Riso e lã, rio e sal, luz e liberdade tramaram com sucesso se refugiar na palavra literária da lavra de Ângela Bezerra de Castro.
Foi lá. Onde a inteligência dá as mãos à técnica e ao sentimento, quando lutas e desafios da criação borbulhavam: aconteceu de a escritora paraibana preencher e expressar a totalidade de sua consciência crítica com a mesma e inexorável verdade do dia ao suceder a noite.
Alí, Ângela extrapolou limites ao extraordinário com a sua obra em progresso.
Lá, ao narrar no refúgio-cosmos dos seus textos sobre o embate psicológico do tipo com a estrutura, ao pensar e desdobrar o regime de sentidos das classes da significação, ela expandiu a vocação da vida ao equilíbrio tumultuário da busca na linguagem por compreender mais a si mesma.
Do tempo sem fim abismado que contempla essa obra coesa no apego a certo jardim metodológico, obra diversa no empreendimento sensível da descoberta, entre o bem e o belo, do mais relevante a destacar no contexto da criação artística, recorto uma janela: vinte anos que se completam em outubro vindouro desde a eleição de Ângela Bezerra de Castro à Academia Paraibana de Letras.
A APL escolho enquanto sítio simbólico para dizer de outro aniversário, também um acontecimento vórtice.
Dizer da emulação sadia da sabedoria do tempo com o subjetivo do ser em riste na aventura do discernimento que acontece no referido outro aniversário, os dez anos desde o lançamento de "Um certo modo de ler".
Nessa coletânea de textos críticos, prefácios, discursos e conferências que não pode faltar à vida do amante das escalas da harmonia, a autora celebra uma aliança, a do prazer da leitura com a substância dos mistérios da realidade em sua plenitude de tempestades e enigmas.
No livro lançado pela Ideia Editora em 2008, a autora realiza, com a maestria de um demiurgo peregrino, a imantação da crítica enquanto metalinguagem em prol das odisseias do dizer-fazer-viver-fruir literário.
Confirma protocolos canônicos do gênero que fundamentam o clássico necessário, rejeita anacronismos de tipos ideativos regressivos que apoucam o ser e elastece o campo do repertório imaginativo e argumentativo da atividade.
A crítica em Ângela produz a recepção interpretativa do texto também enquanto estilística "retorizada" da claridade.
Claridade que se constrói a partir das convicções hermenêuticas da autora inferidas a partir da obra que nos expõe: imanência textual, historicidade, frônese (phronesis, de Aristóteles: práxis moral e racionalidade para definir a consciência da realidade, uma sabedoria prática), uma sociologia da transformação e estetismo li bertário como fundamento da condição humana no trânsito entre símbolos.
Ângela se inscreve na galeria das ótimas ensaístas brasileiras, nomes a exemplo de Moema Selma D'Andrea, Genilda Azeredo, Heloísa Buarque de Holanda, Walnice Nogueira Galvão, Marilena Chaui, Madalena Zaccara, Telê Ancona Lopez, Ana Adelaide Peixoto... e sua produção constitui riquezas em camadas concêntricas que sempre têm a dizer algo novo sobre referenciais que pensávamos totalmente escavados, desnudados, compreendidos.
No caso específico do livro aqui referido, há indicativos de uma magistral biblioteca paraibana de autores por ela escolhidos que tanto orienta nossa leitura no sentido holístico de ganhos artísticos culturais e civilizatórios, quanto se oferece qual aumento para o vislumbre dos micro percursos do nosso fazer artístico. Juarez da Gama Batista, Luiz Augusto Crispim, Osias Gomes, Gonzaga Rodrigues, Hildeberto Barbosa Filho, Augusto dos Anjos... alguns dos autores trabalhados pela autora na perspectiva da renúncia da crítica como processo censório judicativo, mas sim em defesa da crítica como percurso cognitivo e sensorial imaginativo metodologicamente orientado.
Em "Um certo modo de ler", a acadêmica e sempre professora Ângela Bezerra de Castro ao tratar da imortalidade, sob o influxo de menções a Fernando Pessoa, nos remete à invariância da incerteza que a morte nos apresenta, o que vem sem que saibamos quando. Há também a logicidade do humanismo cósmico que a consciência da universalidade da aldeia nos impõe. O cristal prismático da palavra criadora rebrilha o tempo todo na álgebra sutil da crítica da escritora paraibana. Com ela, fomos muito além do melhor.
Do livro "45 poses da palavra" ■ Walter Galvão (*1957 - †2021)
Editora Ideia, 2021Walter Galvão distribuiu alguns exemplares deste livro a alguns amigos e amigas, antes do desenlace. "Isso tem um lado que é bonito demais. Em meio a dor, é possível enxergar toda a poesia por trás do ato. É como se Walter Galvão já soubesse, já sentisse, já aceitasse o fato inescapável de que iria morrer em breve.E, na consciência da morte, do fim definitivo, distribuiu literatura aos seus (Phelipe Caldas)".
A gélida fornalha da depressão revogou a vida do jornalista Heraldo Nóbrega. Nós, seus amigos, ex-colegas de trabalho, vivenciamos a dor de perdê-lo, via suicídio, triplamente.
Fomos atropelados pela persistência desse adoecer que fragiliza nossa substância, dissolve forças, imobiliza; e depreda nossa essência, poluindo vínculos fundamentais da consciência como o impulso atávico à vida que nos mobiliza à continuidade do que somos.
Fomos sufocados pela manifestação dolorosa de um fenômeno cultural, esse adoecimento que se multiplica nos espaços urbanizados como um pólen maléfico. Uma substância, os esporos da depressão, que nos salpica, nos mancha com a tisna do mal-estar do mundo da competitividade alimentado pela ânsia do devir, implacável, dialético, inevitável. Para muitos, estar vivo é um anátema. Uma condenação. Dor sem cura.
Fomos vítimas da supressão de uma vida querida, Heraldo era uma pessoa do bem, alguém que se importava com a positividade das relações sociais e que buscava qualidade à sua volta. Era um adepto da luz. Mas não enxergava a luz que ele próprio irradiava.
Amor fora de sintonia
“A depressão é a imperfeição no amor. Para poder amar, temos que ser capazes de nos desesperarmos ante as perdas, e a depressão é o mecanismo desse desespero. Quando ela chega, destrói o indivíduo e finalmente ofusca sua capacidade de dar ou receber afeição. Ela é a solidão dentro de nós que se torna manifesta e destrói não apenas a conexão com outros, mas também a capacidade de estar em paz consigo mesmo. Embora não previna contra a depressão, o amor é o que tranquiliza a mente e a protege de si mesma”.
O parágrafo acima abre o capítulo 1 do excelente livro “O demônio do meio-dia. Uma anatomia da depressão”, do escritor estadunidense Andrew Solomon, crítico da cultura, consultor para temas de psicologia e um dos mais destacados ativistas LGBT.
A edição que cito é a brasileira (Companhia das Letras, 2014), mas o livro aconteceu nos Estados Unidos em 2001, abalou geral, conquistou prêmios, entre os quais o National Book Award. Também foi indicado ao Pulitzer. É tido como o livro da década nos EUA.
Trata-se de um compêndio indispensável para quem quer saber quase tudo sobre esse fenômeno psíquico, por ele apontado como trepidação na sintonia do amor, mas seguramente um adoecimento mental e espiritual.
Como diria o poeta, é preciso estar atento e forte frente ao avanço avassalador da doença, pois não temos tempo de temê-la. O medo contribui para disparar o processo desestabilizador que é capaz de jogar a vítima no colapso radical que leva ao suicídio.
O problema essencial
“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental de filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São apenas jogos; primeiro é necessário responder. E, se é verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filósofo, para ser estimável, deve dar o exemplo, avalia-se a importância desta resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo”.
O parágrafo acima é a chave com a qual o franco-argelino Albert Camus abre o magistral ensaio “O mito de Sísifo”.
Nessa obra fundadora de uma teoria da vida humana como uma face do absurdo, o jornalista, romancista, dramaturgo, filósofo existencialista, ativista da resistência contra o nazismo na França considera o suicídio, cultivado como ato heroico por muitas culturas, uma atitude conformista diante do absurdo. Para ele, ao suicida cumpre revoltar-se. E não se matar. Camus, uma leitura inadiável.
Uma longa história
“É em 1600 que Shakespeare formula, em Hamlet, com uma simplicidade terrível, a pergunta fundamental: ‘Ser ou não ser? Eis a questão’. É essa pergunta que nos servirá de guia”, informa o historiador francês Georges Minois no início do excelente texto “História do suicídio: a sociedade ocidental diante da morte voluntária”, lançamento recentíssimo da editora da Unesp.
Da antiguidade à atualidade, o autor traça um vasto panorama do fenômeno identificando causas, registrando sua influência na vida dos grupos sociais, como a religião se comporta, como poderemos nos comportar ao contempla-lo, ao ser por ele contemplado. Um guia também indispensável para quem se interessa pelo tema.
É um manual que nos dá posse do fenômeno histórico analisado pioneiramente por Emile Durkheim, filósofo francês tido como o “pai da sociologia”.
Para ele, todo suicídio resulta de causas sociais e se manifesta de três formas: altruísta, como no caso dos homens-bombas; anômica, quando ocorre crise social aguda como no crack da Bolsa de 1929.
Empresários e banqueiros se suicidaram em série; e egoísta, quando o ego se individualiza a tal extremo que não admite mais o convívio em sociedade.
O que nos motiva a servir? O próximo? O enlace moral construído pela consciência da necessidade da vida produtiva em comunidade?
Evoco então “Discurso da servidão voluntária”. Há uma pergunta que não quer calar nesta obra clássica de Étienne de La Boétie lançada em 1571. Queremos servir porque na verdade queremos mandar? A ambição é que nos motiva? Há no filme muitos lances a respeito desse dilema.
Que razões nos impelem ao patriotismo? Seria o patriotismo o último refúgio dos canalhas, como na frase de Samuel Johnson? Ou na verdade o patriotismo é um sentimento elevado originário do amor ao lugar a que pertencemos, lugar qual amamos?
Entre circunstâncias existencialistas está a consciência do livre arbítrio ante situações-limite, a necessidade de escolhas nem sempre satisfatórias, o absurdo e a irracionalidade de inúmeras situações com as quais nos deparamos e as consequências, nem sempre positivas, das nossas decisões.
Na produção social contemporânea, afirma Guy Debord (França, 1931-1994), tudo se pretende uma acumulação do espetacular em que a imagem funciona como instrumento de unificação da forma de ser e estar no mundo competitivo da serialização.
Numa perspectiva mítico-antropológica, temos essa afirmação de Ludwig Feuerbach (Alemanha, 1804-1872), um aluno de Hegel que ensinou um bocado a Karl Marx, referindo-se às formas de elaboração do estatuto do real, e que Debord usou como epígrafe para o primeiro capítulo de sua obra “A sociedade do espetáculo”: “Nosso tempo, sem dúvida...prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser”. Tarantino vê o mundo como coisa de cinema, aparência como essência.
Eles intrometem o nariz onde não são chamados. Sempre. Cheios de razão. Se acham.
Eles são os terraplanistas.
E afirmam convictos em sua fé: a Nasa nos impede de fazer a escalada da verdade. Não deixa a gente escalar a muralha de gelo existente à beira do disco que a grande conspiração diz ser uma esfera.
O disco escondido pela Nasa é o planeta Terra.
Em seu centro, o disco em que estamos abriga o Círculo Ártico. A Antártica é o muro de 45 metros ao redor do disco planetário. A Nasa está sempre atrás do muro, dizem os habitantes da Terra plana. Vigilante. Para manter a mentira esférica.
Os terraplanistas têm outra bronca da Nasa. Falam em “provas concretas de uma farsa chamada conquista da Lua”.
O homem jamais foi até lá. Na Lua ninguém pisou. Nem pisará. Promessa de um terraplanista. Que a fez olhando diretamente nos meus olhos.
Como Picasso atuando sobre a tela a dissolver sentidos clássicos da fisionomia na tradição do retrato, o cantor João Gilberto dissolve e reinventa fundamentos prosódicos da tradição do canto na canção popular ao trabalhar a pronúncia no sentido de entrelaçar desenho melódico, trama harmônica, andamento e prática interpretativa.
Esse novo status do cantar encontrou nas vocalizações de cantores do nível de Caetano Veloso e Roberto Carlos a confirmação dos seus princípios, a exemplo da ausência de ornamentos redundantes, a frase coloquial, a evocação de um lirismo sem sentimentalismos e a espontaneidade na transmissão do sentimento.