O poeta e tradutor Ivo Barroso (1929-2021) me ligou do Rio, a voz ainda bela e clara, pra saber como eu estava. Na conversa, ele - graças a quem eu lera clássicos italianos (como os de Ítalo Svevo e Umberto Eco), franceses (como os de Malraux e Perec), ingleses (como os de Jane Austen), alemães – como os de Herman Hesse – me disse, a propósito de “Demian”, obra desse último, dentro da tradição literária alemã do bildungsroman (“romance de formação”), que se identificara muito com o choque de Sinclair – menino puro dando de cara com as durezas do mundo, ao que respondi “eu também”.
A primeira vinculação que vi entre pintura-e-escultura com a literatura, foi ao ler a "História da Arte", de Sheldon Cheney, tradução de Sérgio Millet, que comprei logo que tive meu primeiro emprego, aos 15 anos. Descobri-a cheia de frases como estas:
Aí,
vem a Sainte-Chapelle de Paris,
angélica, magnífica envergadura,
além das basílicas de San Giovanni in Laterano e de San Paolo Fuori le Mura,
que em comum têm a Lança do Destino, a Sagrada Lança e a Lança de Longino,
cada qual com a celebridade de ter sido aquela com que – sem piedade – o centurião vazou o peito divino.
O amigo jornalista Luiz Carlos de Souza disse-me, certa vez, que se Mozart jamais tivesse existido e viesse à luz agora, criando a mesma música genial que produziu no século XVIII, provocaria o mesmo deslumbramento.
Coisas estranhas. Quando, no Museo Reina Sofia, Madri, 1994, parei ante o Guernica (3,49 m X 7,77 m), fiquei impactado... comigo, pois nem separado da obra do século apenas pelo vidro à prova de balas, me empolguei. Isso, durante bom tempo, me azucrinou. “Por que? Por que? Por que?”
Vez em quando me lembro da depressão de Francisco de Assis ao voltar da Terra Santa, quando deu com sua ordem religiosa burocratizada, dotada de cofres-fortes e já longe do fundamental voto de pobreza que pretendera estabelecer.
Tinha uns cinco anos - 1946, suponho - quando me veio a otite – muita dor nos ouvidos inchados - e o médico da Estrada de Ferro Sorocabana - em que meu pai trabalhava - disse que eu teria de consultar um especialista na capital, pelo que sobrou para meu pai, que teve de faltar ao trabalho e de me levar a São Paulo.
A religião surgiu da necessidade - quando não havia, ainda, suficiente ciência - de se entender o que é o mundo e o que fazemos aqui, mas sempre - infelizmente - foi instrumento do oportunismo de grandes opressores. Sempre.
No facebook, o Carlos Gláucio Sabino de Farias - que foi colega meu de Banco do Brasil - discordou dos lances que eu acabara de postar como absurdos bíblicos. Respondi que discordava dele, mas... tudo bem, disse-lhe, "lutarei até a morte pelo direito que tens de discordar" - como afirmara Voltaire, ... e continuamos amigos.
Em 2009 fui ao Teatro de Santa Isabel, no Recife, ver a estreia da ópera Dulcineia e Trancoso, do Eli-Eri Moura, libreto meu. Um ou dois dias depois, recebi ligação do cineasta Daniel Aragão, de Pernambuco, apresentando-se como diretor de casting do primeiro longa de seu conterrâneo Kleber Mendonça Filho, O Som ao Redor - em fase de pré-produção. Disse que estava filmando a ópera quando, ao me ver subir com o compositor ao palco, para agradecer os aplausos, tivera o estalo: “É o seu Francisco!”
Quando nasci (em 41), o Super-Homem de 38 ) e o Capitão Márvel (39) tinham acabado de ser criados. Minha infância foi tomada pelo deslumbramento ante esses e outros heróis de dupla identidade. O tímido e atrapalhado jornalista Clark Kent, em cada situação de emergência tirava o chapéu, os óculos e a roupa convencional numa cabine telefônica, e dali se mandava voando, e - de aço, como era o Superman -, pronto pro que desse e viesse. Cada vez que o inviável pequeno radialista Billy Batson se via em perigo, ou alguém estava em vias de ser atacado, perto dele, gritava Shazam, um raio irrompia do céu sem nuvens - e ele se transformava no Capitão Márvel, que - além de alto, forte e invulnerável, ... também voava.
Já na Paraíba a partir de 62, vi muito doutor dizer tauba em lugar de tábua, auga — e não água — , além de preciosidades como estrupo, protistuta, largato ou falcudade. Isso tem nome: Metátese: transposição de fonemas dentro de um vocábulo.
No sertão, em que vivi de 62 a 70, ouvi frequentemente coisas como telça-feira, galfo, mulé lindra, latra di leitche, o di cumê, e tive trabalho pra fazer uma mocinha, numa peça que montei para as freiras, deixar de dizer “mas-si” em lugar de “más”. De repente, um som d'Espanha em plena caatinga: otcho como oito, mutcho como muito. Ou da França, com tanta véia em lugar de velha, teia em lugar de telha. Na montagem de “A Bátalha de OL contra o Gígante FERR”, Dema – que fazia o protagonista – disse, no primeiro ensaio, ao dar ênfase à frase “Rol irá!”:
“Rol irrá!”.
— Não: "Rol irá!"
— Não foi o que eu disse?
Já a expressão “visse”, em vez de “viste” virou forma de carinho. Ô, mas há coisas lindas, no linguajar do povo. Fiquei encantado quando meu pedreiro me mostrou as pedras no muro de uma casa, sugerindo-me botar equivalentes no da minha, ou seja: “tarugos desta expressão”. E quando o minifundiário me contou, na carteira agrícola do BB, em Pombal, que tivera de atravessar o riacho na enchente, com “água batendo aqui, no casamento”!
Jamais me esquecerei de que a primeira coisa que fiz no meu primeiro dia de trabalho na Paraíba, um paulista na carteira agrícola da agência do Banco do Brasil de Patos, foi a chamada do primeiro camponês a ser atendido, no meio de uma multidão deles:
— Severino! — eu disse em voz alta.
Ninguém se apresentou.
— Severino! — repeti.
Ninguém.
Eu disse ao chefe:
— Não está.
E ele:
— Está sim. Quer ver?
E bradou:
— Sévérinu!
— Présente!
Excerto do livro "Autob/i/ografia", disponível impresso na Arribaçã e em formato Kindle na Amazon
Coisas estranhas. Quando meu pai morreu, em 92, fui a seu enterro e, ao passar, na volta de Sorocaba, por São Paulo, onde pegaria o avião para João Pessoa, resolvi fazer uma visita ao MASP – Museu de Arte de São Paulo –, que fora tão marcante nos meus 13, 14 anos. Tudo normal, menos quando me vi ante o São Francisco - de El Greco - orando ante um crânio seco, pois – embora o quadro não esteja entre os de Domeniko Theotokópoulos que já me empolgaram (como o Espólio e o Enterro do Conde de Orgaz, dois dos que veria em Toledo , 1994) – senti, ante ele, (literalmente) um soco no estômago.
Proust viu “Em Busca do Tempo Perdido” recusado por vários editores, apesar da sua disposição de pagar a edição e de lhe financiar a publicidade. “Sua obra é velha”, disseram-lhe: “ultrapassada, burguesa e alienada”.
Germano Romero é arquiteto, cronista e... bacharel em música. Eu, que tantas vezes lhe passei mensagens parabenizando-o pelos textos nos jornais, principalmente sobre suas viagens mundo afora, já me dispunha a escrever sobre as obras arquitetônicas que tem criado na cidade, quando me deparei no Youtube com um programa Parada Obrigatória, seu, para a RCTV local e com o nome NOS CAMINHOS DE BACH.
Eu tinha 15, 16 anos, trabalhava de dia e fazia um curso um tanto ingênuo de pintura à noite. Foi quando meu pai me deu o Primeiro Encontro com a Arte, da Melhoramentos, obra do alemão-baiano Karl-Heinz Hansen. Aconteceu que nesse livro dei - entre tantas obras-primas espalhadas pela Europa -
com o então divulgado como o Autorretrato do artista com a barba nascente, de Rembrandt, no MASP, o que me fez passar a insistir para que alguém me levasse ao Museu de Arte de São Paulo que, na época, ficava na 7 de abril (Somente iria para a Av. Paulista em 68). Aquele filho-de-deus-na-Terra estava a hora e meia de ônibus de mim! Quem me levou foi minha irmã Wilma (que perdemos em 2019, aos 87 anos). Inesquecível, isso, porque - ao cruzarmos a rua para chegarmos ao museu -, ela teve um belo flerte com Hélio Souto (1929-2001), então galã famoso do cinema brasileiro. Anos depois, a autoria do quadro foi desautorizada por experts holandeses. Mas tudo bem. Conheci o MASP. Tive outro ganho igualmente notável, que ainda subsiste: o texto, nesse livro, que há sob a foto do Les Glaneuses (As
Respigadoras), de Millet:
- Os braços das duas mulheres mostram em seu trabalho uma tendência para baixo, dão ao quadro um peso para a esquerda. Para compensar, Millet utilizou-se do cavaleiro no alto, à direita.
O CENÁRIO D'A VERDADEIRA ESTÓRIA DE JESUS era composto de duas torres e uma mesa, tudo feito com canos de ferro galvanizados. As torres consistiam em quatro tubos verticais cada uma, sustentando dois pisos e uma escadinha, também de ferro. Quando o diálogo dos quatro evangelistas anunciava que se ia rememorar a travessia do Mar Vermelho, havia um blecaute e, no reacender dos refletores, a cena... passava a ser vista, pela plateia, ... de cima, Dema e Tião já na horizontal, como se os dois canos laterais das duas torres fossem balaustradas de um par de pieres. Aí o Jorge (de repente Moisés), também na horizontal, suspenso um pouco acima da mesa, via Dema alarmando que o exército egípcio se aproximava e que eles estavam encurralados pelo Mar Vermelho (a cortina do teatro, vermelha, "abaixo" deles). Aí um tubo de luz surgia da entrada da plateia sobre o grupo, que ouvia - olhando "para cima", na verdade por cima do público, para a fonte do clarão - minha voz ampliada, dizendo as palavras de Jeová: Moisés, estende o teu cajado sobre o mar... e fende-o! Jorge fazia isso, ... as cortinas do Teatro Santa Roza se abriam ao som da música imponente,... e a plateia ... delirava. Acho que foi a criação mais aplaudida de meu teatro.
MAS ACHO QUE O MAIOR "MILAGRE" que vi, em arte, como Suspension of Disbelief (Suspensão da Incredulidade ou "suspensão do julgamento sobre a implausibilidade, numa realidade secundária") foi a que me deixou pasmo no Louvre: a magnífica Vitória de Samotrácia, em que o autor desconhecido, há vinte e dois séculos, fez, na pedra, um belo corpo de mulher vestido em "transparente" tecido... de pedra!
Excertos do livro "Autob/i/ografia", disponível impresso na Arribaçã e em formato Kindle na Amazon
Não estamos sós:
a Terra,
como nós,
é setenta por cento água
e
parte dessa nossa parte está,
sempre,
irreal,
a levitar,
mais leve do que o ar,
em nuvens,
até que,
com quinhentas toneladas,
deságua.
O fato de o Sol aparentemente girar ao redor da Terra... ou de nós, fez-nos pensar durante séculos que éramos o centro, o objetivo do Universo e, consequentemente, de Deus. O sistema planetário concebido pelos antigos confirmava isso, assim como os autores do Antigo Testamento, que embarcaram na fantasia e criaram a cena em que Josué detém o Sol e a Lua para que houvesse tempo de terminar a batalha com a vitória sobre os amorreus.
Moacyr Scliar (1937 – 2011) é muito leve, irônico, profundo escritor judeu porto-alegrense, Prêmio Casa de Las Americas, Prêmio da APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte –, detentor de quatro Jabutis, grau Comendador pela Ordem do Ipiranga, etc, etc, e que tem “O Centauro no Jardim” na lista dos cem melhores livros de temática judaica dos últimos duzentos anos, feita pelo National Yiddish Book Center.