruim. Discutir futebol, política ou religião? Tô fora. Posso até eventualmente escrever algo relacionado a tais assuntos, mas não com a intenção de polemizar com ninguém. Quem quiser que tenha suas opiniões e seja feliz com elas, se possível for. Mas vamos ao touro que tanta confusão gerou

Ítaca, minha Ítaca, quando as horas se enchem de sombras e um nó se instala na minha garganta, lembro de ti. Nos dias em que as sereias en...

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Ítaca, minha Ítaca, quando as horas se enchem de sombras e um nó se instala na minha garganta, lembro de ti. Nos dias em que as sereias entoam as suas enganadoras cantigas, a tua lembrança é o que me impede de mergulhar no abismo. Meta primordial, Ítaca é a chegada em casa, a volta ao amor mais caro, o olho a contemplar a paisagem quase perdida. É o descanso após a longa jornada de encantos e asperezas.

"Que eu não me esqueça, mas que também não lembre o tempo todo" O primeiro adeus doloroso aconteceu quando deixei a cidade da ...

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"Que eu não me esqueça, mas que também não lembre o tempo todo"

O primeiro adeus doloroso aconteceu quando deixei a cidade da minha infância. Meu pai era um nômade, não aguentava viver muito tempo num mesmo lugar, por isso arranjava trabalhos que lhe permitissem viajar. Eu não acreditava que diria adeus ao grupo escolar que ficava do lado da minha casa, onde Dona Adelaide, a diretora, que morava ali na frente, tocava piano quando estava feliz. E a Maria Cristina, a menina de cachos dourados adotada por ela, uma princesinha, minha primeira paixão, mesmo sem a gente saber o que era aquilo. Por anos guardei nossa foto, num balanço de dois lugares que tinha no jardim da sua casa. Aos meninos da minha rua, cujos rostos desapareceram da minha memória, assim como seus nomes.

Detesto o barulho, todas as formas de barulho, inclusive o onipresente ruído dos equipamentos eletrônicos. Não uso smartphone, ainda conve...

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Detesto o barulho, todas as formas de barulho, inclusive o onipresente ruído dos equipamentos eletrônicos. Não uso smartphone, ainda converso pelo telefone fixo. Smartphone é para quem quer e precisa ser localizado rapidamente ou para quem quer ser o primeiro a saber das coisas. Não é mais o meu caso.

      Como dói essa saudade… Bem sabia que era assim. Mas a falta de costume ou da plena consciência faz a gente indiferente ao raia...

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Como dói essa saudade… Bem sabia que era assim. Mas a falta de costume ou da plena consciência faz a gente indiferente ao raiar do novo dia. Como dói essa saudade… A vontade de apertar, de beijar e de cheirar. Como dói essa saudade que eu tinha esquecido de sentir, de vez em quando,

Foi sempre cheio esse consultório. É o consultório do dr. Azzouz, na rua Augusto dos Anjos. Há de ser mesmo de raiz oriental esse dr. Azzo...

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Foi sempre cheio esse consultório. É o consultório do dr. Azzouz, na rua Augusto dos Anjos. Há de ser mesmo de raiz oriental esse dr. Azzouz, para manter-se fiel ao mesmo lugar onde sua denodada aventura começou e logrou a confiança do “Vá ao dr. Azzouz!” / “Leve ao dr. Azzouz!”

Tomei uma decisão de não me meter em polêmicas, porque, já há algum tempo, as considero, além de infrutíferas, desgastantes. Não sei o que...

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Tomei uma decisão de não me meter em polêmicas, porque, já há algum tempo, as considero, além de infrutíferas, desgastantes. Não sei o que é pior para o nosso espírito. Decidi, no entanto, escrever, mais uma vez, sobre o mais recente livro de Solha, 1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite, não para polemizar, mas para discorrer um pouco sobre o seu livro ser ou não um livro hermético.

O sentimento religioso provavelmente surgiu nos tempos primitivos da humanidade, a princípio baseado no medo do desconhecido: o medo da no...

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O sentimento religioso provavelmente surgiu nos tempos primitivos da humanidade, a princípio baseado no medo do desconhecido: o medo da noite com os sons que não sabiam explicar, o medo causado pela perda de seus entes queridos, associado à falta de explicação para todos os fenômenos que não conseguia explicar: o trovão; o raio matando pessoas e outros seres; e todos os outros fenômenos da natureza.

Transcorria julho de 1984 quando a leitura de um artigo do amigo Hélio Zenaide me fazia cair o queixo. Então Secretário de Comunicação da ...

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Transcorria julho de 1984 quando a leitura de um artigo do amigo Hélio Zenaide me fazia cair o queixo. Então Secretário de Comunicação da Prefeitura de João Pessoa, Helinho escrevera n'A União, o jornal pertencente ao Governo da Paraíba, sobre a visita de entidades extraterrenas a um grupo de moradores de Sousa, a mais de 470 quilômetros de João Pessoa.

Artigo do próprio punho, na página de opinião do Jornal, a fim de que não restasse dúvida quanto à história e sua autoria. Mesmo assim, liguei em busca da confirmação daquilo que eu acabava de ler.

Embora muitos considerem o concretismo uma retomada do espírito vanguardista de 22, o fato é qu...

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Embora muitos considerem o concretismo uma retomada do espírito vanguardista de 22, o fato é que esse movimento articulou uma linguagem tão desprovida de humor quanto a de 45, consistindo, pelo menos nesse aspecto, numa vertente desta última. Daí ter-se distanciado do modernismo, o que não ocorreu com Mario Quintana, cuja verve irônica e humorística aproxima-o do Manuel Bandeira de Libertinagem, apenas com uma diferença: no poeta pernambucano, a incorporação do humor é decorrência de uma estratégia intelectual que visa a neutralizar o “gosto cabotino da tristeza” do eu lírico para reajustá-lo ao “mundo dos sãos”. Já no poeta gaúcho, o humor é um componente orgânico, visceral, mas nem por isso menos eficaz no sentido de evitar os excessos de um temperamento regido muito mais pelo sentimento do que pela razão, conforme ele mesmo o diz em Acontece que, do livro Caderno H:

Na origem, um galo muito metido a besta achava que o sol só nascia porque ele cantava. Toda madrugada ele cacarejava e só depois o sol nas...

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Na origem, um galo muito metido a besta achava que o sol só nascia porque ele cantava. Toda madrugada ele cacarejava e só depois o sol nascia. Até que um dia ele dormiu demais e quando acordou o sol já havia nascido.

Aqui na Paraíba eu já conheci uns quantos “galos” de Chantecler.

O andar arrastado, de pés sem cavas, levantava uma poeira fina que ia tornando fantasmagórica a imagem do velho homem, ante a reverberação...

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O andar arrastado, de pés sem cavas, levantava uma poeira fina que ia tornando fantasmagórica a imagem do velho homem, ante a reverberação ótica do pino do meio-dia. No verão, a estrada por sobre a parede da barragem, repisada por bichos e gentes, costumava soltar aquele pó amarelado, quase místico, que recobria a todos, com a sem-cerimônia de um manto real.

As cabaças, abastecidas no porão da represa com algumas dezenas de preciosos litros d’água, penduradas no pau de aroeira roliço, atravessado no trapézio nu, retesado e caloso, balouçavam obedientes à cadência marcial das passadas,
ressumando gotículas prateadas de uma chuva inútil, que evaporava ao rés do chão.

Na cintura, um retraço de cordame segurando os calções de um madapolão mole, furta-cor de tão gasto, fazia barreira ao suor que lavava, abundante, o torso habituado aos grandes esforços. Ainda que sem um grama sequer nas costas, ninguém alcançaria a marcha forçada daquele conjunto de pesos e contrapesos, equilibrado como uma equação newtoniana, flutuando em meio à quentura que emanava de toda parte, a quentura sólida do semiárido. O embornal de couro de boi, presente de Padrinho, com a cinta larga atravessando, desde o ombro esquerdo, todo o tórax, até à cintura, completava os paramentos.

Um pouco mais atrás, num trote ritmado, o cachorro vira-lata pedrês, miúdo e arrepiado, arquejante, acompanhava os passos do dono com desinteressada atenção. Conhecia cada seixo, cada lagartixa, cada pardal daquele caminho de roça. As nuances aromáticas das suas urinadas frenéticas voluteavam em ondas familiares, demarcando o território e imprimindo ao trajeto toda a segurança de que o grupo necessitava. Não havia o menor sinal de perigo.

Meio sentado numa pedra, desafiando a gravidade no trecho em que a parede do balde mais se inclinava em direção à linha d’água, o menino alourado de pele tostada e cabelos espessos assistia àquele cortejo, com os olhos brilhantes, mastigando um talo do capim-santo que, cintilante, atapetava a encosta íngreme.

Logo que os olhares se cruzaram, os dentes do homem, de uma brancura polar, emergiram num largo e genuíno sorriso, como se um copo de água fresca se lhe apresentasse alguns metros adiante. O cão, farejando o ar e agitando a cauda descarnada, apressou o passo, dando pequenos rodeios, levantando mais corpúsculos da terra cor de ouro. A procissão chegara ao auge nesse encontro e o menino, ágil que nem filhote de jaguatirica, levantou-se de um pulo e correu para a tropa, mirando o embornal.

— Trouxeste para a gente o quê?

O homem parou lentamente, deu um longo suspiro e, dobrando os joelhos com o corpo ereto, descarregou no chão os recipientes, pousando sobre estes, cuidadosamente, a trave de madeira:
o carregamento era por demais valioso.

— Eu já disse que essa encosta escorrega e quando vosmecê cuidar... tchibum! Está nadando com as piabas! – disse, rindo ainda mais e entregando o embornal ao menino, enquanto o cachorro, excitado, soltava breves latidos esganiçados.

O menino desenlaçou, ávido, a presilha e vasculhou o conteúdo do bisaco com o rosto quase enfiado na abertura, sorvendo o cheiro de couro curtido. Retirou de lá um embrulho quadrado, coberto com folha de bananeira atada com sisal, e outro maior, irregular, cujo conteúdo achava-se enrolado num pano fino, manchado. Um odre de pelica, fechado por uma rolha, continha a água de beber.

— Rolinha assada ou nambu? Será uma costela ou um pernil? Fala logo! — perguntou o menino, sem abrir os invólucros, mas com a saliva escorrendo das comissuras dos lábios.

— Vamos comer, seu cabrito guloso, é melhor do que adivinhar! — Respondeu o homem com ternura, recolocando a trave de madeira nos ombros e amarrando as cabaças nos cipós.

Seguido pelo cão, descendo a parede no ângulo oposto à lâmina do açude, com juvenil habilidade a despeito dos compridos anos de vida rural, o homem tomou o sentido de um umbuzeiro centenário,
sob cuja copa, tão desgrenhada quanto frondosa, dormitava um bando de patos de penugem preta e branca, com os bicos chatos enfiados nas asas.

Na sombra fresca e acolhedora, a matilha acomodada se preparou para a refeição: o homem passou as mãos, à guisa de limpeza, pelo solo do espaço preferido, bem sombreado, e sentou-se com os membros inferiores recolhidos de um só lado do corpo, parecendo absolutamente relaxado. O menino, impaciente, abancou-se também, cruzando as pernas sob si. E o animal, depois de enxotar os patos com canina autoridade, deitou-se ao redor, como que fechando o círculo, cônscio da importância da sua presença naquele convescote.

Depois de breve ablução das mãos e rostos com a água retirada do odre, o primeiro pacote foi ritualisticamente aberto sobre o relvado, mostrando uma rapadura média, cor de argila, cujo cheiro marcante, agridoce, do melaço que lhe originara acendeu as narinas dos comensais, fazendo o menino arregalar os olhos e o cachorro esticar as orelhas. Como se não bastasse, torresmos de castanha de caju assada sobressaiam aqui e ali da superfície suculenta do petisco de cana-de-açúcar.

Sem tocar na rapadura, o homem desenrolou cautelosamente o segundo embrulho, como quem manuseia uma preciosidade. Para decepção do menino, revelou-se uma pasta disforme esverdeada, da qual minava um líquido amarelo. A repulsa fê-lo recuar, arrastando-se para trás sobre os joelhos dobrados.

— Que é isso?

— É uma coisa que eu preparei para vosmecê comer hoje, antes da rapadura — respondeu o homem com os olhos bem fixos nos do menino.

— Como lá essa coisa de jeito nenhum! — zangou-se o menino, já fazendo menção de levantar-se.

— Ouça-me — retrucou gentilmente o homem - Está na hora de vosmecê aprender que os animais de Deus são nossos irmãos e que existem outras maneiras de matar a fome sem precisar deitar rês nem criação. Matute aí vosmecê o que os bichinhos sentem quando a marreta avoa no toutiço deles, derribando-os sem dó nem piedade. Ou quando a pedra de funda abre a cabecinha da codorniz, quebra a asa da arribaçã... E ainda o peixinho endoidecendo pelo ar, com o anzol espetado no céu da boca?

Fez-se silêncio e um bem-te-vi voejou por sobre o trio, pousando alguns metros adiante, numa galha abaixada da árvore. Pouco mais, seu par fez o mesmo percurso, e ambos, em plateia, quedaram-se a assistir a conversa. Os patos retornaram em fila indiana, acomodando-se perto do tronco e longe do cachorro. Uma vaca mugiu alto no horizonte, decerto exortando sua cria. O sol atingira o zênite e o dossel do generoso vegetal ofertava abrigo a todas as criaturas, livrando-as da inclemência do astro-rei no seu clímax. O homem prosseguiu.

— Esperei com paciência vosmecê sair do mimo e ficar mais taludo para lhe dizer isto: não se come carne de bicho vivo nenhum. Os ovinhos e o leite, desde que não careça do sacrifício ao ente e à ninhada, pode ser; tem a hora de recolhê-los sem prejuízo. Mas matar para comer? Não se pode... Não nos é permitido... — e meneou a cabeça, com uma manifestação pia nos olhos cansados.

— Agora, queria que vosmecê sossegasse e provasse o que eu preparei, receita velha da minha terra, para depois assuntar por vosmecê mesmo — continuou. — Se vosmecê não gostar do preparado, não lhe aporrinho mais. Fui eu mesmo que fiz, com esse instrumento aqui — a abriu as mãos em leque para o menino.

Contrariando os sentidos e mercê do afeto e da confiança que nutria pelo homem, o menino juntou os dedos indicador e médio, raspou a pasta, levando-a imediatamente à boca.

E, na medida em que mastigava, a careta de asco ainda renitente foi se transmudando numa expressão deslumbrada de quem prova o maná numa manhã orvalhada. Acabara de descobrir o segredo do velho homem: o respeito ancestral pela vida!

Eu criaria um Céu se nele coubessem as minhas asas, Mas os sonhos dos homens que recolho, que abraço, precisam de um mundo que se ...

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Eu criaria um Céu se nele coubessem as minhas asas, Mas os sonhos dos homens que recolho, que abraço, precisam de um mundo que se expande aos limites do descabido Por isso a queda no inominável da ausência, a frustração de me vender ao vento, de tombar perante o branco da página, do não escrito,