Decisão tomada, consultei os classificados do “Jornal do Brasil”, onde me deparei com um anúncio: “Sílvia Lamounier – rejuvenescimento vocal”. Era mais do que eu desejava: não apenas empostar, arranjar direito as sílabas, controlar a emissão da voz, mas também rejuvenescê-la. A professora morava numa transversal da Av. Nossa Senhora de Copacabana. Tive que ir de ônibus até lá, pois a linha de metrô que liga o Flamengo a Copacabana ainda estava em construção.
Além de quase médico, fui também quase cantor. Para entender como isto se deu é preciso remontar ao início da década de 1980, quando fiz o...
Quase cantor
Decisão tomada, consultei os classificados do “Jornal do Brasil”, onde me deparei com um anúncio: “Sílvia Lamounier – rejuvenescimento vocal”. Era mais do que eu desejava: não apenas empostar, arranjar direito as sílabas, controlar a emissão da voz, mas também rejuvenescê-la. A professora morava numa transversal da Av. Nossa Senhora de Copacabana. Tive que ir de ônibus até lá, pois a linha de metrô que liga o Flamengo a Copacabana ainda estava em construção.
Antes de concluir a leitura, já me senti tonto. Parece um livreco de 80 páginas, mas é um pequeno ATLAS do Mundo. Eu já havia escrito na...
W.J. Solha, um homem vitruviano
Eu já havia escrito na apresentação do catálogo O CLAUSTRO (de Flávio Tavares) que Solha é um vitruviano, o homem de Vitrúvio, o homem dos sete instrumentos. Entende de tudo: Filosofia, Literatura, História, Mitologia, Teatro, Cinema... tem uma erudição extrema. Difícil de assimilá-lo numa primeira mirada.
Existem profissionais que de tão dedicados ao ofício terminam se confundindo com ele. São pessoas que se entregam ao que fazem de maneira ...
Fernando Teixeira: uma vida em cena
Lamento meu pai sorriu à sombra da goiabeira nada de rugas na face apenas a névoa de um tempo escondido pela sombra das horas. ...
À sombra da goiabeira
meu pai sorriu à sombra da goiabeira nada de rugas na face apenas a névoa de um tempo escondido pela sombra das horas.
como azeite para o palestino : correria solta de menino pés no chão, barro batido por trás da casa, o açude banhando mãe, banhando filho, banhando primos tudo nu, sem malícia e nem milícia
Um livro de crônicas é um reencontro. Do escritor com seus textos acumulados pelo tempo. Do público com o cronista, agora em outra dimensã...
O cotidiano transfigurado pela perspectiva lírica
Provavelmente a seleção rigorosa do autor não possibilitará a cada leitor em particular o reconhecimento de sua crônica preferida. Aquela que, recortada com emoção e guardada há tanto tempo, ameaça desfazer-se em pó.
Como não relembrar aqui Juarez, o helênico, que foi preciso transcrever, a fim de que restasse preservada a continuidade da leitura?
Nenhum prefácio, por mais elucidativo, alcançará o poder de persuasão do recorte amarelado, até perdido entre outros papéis, mas que a memória identifica prontamente no arquivo de suas emoções. Um livro de crônicas tem essa peculiaridade. A extensão de inumeráveis páginas dispersas. Folhas volantes que se anteciparam em mistérios de anunciação.
É escassa e relativamente recente a reflexão teórico-crítica sobre este "pós-gênero literário, flexível e integrador, narrativa estruturalmente aberta" capaz de estabelecer-se como ponte entre a função da paraliteratura e a natureza da literatura. A iniciativa pioneira vem do professor Eduardo Portella, alertando para a necessidade de enfatizar a importância da crônica na moderna literatura brasileira. Segundo ele, isto significa valorizar "um esforço ponderável de configuração de um discurso poético qualificado".
O ajustamento da crônica à trama existencial complexa da sociedade de massa precisa ser examinado à distância do preconceito elitizante, onde tem origem a presunção de uma ordem hierárquica entre as espécies e formas literárias. Privilegiando-se agora o romance, como em outras épocas parecia indiscutível a superioridade do poema épico sobre o lírico, da tragédia sobre a comédia. O julgamento e o prestígio dos gêneros determinados pelo contexto. Incidindo, assim, sobre as obras literárias, o mesmo modelo de separação e distanciamento que impera entre as classes sociais.
Minimizar o valor da crônica é ainda uma atitude comum, quando o argumento para sua configuração como discurso poético qualificado é o mesmo que servirá para qualquer gênero literário. "A crônica é literatura toda vez que o cronista se resolve em nível da linguagem".
Mas é rara a caracterização de um escritor, exclusivamente através da crônica. E não se trata apenas de uma dificuldade da crítica. Também os cronistas acentuam essa tendência. Ou porque quase todos se dedicam simultaneamente a outras formas literárias, ou porque deixam sempre transparecer que o exercício aprimorado deste "gênero não canonizado" é mais exercício que opção.
Trata-se de uma visão cultural tão arraigada que, mesmo o professor Jorge de Sá, a quem se deve até agora o estudo mais sistematizado sobre a crônica (o primeiro livro inteiramente dedicado ao gênero), enfoca Rubem Braga nesta perspectiva: "corajosamente ele só tem publicado crônicas". E completa: "Certamente capaz de escrever contos, novelas e romances, não se deixou seduzir pelo brilho dos chamados gêneros nobres".
É fácil constatar como a literariedade não se inclui nestes parâmetros de julgamento da crônica. São outros os critérios que sustentam a insistente hierarquização dos gêneros. Critérios que deixam sem resposta convincente questões fundamentais:
Por que um romance seria necessariamente superior a um livro de crônicas?
Por que, em geral, não se estabelece esta mesma relação entre um romance e um livro de poemas?
Qual seria o superior, na comparação entre um livro de poemas e um livro de crônicas?
Nem Rubem Braga pôde fugir à realidade do confronto entre as duas espécies narrativas. Na sua visão poética,
É irretocável o comentário do especialista. No entanto a pluralidade da metáfora permite a ousadia de outra leitura.
Sem opor à transitoriedade qualquer resistência. Mas compreendendo a tenda como o abrigo possível, o mais próximo desta desadorada avalanche humana que se caracteriza como sociedade de massa. Na pressa de não chegar. Na estridência de não ouvir. Na violência de não viver. No automatismo de não ser.
A crônica é o "domicílio em trânsito" desses "passageiros da agonia urbana". Trincheira de resistência da palavra poética que reordena o caos e reinventa o homem.
Para um reencontro com A Dama da Tarde (livro de crônicas de Luiz Augusto Crispim) na sutileza de sua imprevisibilidade, recorri ao caminho mais longo. Do gênero para a obra realizada. Do elogio da crônica para o concerto destas rapsódias em azul, À sombra dos ipês em flor, onde o acento lírico de tom nitidamente proustiano atualiza o encanto daquela Última Página que foi para mim o princípio o verbo. E agora se confunde em justaposição com a "saudade da menina descalça que descia a ladeira de Tambiá no destino da Bica, rumo incerto de eternas férias que não voltam jamais".
Acompanhando pela vida inteira a produção intelectual de Luiz Augusto, escrevi avaliações analíticas sobre sua vocação de escritor, firmada essencialmente na crônica. Sobre os temas que se multiplicam como as possibilidades infinitas de percepção ou de imaginação do real. Sobre a excelência da visão crítica que se exprime através do humor habilmente construído. Sobre os recursos de elaboração de uma prosa poética em que o tecido do texto revela o escritor de muitas leituras, dominando inteiramente os processos e efeitos de sua construção.
São afirmações críticas que se reiteram, indicando pontos cardeais deste universo lírico reunido aqui sob critério antológico. Não é um livro extenso. Um pouco mais de cinquenta títulos. Mas de temas tão variados, com enfoques tão específicos e tratamento tão diversificado que fica difícil inventariar.
Estados de espírito materializados em substância poética. Destinos devastados, prodígios de sobrevivência sacralizados na perenidade das imagens. O cotidiano transfigurado pela perspectiva lírica. A violência mil vezes contestada. O riso que castiga os costumes. A doce melodia dos afetos. "a grande dor das coisas que passaram". A saudade que se inscreve desde o título como forma poética de resistência aos "novos tempos que dispensam testemunhas". Tempos caracterizados na linguagem metafórica do cronista pelas "feições do asfalto maquilado sobre as ruas da inocência perdida" ou pelo "concreto que se projeta para o alto como blasfêmias de cimento e ferro atiradas contra os céus". Tempo que se confunde com a ideologia desenvolvimentista e impõe aos homens o equívoco de que é preciso "extrair o nervo do humanismo, aplicar-lhes uma boa dose de indiferença e, sobretudo, abandonar de uma vez por todas a memória".
É este o cronista, recuperando o sentido dos valores essenciais. O sentido original comunitário. Nesta resistência da palavra que destroça a prepotência burocrática com a ironia de Quem sou eu? Que recupera o amor no ritmo do diálogo de Montanha Russa. Que faz sobreviver o homem em Um sonho de Natal ou em O menino e o sonho.
O cronista em sua fase azul, entre o céu e o mar. Azul de alma de menina, de pássaro, de rapsódia. Azul de manhã flutuando ao vento, de olhos profundos, de palidez. Azul de historietas de porcelana. "Azuis na vida desta pobre gente de tão acinzentado viver".
O cronista, como o poeta, removendo as cinzas, despertando a brasa, sacudindo os homens do seu torpor.
Vi Caetano cantando langorosamente, em 74, que: “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa, quando começa a pensa...
Quando o 'quase' é um 'enorme detalhe'
Impressionou-me a beleza que de repente eu via na letra de uma canção que passara a infância (final dos anos 40, começo dos 50) ouvindo, mas executada aceleradamente por seu Zé Salles, meu vizinho mineiro, lá em Sorocaba, acompanhado, na rede, pela própria viola, à maneira – evidentemente – da “Felicidade” de Lupicínio Rodrigues, na gravação do Quitandinha Serenaders, 1947.
Você seria capaz de repetir esses três nomes agora? Não, mas é claro que conhece — e muito — o de Galileu Galilei que, dois anos depois, pegou o fabuloso instrumento e revolucionou a ciência... virando-o para o céu! Só isso? Bem, ele deu uma guaribada no bregueço... e bolou mais outros babados, deixando a trinca holandesa mais ou menos como o cientista da anedota ao dizer numa entrevista, revoltado: “Quem inventou o limpador de para-brisa fui eu. O americano só fez botá-lo do lado de fora!”
Copérnico já falava em heliocentrismo, mas escondera a conclusão com medo da Igreja, enquanto o mesmo Galileu do telescópio – apesar de medo igual - PROVOU (ao descobrir, com esse bendito aparelho, quatro luas em Júpiter) que a Terra não é o centro do universo.
Como se explica, então, toda a fama do filósofo francês pela frase “Penso, logo existo?” É o mesmo problema de Feininger e seu quadrinho, que Lichtenstein ampliou.
Bertrand Russell:
Como escapamos de tanto desvio de informação?
“No mundo civilizado tende-se a pensar que há recursos como o psicólogo para arrumar as coisas. O que este livro diz é que nada se arruma...
Laços & Separações
Domenico Starnone
A foto ilustra a publicação de discurso de Samuel Duarte no número 12 de Paraíba Cultura, revista anual editada para documentar as “Noit...
Escapando de uma foto de província
A foto é do início dos anos 1940, com Samuel Duarte na Secretaria do Interior e Justiça, àquele tempo o cargo mais importante na hierarquia do Estado, logo depois do governador. O Secretário do Interior respondia pelo governador em suas ausências.
Nela reconhecemos, além do secretário Samuel, o professor Emanuel de Miranda Henriques (que está de roupa escura à direita), que viria se destacar como diretor do Liceu no governo José Américo; e José Simeão Leal, (de gravata borboleta) diretor de divisão da secretaria, a Divisão de Serviço Público, cargo que exerceu até 1944. Concentra-se nele, em Simeão, a razão deste registro.
Qual o destino de Aglaia Negromonte? Desdobramento? Fuga da realidade? Delírio? Fênix renascida, vitoriosa sobre os seus medos e suas perd...
Uma corda estendida sobre um precipício
Uma pessoa me aborda na calçadinha da orla com uma conversa que me causou surpresa. Ela diz que fui o primeiro comunicador a fazer debate ...
O piscinão de Ramos
A seguinte frase atribuída admirável poetisa e contista goiana, Cora Coralina - pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (1889-...
A coragem da decisão
Sucessivas gerações lembram com saudade, certamente, dos antigos cinejornais, sobretudo do mais famoso deles, o icônico Canal 100, “o maio...
Quando o futebol ia ao cinema
Para os que não sabem, aquilo que ia, semanalmente, aos cinemas do Brasil era muito mais do que a cobertura dos campeonatos e jogos amistosos. Conta-se que de 1959 até 1986, com um cinejornal por semana, o Canal 100, criação de Carlos Niemeyer com ajuda de Jean Manzon, difundiu 70 mil minutos de imagens sobre os principais acontecimentos jornalísticos de sua época.
Vida e morte são o continuar dos passos o ir e vir para não se sabe onde. A única diferença é que, no fim, não se poderá mais...
O ir e vir para não se sabe onde
Meu colega escritor Ariano Suassuna e eu sempre tivemos uma atração muito especial por doidos e mentirosos. Vejam só como a mentira está ...
A mentira e o mentiroso
Vejam só como a mentira está no nosso dia a dia. Vocês acreditam que nós, humanos, viemos do macaco, não é? Mentira. Na verdade, nós temos um ancestral comum que viveu na África há mais de 6 milhões de anos. Temos 90% de compatibilidade de genes com os macacos, mas não evoluímos deles, taok? Podem ler a teoria da evolução de frente pra trás e de baixo pra cima que não irão encontrar uma linha afirmando o contrário.
Em 2014, o suicídio de Philip Seymour Hoffman e de Robbin Williams — atores de quem eu gostava muito, principalmente o primeiro —, confirm...
A mais terrível das Artes
Nem todos entendem florinês. Dialogar com as flores viventes em plurais recantos onde elas habitam, pequeninos jarros, entre rachões de mu...
Diálogo com as flores, um eterno aprendizado
Minha tia Nininha sublimava a solteira, fazendo brotar o instinto materno nas florinhas e plantas que sua mão tocava. Parecia fada com vara de condão: plantou, pegou. Enchia ela de multicolores variações áridas áreas esturricadas: terras despidas, virginais, onde um sapo ou invasoras formigas se estabeleciam. Sobre elas despejava os fios d’água saídas pelos orifícios miúdos dos regadores. As flores sorriam alegres, criavam alma nova. Ou existe alguém duvidando da alma de flores? A fragrância delas é transcendente. As flores são vivas saídas de um suspiro de Deus sobre a Criação infinitamente derramada. Quem olhar com o espírito aberto à harmonia, certamente confundirá estrelas com flores prateadas pisca-piscantes.
I A cor amarela tem cheiro de infância. Luz, vida, inocência. Antes de me estabelecer na vida adulta, pensava que essa cor viesse do ...
Rupturas e frações do tempo de maturação das ideias
A cidade de Serraria precisa homenagear a professora, poetisa e médica Eudésia Vieira, paraibana que se dedicou à emancipação feminina e ...
Eudésia Vieira, 40 anos depois
Há cem anos, na sua juventude, em nossa cidade, atuou junto aos necessitados do saber, como professora. Revelando-se, no seu tempo, uma mulher comprometida com as causas sociais.
O 4 de novembro, afinal, está sendo levado em conta. Não como feriado vinculado à data herdada do registro histórico de assentamento da p...
Para ver de perto
Desde a infância que o tinha como um deus, como os gregos. Mas esse era genuinamente brasileiro, mineiro de Boa Esperança, que nome bonito...
Nelson Freire, adoravelmente simples
O piano sempre me exerceu mágico fascínio. Quando brincava de esconde-esconde, lá pela dezena de anos, eu sumia da vista dos primos ao escutar, de longe, minha tia Iracema tocar. Um esconderijo óbvio, do qual todos já suspeitavam. E ali me punha em transe, mudo, estático, observando os dedos a deslizar pelas teclas daquela enorme e sinuosa caixa preta de onde saía sonoridade tão sublime.
Depois inventei de estudar Música, matriculei-me no Conservatório Paraibano onde vivi doces anos da pré-adolescência. Desta época trago na boa memória professores como Maurício e Sirena Gurgel, Iraci Menezes, Ísis Marinho, Catarina Abreu, Julinha Nóbrega, Gerardo Parente, Elza Cunha, Isabel Burity, e dos tantos colegas irmanados pela energia musical. Em especial, João Bosco Padilha, de quem me tornei amigo.
Para todos estes e quem mais apreciava música à época na Paraíba, Nelson Freire era um deus. Mesmo considerando pianistas igualmente talentosos como Antônio Guedes Barbosa, Jacques Klein, João Carlos Martins, Cristina Ortiz, Arthur Moreira Lima, o prodigioso mineiro que encantou o Brasil e o mundo, era especial em tudo.
Para minha tia e madrinha, Iracema Romero de Andrade, nem se fala. Admirava Nelson como quem contempla uma estrela no céu. Tinha todos os discos dele, escutava-os frequentemente e em sua singularíssima interpretação se inspirava. A partir de então, passei a conhecer melhor Nelson, admirando-o cada vez mais, à medida que o descobria na música concebida como poucos.
Não lembro qual foi a primeira vez que o vi, mas foi aqui em João Pessoa, cidade que sempre o cativou pela beleza histórica, praias bonitas e sobretudo pelo seleto e diferenciado público de música erudita. Assim, Nelson nos dava ocasionalmente o prazer de memoráveis recitais e concertos.
Na gestão do governador Tarcísio Burity, pontuada pelo tratamento ímpar dado à cultura, Nelson se fez mais presente. Foi a época dos Festivais Internacionais de Música, em que a Orquestra Sinfônica da Paraíba se destacou entre as melhores do país, senão a melhor, como confessou pessoalmente o maestro Eleazar de Carvalho em entrevista a Jô Soares, na TV Globo. E chegamos a ter o grande regente como titular de nossa Sinfônica. Tempos áureos!
Até masterclasses de piano com Nelson Freire a Paraíba teve, patrocinadas pela administração de Tarcísio Burity, um grande apaixonado por Música. Foi exatamente numa dessas aulas que conheci Nelson mais de perto, junto com João Bosco Padilha e Hermano Assis. A empatia foi instantânea. Parece que ele havia captado em nós aquela admiração dos tempos de infância.
Certa vez, após um dos concertos no cine-teatro Banguê, o convidamos para um jantar, com o maestro Eleazar de Carvalho, a cantora lírica Maria Lúcia Godoy, e o crítico de música do jornal Le Monde, Alain Lompech, em nossa casa. Foi uma noite encantadora, inclusive por ter convidado Alaurinda Padilha, irmã de João Bosco, ocasião em que ela e meu pai, Carlos Romero, se enamoraram.
Como foi bom perceber que Nelson se sentiu em casa lá em casa. O que se comprovou posteriormente em outras vezes, menos formais, quando ele passou a vir estudar no nosso piano, preparando-se para os concertos seguintes.
Foi aí que descobrimos o seu lado mais humano, da simplicidade, da espontaneidade, da sensibilidade para as coisas da natureza, as flores, animais e outras poesias. E ele fez de nossa casa local de assídua e prazerosa convivência, fortalecendo a amizade e a admiração. Surpreendia-nos vê-lo preferir ensaiar em nosso piano, um Essenfelder de ¼ de cauda, tendo à disposição todo o aparato do Espaço Cultural, com seus dois novíssimos pianos austríacos de cauda inteira Bösendorfers, recentemente adquiridos pelo governo de Burity. Uma vez, ele nos contou que o governador lhe perguntou por que não estava indo ensaiar nos Bösendorfers? Ao que respondeu: “É porque na casa de Germano eu me esparramo pelo chão, pelo sofá…” E era assim mesmo. Descalço, de bermudas, passeava no jardim, entre uma música e outra, tomava um cafezinho, e se mostrava a pessoa naturalmente simples e amável que sempre foi.
A essa altura sua amizade com meu futuro “tio”, irmão da boadrasta Alaurinda intensificou-se e João Bosco foi convidado para assessorá-lo, indo morar com ele, no Rio de Janeiro. E de lá, acompanhando-o pelo mundo, a cumprir extensa e concorrida agenda de performances e festivais.
Na residência do Alto do Joá, no Rio, tive o prazer de me hospedar e conhecê-lo na intimidade. Ver como ele tratava bem os partícipes de seu mundo, amigos, funcionários, animais. Tímido e reservado, podia até parecer sisudo, mas apenas na suposição, pois era amor em tudo o que fazia, dizia, tocava. Como era bom acordar e escutá-lo ao piano… Aproximava-me calado, sentava-me atrás, magnetizado por sua arte e pela maneira de dizer o que sentia na ponta dos dedos. Numa ocasião ele estava preparando o Concerto nº 2 de Brahms para abrir um Congresso Mundial de Cardiologia no Teatro Municipal. No início do primeiro movimento, após a exposição do tema, ele parou, olhou para mim e indagou: “há algo mais crepuscular do que este começo ?”. Era o mundo que ele via na Música...
Dada a simplicidade de Nelson, ousamos em levá-lo para Baía Formosa (RN), onde dormiu em colchonete de cama de cimento e comeu sardinha frita de Dona Raimunda, trazido por Dona Regina. Assim como para a Ribeira, às margens do rio Sanhauá, do outro lado da Praia de Jacaré, onde cochilou em rede, foi picado pelos mosquitos do mangue, e se deliciou com caranguejo no coco. A casa era de tia Iracema, rústica, simples, e, quando lhe dissemos que o convidaríamos, ela se espantou: “Vocês terão coragem de levar Nelson para a Ribeira?” — “Sim, titia, ele é encantadoramente simples”. E como foi bom!
Posteriormente nos encontramos em oportunidades de viagem, no seu apartamento do Marais, nos teatros que sempre o requisitavam. No Concertgebown de Amsterdam, na Sala Pleyel, na Phillarmonie de Paris, eram sempre noites glorificadas pelo regozijo com sua arte sem limites. Acompanhadas do orgulhoso prazer em ver o brilho de um brasileiro ser comprovado invariavelmente pela calorosa aclamação de entusiasmadas plateias internacionais. Não raro, jornais como o New York Times o apontavam entre os maiores pianistas da atualidade.
Contudo, havíamos de convir que Nelson não mais pertencia apenas ao Brasil. De mãos dadas com os grandes compositores, ele se espargiu pelo planeta levando a divina arte diretamente aos corações emocionados, sem nunca esquecer de incluir, sempre que possível, nossos preciosos autores brasileiros, nas gravações, recitais e concertos em público.
Sob a capacidade de dosar e superpor com maestria os planos sonoros, destacar as vozes e melodias na mais absoluta clareza e com a expressão máxima da Música, o piano de Nelson faz inveja a qualquer orquestra. Tudo o que o compositor pretendeu dizer na partitura, ele consegue captar além, redescobrindo, e, principalmente recriando de maneira ainda mais sublime a essência musical em nova tessitura, burilada com extraordinária sensibilidade. Sabia soar estrondosamente os acordes como uma catedral, tanto quanto fazer cintilar trinados e pingos de luz na sonoridade límpida como a superfície de um lago ao luar. Certamente Debussy gostaria de ter escutado por ele o seu Clair de Lune...
As paisagens sensoriais que Nelson consegue fazer brotar no imaginário do ouvinte, inebriadas da delicadeza com que ele reveste e invoca as melodias são fruto de percepção que só as almas iluminadas possuem. Ao sentir, talvez, que não pudesse mais ser o médium capaz de nos transmiti-las, ele se desencantou do mundo terreno.
Nem sempre há forças que façam do artista um herói maior do que sua arte, do que si próprio. Nem sempre ele encontra outra forma de superar e de se expressar em idioma não mais acessível. É então que a fatalidade se sobrepõe às razões imponderáveis do existir e do não existir. Mesmo porque artistas que se doam de forma tão dedicada e altruísta como Nelson Freire sempre estarão a colher o bem que fizeram, a beleza que semearam, a felicidade que distribuíram, sobretudo nos momentos em que a vida e o mundo nos afligem.
Em sua música, eterna e vibrante, estará imortalizada toda uma vida dedicada à arte, tesouro que o acompanhará para sempre nas esferas espirituais em que ele ouvirá música ainda mais divina do que a melodia que Gluck imaginou Orfeu escutar, ao reencontrar sua amada Eurídice no Hades, e que Nelson transpõe ao piano como ninguém.
A luz que emerge da “Sonata quasi una fantasia”, de Beethoven, estará a brilhar em todas as luas que iluminarem mares e lagos, deste e de outros mundos, onde a música mais doce é a do bem que se deixa no rastro dos caminhos trilhados.
Nelson é luz que se desloca a brilhar em outros céus. Um espírito que colherá o bem que plantou, as emoções que refinou em nós, tornando-nos melhores, elevando-nos os sentimentos, e pelo legado diante do qual a humanidade lhe será eternamente grata.
Obrigado, Nelson!
Se antes já desconfiava, hoje tenho certeza: a cidade de Princesa Isabel, na região dos Cariris Velhos, é a Macondo da Paraíba. Lá, a saga...
Três princesenses
Àquela altura dos acontecimentos, o insurrecto Coronel José Pereira sequer fazia ideia de que estava fornecendo os ingredientes necessários para um livro que viria a ser escrito muitos anos depois: “O Dia dos cachorros” (Editora Bagaço, Recife, 2005),
O maior risco da interpretação é o intérprete ver no texto o que não existe. A essa prática, dá-se o nome de superinterpretação. Superinte...
A nota
Na Paraíba tudo chega atrasado, tudo demora. Enquanto nos outros lugares já estão com as castanhas assadas, aqui ainda estamos tirando o c...
Finalmente, o museu
Alcatraz é rocha isolada em meio às águas geladas da baía de San Francisco. Cercada por ondas de jade, ela surge aos meus olhos com um cor...