Iohannis Amos Comenius (1592-1670)
Em meio a realidade da Inteligência Artificial — que, como diz o professor e pesquisador Miguel Nicolelis, uma mente admirada pelo professor Piazzi, nem é inteligência e nem é artificial... — a dispersividade, muito alta nos adultos e crescente, a cada ano, nas crianças, é transtorno social e uma inimiga declarada da educação e instrução de gerações. Neste duro contexto o professor Piazzi dá soluções sistêmicas, remédios para mudança de paradigmas ou restauração de certos valores que a política educacional no mundo, e mais especificamente no Brasil destruiu, principalmente da década de 1960 para frente. O prestígio do professor, a sua inconteste autoridade é um dos pilares senão o mais importante deles. Hoje o professor é refém do capricho de pais que usam seus filhos como repetidores de um viciante e opressor hedonismo. Seja no ambiente público tanto como no privado, o professor (incluindo aqueles que têm tentado o meio digital) é como uma espécie de ferramenta que se aperta o botão ‘ligar’ quando se “necessita” e o de ‘pausar’ ou ‘desligar’ quando se “cansa”, ou quando o que se ouve não é conveniente ao politicamente correto do espectador.
Na era da pós-modernidade em que cada um liquefaz-se em sua “verdade” própria, ouvir veementes reprimendas ou asserções é percebido por pais como se eles e seus filhos estivessem sendo agredidos quando, em verdade, se trata mais de um diagnóstico de quem realmente se importa e propõe modulações de hábitos. As famílias têm-se tornado redutos chucros, e quando um professor levanta a voz para corrigir soa-lhes como uma intromissão imperdoável, virando aquele que se dispõe professar numa espécie de persona non grata.
Diante deste absurdo panorama, as Artes sempre hão de emergir como inequívoco poder de constranger o âmago — e, por meio do mover os resquícios de vida sensível, suscitar novos e bons hábitos — a, verdadeiramente, educar os indivíduos. É como, na prática, podemos constatar o que Comenius, grande teólogo protestante e notável pedagogo, aludia sobre a saída do Eden: esta desventura nossa que nos impele a buscar, em meio a desertos de mundos sensíveis, oásis de entendimento e lucidez. Paradoxalmente, os que se encontram nos prazeres imediatistas estão longe, muito longe, das delícias da fruição, alcançadas somente com duríssimo esforço, e fazendo-se o que se deve em detrimento do que se “quer” ou do que se “gosta”.
Dos mais de 70 livros publicados por Hector-Henri Malot, Sans Famille (publicado em 1878 por Édouard Dentu) é, indubitavelmente, o mais popular e que nos chega, hoje, com uma mensagem valiosíssima e urgente. O argumento do livro virou roteiro para inúmeras produções televisivas como as montagens de Georges Monca em 1914, e a de 1934 com a mise en scène de Marc Allegret; o longa de 1958, dirigido por André Michel; a produção de 1981, com realização de Jacques Ertaud; a minissérie em dois capítulos exibida em dezembro de 2000, dirigida por Jean-Daniel Verhaeghe; ou a série de animação japonesa com mais de cinquenta episódios e desenho de Osamu Dezaki (Matsudo Kan) de 1977, com versão em vários idiomas, incluindo francês.
A segunda das etapas da infância de um menino, segundo Biddulph, é quando há um impulso interno pelo querer a ser homem e quando a figura materna deixa de ter proeminência. O objetivo biológico e psíquico neste estágio é o desenvolvimento de competências e habilidades, incluindo a elaboração da afetividade e do bom humor a fim de que venha a se tornar uma pessoa equilibrada. Ocorre que, fora das linhas gerais apontadas pelos estudiosos como Biddulph, a vida traz inúmeras variantes e suscita a história individual fora da uniformidade. Para Malot o que interessou foi contar a trajetória de um menino cuja perda familiar, ao nascer, deu-lhe a chance de crescer, em meio a muito sofrimento, e ser literalmente salvo pela Música e seu inegável dom. A trama se desenrola a partir de lembranças da maturidade de Rémi (Renato) que, até os oito anos, fora criado por Madame Barberin (Maria Barbarino pela tradução de Virgínia Lefèvre que renomeia, aportuguesando os personagens, para melhor identificação com o leitor vernáculo), a quem muito queria bem, embora oscile não a chamando de mãe em todas as suas memórias. O texto é narrado em primeira pessoa como reminiscência viva de uma jornada de amadurecimento inesquecível:
Já ao final do segundo parágrafo, há esta primeira referência da relação do protagonista com a Música. As cantigas de ninar são imprescindíveis para o saudável desenvolvimento cognitivo de uma criança. Dão, somadas as cantigas de roda e as trovas, um forte senso de forma e de orientação motora, mas quem hoje as canta ou recita para seus filhos? E, mais, quem sabe cantá-las ou declamá-las como se deve, afinada e articuladamente? Este divórcio completo da sociedade com o mundo sensível, este apartamento danoso é fonte de muitos males contemporâneos que, no romance, vê-se como chave da malignidade contrária ao afável Rémi e ao sábio Mestre que o prepara para o lidar com o mundo mal.
Uma das adaptações cinematográficas de melhor recorte do enredo deste célebre romance é a lançada em dezembro de 2018 e dirigida por Antoine Blossier, com Daniel Auteuil no papel do Mestre e Maleaume Paquin no papel-título, além da participação especial de Jacques André Simonet (Jacques Perrin) que interpreta o protagonista maduro em suas memórias narradas e Ludivine Sagnier, no papel da mãe postiça. A música é assinada pelo francês Romaric Laurence, parceiro de Blossier também no filme À Toute Épreuve, que soube dar o peculiar tom da trilha que acompanha a jornada pelo interior da França, além de trazer a melancolia nos intervalos melódicos e no balanço, ao piano, suscitando a ambiência sensível do rememorar de Rémi às suas mais caras imagens infantis. O filme se inicia com uma introdução que não consta no livro: bem à medida norte-americana de suspense, a própria imagem do velho Rémi, numa noite chuvosa é um recurso manjado e escolhido pelo diretor para capturar a atenção dos personagens infantis no orfanato onde Rémi vive com sua amada e para iniciar, de facto, a narrativa fílmica.
Há personagens-símbolo na criação de Malot que são preservados por Blossier e outros que se mantém apenas enquanto arquétipos, sendo trocados, no entanto, por outras invenções para enxugar a narrativa e dar o recorte audiovisual pretendido. Também a vegetação descrita por Malot, as cidades narradas e alguns espaços-chave são mantidos, dando o ar do interior francês do século XIX cuja a fotografia encanta os olhos. Como os filmes nos chegam mais diretamente que muitos romances, sobretudo no frágil contexto educacional de hoje, é possível tê-los como pontes para os livros que nos abrem portais muito mais imagéticos e desafiadores que os recortes nas narrativas audiovisuais. E, assim, não se perdem nem a produção cinematográfica nem a literária, mais rica e diversa.
Os personagens do livro que foram mantidos por Blossier, além do próprio Rémi (que é tido no roteiro já com 10 anos) e de Vitalis, são a mãe-postiça, Maria Barbarino, mulher carinhosa que desejara ter filhos biológicos e não pôde, que criou com amor sincero o seu franzino e delicado Renato, com todos os cuidados de que dispunha; a vaca Roussette (Ruivinha, ou Vermelha, para Lefèvre), verdadeiro xodó, “quase considerado um membro da família, cujo leite puro e abundante representava uma parcela considerável – talvez a mais importante – da subsistência da família”. Jérôme Barberin (Jerônimo Barbarino), pedreiro vivendo longe da esposa para garantir o pão, trabalha em Paris até seu grave acidente num andaime; Madame Milligan, mãe de Rémi; e os Driscolls, uma família de embusteiros contratada para ludibriá-lo a mando de Jaime Milligan, tio de Rémi e autor da trama para o seu rapto.
Sobre a concepção dos personagens, de pronto é possível analisar cada nome: Vitalis, o cantor de grande sucesso e musicalidade, significa em Latim a força concernente à vida, força da vida, força criadora, portanto. Já o protagonista aponta para rêmige (ou remígio) que, no Latim, alude para remador, aquele que toma o remo nas mãos. Já no português o verbo remir tem tanto no indicativo, quanto no subjuntivo e no imperativo, o vocábulo ‘remi’, cuja origem latina aponta para redimir e o significado não está distante da saga enfrentada pela criança em cruzar, por duas vezes, boa parte do território francês a, literalmente, tornar a obter uma família. Em sítios eletrônicos de curiosidades jornalísticas sobre nomes, Rémi, certamente influenciado pela notabilidade que alcançou o romance no século passado, aponta para “associação com características de coragem e determinação, refletindo a imagem de alguém que supera obstáculos e alcança seus objetivos. Além disso, o nome Rémi também pode evocar uma conexão com a natureza, lembrando o movimento das águas e a atividade de remar”. Na versão de Lefèvre, ‘Renato’ é nenascido, em renovadas chances e salvo pela Música; a escolha não é má. E é isto que se exprime da longa jornada do menino sem família que vai, aos poucos, amadurecendo, vivendo uma dura vida de fome, de frio, de perseguições e sofrimentos até o encontro com sua mãe e irmão, mesmo quando, na primeira vez, ainda não os reconhece.
Sobre a ligação de Rémi com a natureza há, no livro, outros personagens animais que têm marcante papel na simbologia do discurso além de Roussette. Os três cães Capitão (“chama-se assim mas atende por Capi, uma abreviatura de seu nome!” ...), Zerbino (“palavra italiana que quer dizer galã. É realmente o galã da companhia.”) e Dulce (cadelinha fox-terrier) além de Joli-Cœur (“Boa-Vida” para Lefèvre), cujo carinhoso e bem-humorado nome dá a dimensão das peraltices desse macaquinho adestrado que, com o trio canino, compõem o “Conjunto Teatral Vitalis”. A descrição da paisagem da primeira infância de Rémi é outra demonstração de sua ligação afetiva com a flora:
E, também, sua experiência com a agricultura familiar:
A primeira imagem que surge de Rémi criança é ao campo, em colheita e contemplando a beleza floral enquanto entoa o tema central do filme, em bocca chiusa: na verdade, seu próprio tema, com Vermelha (nem tão vermelha assim...) ao fundo. É uma cantiga metalinguística e arquetípica que resume o romance. Na cena da aula de canto, ele é levado pelo Mestre a escarrar a alma, cantando em verdade, ainda sem palavras, a partir de uma reminiscência sinestésica. A voz vai-se colocando, projetando-se para a roça e aos campesinos, a afetar-lhes sobremaneira, como também a tocar a Capi e ao Mestre que vê aí sua ideia não ter sido em vão em tê-lo como pupilo. Rémi vai descobrindo a profundeza da Música, a profusão de sentimentos que ela evoca e a sensação de libertação pelo alimento da vida interior.
Para se estudar Música requer-se muito mais que uma ou duas horas por semana. A Música, e especialmente o canto, demanda domínio da respiração, de idiomas, uma consciência fonética e o apuramento do ouvido, a perceber os mais sutis intervalos e seus contextos harmônicos, além da precisão do tempo, dos pulsos, do ritmo que é corporal e organicamente afetivo. A cena da aula de canto tem fundamento no capítulo sétimo do livro, quando Vitalis também alfabetiza seu pupilo:
Guarda a Confiança foi guardada na mente de Rémi quando ele sequer falava, não sabendo portanto da letra mas não se esquecendo da melodia. É uma espécie de mandamento de fé, ordenança que lembra diretamente o apóstolo Paulo em sua segunda epístola ao amado filho Timóteo, resumindo a trajetória arquetípica de Rémi, enquanto herói: “Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé”:
Coube a gravação de Garde Confiance ao renomado coro de meninos Manécanterie des Petits Chanteurs à la croix de bois, fundado em 1907 por Paul Berthier e Pierre Martin, e durante muito tempo dirigido pelo padre Fernand Maillet. A metalinguagem na referência dos versos à própria canção é lastreada em Malot quando, ao fim do livro, Rémi narra que termina de compor uma autobiografia romanceada:
Outro ponto forte de louvor à Música é quando, já exauridos de forças e com a enfermidade se abatendo sobre Joli-Cœur tanto como sobre o próprio Vitalis, na luta pela sobrevivência, o velho Mestre decide deixar de lado por um tempo seu orgulho e revelar-se para a plateia do hotel. É quando há o trecho da única obra não composta por Romaric: o tema principal do primeiro movimento do opus 64, em mi menor (tonalidade escolhida por Romaric para Garde Confiance), de Felix Mendelssohn-Bartholdy. A virtuosidade ao violino é só trocada de personagem: no livro é Matias o violinista, não antes, como Vitalis foi enquanto cantor, mas depois da peregrinação e da peleja agreste, a ajudar, empenhadamente, seu mui amigo a encontrar a verdadeira família, e, também, depois, na busca pelo desenvolvimento mais profundo de seus talentos musicais e violinísticos. A narração de Rémi é entusiasmada a respeito de seu grande amigo:
O filme termina com o amanhecer de um novo dia, a aurora da realidade tranquila após a chuvosa madrugada: “o choro pode durar uma noite mas a alegria vem pela manhã”. Rémi põe os órfãos que o haviam ouvido em suas aventuras para dormir, cumprimenta a cada um, e sobe para seu quarto. As crianças entram no amplo quarto em que a harpa, um fiel instrumento-companheiro de Rémi em sua jornada, está como que a inspirar o estudo, este sim virtuoso, dos infantes. O protagonista sobe as escadas para os seus aposentos e, do alto, se vira para a parede repleta de fotografias — as que no livro rememoram Vitalis — de sua carreira exitosa de cantor operístico com recortes de jornais e primeira capa de programas dos mais renomados templos à Música por toda Europa. O Orfanato Vitalis é alusão tanto ao busto forjado em bronze no livro quanto à criação da “Casa do Pequeno Músico Ambulante”, idealizada por Rémi após um último recital “à moda antiga”, com harpa e violino, em duo com seu parceiro de vida Matias e com a presença do velhinho Capi, a recolher as moedas após os aplausos da família.
Já a obra de Malot finaliza-se com uma lição de moral, uma lamborada nos sistemas educacionais contemporâneos (principalmente o brasileiro!) mostrando que Arte é, de facto, atemporal:
Citar o Mestre para encerrar o livro é distinguir o apreço e prestígio devidos. É isto que precisa ser restituído segundo o professor Piazzi. Também, a descrição da hipocrisia da sociedade londrina endinheirada — nada diferente do vazio que assistimos de perto, hoje, no Brasil “instagramável” ... —, atestando o preconceito familiar, é outra crítica que Malot não deixa de usar para arrematar o seu precioso trabalho. Ao fim, louva-se o músico itinerante, o goliardo infantil que antes da publicação de Sans Famille, já em 1853, havia sido igualmente louvado pela literata francesa Augustine Fouillee (nascida Augustine Tuillerie), conhecida pelo pseudônimo masculino de G. Bruno, em seu livro Le Tour de la France par deux enfants, ao narrar o percorrer do grupo italiano Les Viggianesi de Basilicate.
A humildade, a singeleza de coração, o reconhecer das vocações e o servir à Música são a base da sociedade saudável, da família emocionalmente sadia que sabe orientar seus filhos, que planeja o caminho e conduz a criança, pela mão, em cada situação adversa, dando-lhe segurança, orientando-a a guardar a confiança e seguir adiante. Por esta razão, raramente vê-se no Brasil incentivos, quer governamentais, quer privados, no desenvolvimento de coros de meninos ou mesmo coros mistos: porque nos núcleos familiares é ausente a busca pela fruição, o reconhecimento da importância impreterível das Artes, da Vida Interior, do nutrir dos afetos e o equilíbrio que só pela educação do mundo sensível se pode obter. Por isto, não raro, a vulnerabilidade às telas, literalmente chupetas digitais, que NÃO COMPENSAM a falta do contato do pai, sobretudo daquele que sabe que não deve meramente criar como fôra criado, mas que deve estudar para ampliar os horizontes familiares, inda mais os afetivos. Biddulph adverte:
As desculpas que as famílias dão para, por exemplo, não encarar a Música de modo sério são as mais esfarrapadas e demonstram o quão ausente é da sociedade atual a Arte e quão sufocante é a cultura de massa. É incalculável o tempo que se perde com o besteirol cultural em detrimento da falta dessa nutrição espiritual. Ainda assim, mesmo que compreensível a busca de pais inconformados, o que em si já é louvável, muitos caem em armadilhas, buscando em formatos equivocados uma confusão entre educação e instrução. Não adianta o pai dispensar a escola ordinária sem que consiga ensinar a seus filhos a boa etiqueta e os bons modos no trato com o outro. Como costuma dizer a jornalista e consultora de moda Glória Kalil “chique mesmo é ser educado: uma pessoa que só tem aparência e que não cuida de seu comportamento moral e conteúdo intelectual não é chique de verdade”.
A Arte nos promove, autenticamente, o sonho, e a criança é a expressão do suspirar, em plena simplicidade e energia, de que o sonho pode ser realizado. Se bem instruída a criança, o sonho artístico não tem como não se realizar, mesmo diante das quase que invencíveis adversidades que nos impõe a selva de pedra atual. Não obstante não nos esqueçamos que o pai “realista” e a mãe burocrata ou incrédula que desencorajam a criança ao caminho musical, desconfiando, porém, lá no fundo, que seus filhos são vocacionados, concorre para mais uma geração de maus médicos, de advogados usurários, de engenheiros corruptos, de seres humanos frustrados. Comenius exorta-nos há séculos:
De sorte que a Música, se percebida como ela realmente é, o indivíduo, a família e a sociedade darão conta de que não há solidão quando se ouve, mentalmente, uma melodia. Daremo-nos todos conta de que é na infância onde pode-se cantar livre, leve, agudo, solto e afinado, e que na fase adulta é só confirmação, profissional, daquilo que já se é em mais tenra idade. Pais, não esperem que os governantes resolvam investir em vossos filhos, este é mandamento bíblico e concernente só aos educadores de fato. Não deneguem o direito à expressão mais sincera que parte do timbre infantil, sendo este mesmo o espelho e o exemplo da eloquência mirim a que se refere o teólogo.
A canção Garde Confiance é referência à canção napolitana recorrente no livro, que simboliza Vitalis e Matias, a relação do protagonista com estas duas gerações de italianos devotados à Música; mas também é o ensinamento de que quem não canta não tem as suas emoções plenamente desenvoltas, não tem o senso de forma encorporado, não se afina com o mundo ou para além das aparências, vive, portanto, em sombras. Ao fim, a Música é o som que nos abraça, a canção familiar aos ouvidos e à memória, é a mais querida e verdadeira família: enquanto Rémi penou por resolver suas angústias de não saber sobre seu passado, ou quando passou por terríveis vicissitudes, como nos dias soterrado na mina, fase dramática que Blossier não dá conta no filme, ou quando chega nos dias de fartura e senta para tocar em sua velha harpa é a Música, a sua mais íntima companheira, que lhe dá senso de humor ao lado de Lise, e a que o inspira a prosseguir agindo pelo bem dos pequenos andarilhos musicistas.
Oxalá tenhamos uma revolução vocal em nosso meio: quiçá as crianças possam mesmo, sem impedimentos parentais, crer que terão em seus genitores sustentáculos para seguir neste caminho em que devem andar e, quando adultos, sejam como Matias que só serviu à Música com sinceridade do coração. Quiçá Malot seja reconhecido como alguém que realmente escreveu para e sobre a infância. Ele exemplificou literariamente o que o salmista — não por acaso o rei Davi e Rémi são harpistas... — entoou sobre a fidelidade de Deus: “O Senhor guarda o peregrino, ampara o órfão e a viúva, porém transtorna o caminho dos ímpios”. Oxalá o personagem central de Sans Famille seja modelo de quem remiu a muitos por deixarem de ser seguidores de “influencers” para serem propagadores de sonhos...