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Mas que desventura foi a nossa! Estávamos no paraíso das delícias corporais, e perdemo-lo; e, ao mesmo tempo, perdemos o paraíso das de...

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Mas que desventura foi a nossa! Estávamos no paraíso das delícias corporais, e perdemo-lo; e, ao mesmo tempo, perdemos o paraíso das delícias espirituais, que éramos nós mesmos. Fomos expulsos para as solidões da terra, e tornamo-nos nós próprios uma solidão e um autêntico deserto escuro e esquálido. Com efeito, fomos ingratos para com aqueles bens, dos quais, no paraíso, Deus nos havia cumulado com abundância relativamente à alma e ao corpo; merecidamente, portanto, fomos despojados de uns e de outros, e a nossa alma e o nosso corpo tornaram-se o alvo das desgraças...
Iohannis Amos Comenius (1592-1670)


O saudoso professor Pierluigi Piazzi exerceu o sacerdócio professoral por décadas. Nascido na Itália, veio ao Brasil ainda adolescente e por aqui fez sua carreira docente, a professar profundas e verdadeiras reflexões sobre as relações sociais dentro do fracassado sistema educacional brasileiro. Em palestras da maturidade, o professor Piazzi falava
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Pierluigi Piazzi ▪ 1943—2015 / fbook
sobre a dificuldade dos pais ou mesmo incompetência no exercício da autoridade com seus filhos resultando em gerações mimadas, fúteis e sem propósito. Faleceu aos 22 de março de 2015 e até os últimos anos denunciava o uso excessivo de telas, assunto hoje em voga mas sem muita efetividade. Com um alto senso de humor, ele dizia: “os alunos sabem decodificar letras e sílabas em sons mas não entendem o que articulam”; e ele explica isto quando apresenta, claramente, a distinção entre entender e aprender (ou apreender). Ele é assertivo quando diz que o Brasil tornou-se, hoje, num país de mal-educados. O som dos televisores grandes, quadrados, que ficavam na sala de estar desde seu surgimento, foi dando lugar a aparelhos cada vez mais finos em espessura mas cada vez mais opressivamente maiores e quase onipresentes por todo lado.

Em meio a realidade da Inteligência Artificial — que, como diz o professor e pesquisador Miguel Nicolelis, uma mente admirada pelo professor Piazzi, nem é inteligência e nem é artificial... — a dispersividade, muito alta nos adultos e crescente, a cada ano, nas crianças, é transtorno social e uma inimiga declarada da educação e instrução de gerações.
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PHere
Neste duro contexto o professor Piazzi dá soluções sistêmicas, remédios para mudança de paradigmas ou restauração de certos valores que a política educacional no mundo, e mais especificamente no Brasil destruiu, principalmente da década de 1960 para frente. O prestígio do professor, a sua inconteste autoridade é um dos pilares senão o mais importante deles. Hoje o professor é refém do capricho de pais que usam seus filhos como repetidores de um viciante e opressor hedonismo. Seja no ambiente público tanto como no privado, o professor (incluindo aqueles que têm tentado o meio digital) é como uma espécie de ferramenta que se aperta o botão ‘ligar’ quando se “necessita” e o de ‘pausar’ ou ‘desligar’ quando se “cansa”, ou quando o que se ouve não é conveniente ao politicamente correto do espectador.

Na era da pós-modernidade em que cada um liquefaz-se em sua “verdade” própria, ouvir veementes reprimendas ou asserções é percebido por pais como se eles e seus filhos estivessem sendo agredidos quando, em verdade, se trata mais de um diagnóstico de quem realmente se importa e propõe modulações de hábitos. As famílias têm-se tornado redutos chucros, e quando um professor levanta a voz para corrigir soa-lhes como uma intromissão imperdoável, virando aquele que se dispõe professar numa espécie de persona non grata.

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PHere
Diante deste absurdo panorama, as Artes sempre hão de emergir como inequívoco poder de constranger o âmago — e, por meio do mover os resquícios de vida sensível, suscitar novos e bons hábitos — a, verdadeiramente, educar os indivíduos. É como, na prática, podemos constatar o que Comenius, grande teólogo protestante e notável pedagogo, aludia sobre a saída do Eden: esta desventura nossa que nos impele a buscar, em meio a desertos de mundos sensíveis, oásis de entendimento e lucidez. Paradoxalmente, os que se encontram nos prazeres imediatistas estão longe, muito longe, das delícias da fruição, alcançadas somente com duríssimo esforço, e fazendo-se o que se deve em detrimento do que se “quer” ou do que se “gosta”.

Dos mais de 70 livros publicados por Hector-Henri Malot, Sans Famille (publicado em 1878 por Édouard Dentu) é, indubitavelmente, o mais popular e que nos chega, hoje, com uma mensagem valiosíssima e urgente. O argumento do livro virou roteiro para inúmeras produções televisivas como as montagens de Georges Monca em 1914, e a de 1934 com a mise en scène de Marc Allegret; o longa de 1958, dirigido por André Michel; a produção de 1981, com realização de Jacques Ertaud; a minissérie em dois capítulos exibida em dezembro de 2000, dirigida por Jean-Daniel Verhaeghe; ou a série de animação japonesa com mais de cinquenta episódios e desenho de Osamu Dezaki (Matsudo Kan) de 1977, com versão em vários idiomas, incluindo francês.

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Hector-Henri Malot ▪ 1830—1907
O romance é dividido, simetricamente, em dois tomos, cada qual com 21 capítulos. Há em ambos a alegoria heroica do sofrimento que precede o amadurecer e a bonança: Rémi, um infante enjeitado, protagoniza uma vida de altos e baixos pela descoberta de quem realmente é. Especialistas dividem a infância humana em três ou quatro etapas de desenvolvimento. O livro inicia-se com o protagonista aos oito anos de idade, segundo dos três estágios relatados pelo psicólogo australiano Steve Biddulph em seu livro Criando Meninos (publicado em português em 2004), um dos mais famosos no assunto. O autor tem uma escrita direta e simples para que famílias no mundo inteiro possam assimilar princípios educacionais e relacionais na criação de seus filhos:

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“Os meninos não crescem todos de maneira suave e uniforme. Não basta dar cereais à vontade, camiseta limpa todo dia, para vê-los numa certa manhã acordarem homens-feitos. Existe um programa a seguir. Qualquer que conviva com meninos se surpreende com suas mudanças e com a variação de humor e energia que apresentam em ocasiões diferentes. A questão é entender o que fazer — e quando.”

A segunda das etapas da infância de um menino, segundo Biddulph, é quando há um impulso interno pelo querer a ser homem e quando a figura materna deixa de ter proeminência. O objetivo biológico e psíquico neste estágio é o desenvolvimento de competências e habilidades, incluindo a elaboração da afetividade e do bom humor a fim de que venha a se tornar uma pessoa equilibrada. Ocorre que, fora das linhas gerais apontadas pelos estudiosos como Biddulph, a vida traz inúmeras variantes e suscita a história individual fora da uniformidade. Para Malot o que interessou foi contar a trajetória de um menino cuja perda familiar, ao nascer, deu-lhe a chance de crescer, em meio a muito sofrimento, e ser literalmente salvo pela Música e seu inegável dom. A trama se desenrola a partir de lembranças da maturidade de Rémi (Renato) que, até os oito anos,
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fora criado por Madame Barberin (Maria Barbarino pela tradução de Virgínia Lefèvre que renomeia, aportuguesando os personagens, para melhor identificação com o leitor vernáculo), a quem muito queria bem, embora oscile não a chamando de mãe em todas as suas memórias. O texto é narrado em primeira pessoa como reminiscência viva de uma jornada de amadurecimento inesquecível:

“Quando ia dormir, era ainda ela quem me agasalhava com cuidado para que eu não sentisse frio e nunca se afastava da minha cabeceira sem antes me dar seu beijo de boa noite. Se o vento uivava lá fora sacudindo as janelas, Maria Barbarino permanecia a meu lado até que eu estivesse profundamente adormecido, dando-me, com sua simples presença, uma profunda sensação de segurança e proteção. E, no rigor do inverno, aquecia muitas vezes meus pés com suas mãos grossas de camponesa, esfregando-os com força ao ritmo de uma alegre canção popular.”

Já ao final do segundo parágrafo, há esta primeira referência da relação do protagonista com a Música. As cantigas de ninar são imprescindíveis para o saudável desenvolvimento cognitivo de uma criança. Dão, somadas as cantigas de roda e as trovas, um forte senso de forma e de orientação motora, mas quem hoje as canta ou recita para seus filhos? E, mais, quem sabe cantá-las ou declamá-las como se deve, afinada e articuladamente? Este divórcio completo da sociedade com o mundo sensível, este apartamento danoso é fonte de muitos males contemporâneos que, no romance, vê-se como chave da malignidade contrária ao afável Rémi e ao sábio Mestre que o prepara para o lidar com o mundo mal.

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Bayard, 1880 / PD
Uma das adaptações cinematográficas de melhor recorte do enredo deste célebre romance é a lançada em dezembro de 2018 e dirigida por Antoine Blossier, com Daniel Auteuil no papel do Mestre e Maleaume Paquin no papel-título, além da participação especial de Jacques André Simonet (Jacques Perrin) que interpreta o protagonista maduro em suas memórias narradas e Ludivine Sagnier, no papel da mãe postiça. A música é assinada pelo francês Romaric Laurence, parceiro de Blossier também no filme À Toute Épreuve, que soube dar o peculiar tom da trilha que acompanha a jornada pelo interior da França, além de trazer a melancolia nos intervalos melódicos e no balanço, ao piano, suscitando a ambiência sensível do rememorar
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de Rémi às suas mais caras imagens infantis. O filme se inicia com uma introdução que não consta no livro: bem à medida norte-americana de suspense, a própria imagem do velho Rémi, numa noite chuvosa é um recurso manjado e escolhido pelo diretor para capturar a atenção dos personagens infantis no orfanato onde Rémi vive com sua amada e para iniciar, de facto, a narrativa fílmica.

Há personagens-símbolo na criação de Malot que são preservados por Blossier e outros que se mantém apenas enquanto arquétipos, sendo trocados, no entanto, por outras invenções para enxugar a narrativa e dar o recorte audiovisual pretendido. Também a vegetação descrita por Malot, as cidades narradas e alguns espaços-chave são mantidos, dando o ar do interior francês do século XIX cuja a fotografia encanta os olhos. Como os filmes nos chegam mais diretamente que muitos romances, sobretudo no frágil contexto educacional de hoje, é possível tê-los como pontes para os livros que nos abrem portais muito mais imagéticos e desafiadores que os recortes nas narrativas audiovisuais. E, assim, não se perdem nem a produção cinematográfica nem a literária, mais rica e diversa.

Os personagens do livro que foram mantidos por Blossier, além do próprio Rémi (que é tido no roteiro já com 10 anos) e de Vitalis, são a mãe-postiça, Maria Barbarino, mulher carinhosa que desejara ter filhos biológicos e não pôde, que criou com amor sincero o seu franzino e delicado Renato, com todos os cuidados de que dispunha; a vaca Roussette (Ruivinha, ou Vermelha, para Lefèvre), verdadeiro xodó, “quase considerado um membro da família, cujo leite puro e abundante representava uma parcela considerável – talvez a mais importante – da subsistência da família”. Jérôme Barberin (Jerônimo Barbarino), pedreiro vivendo longe da esposa para garantir o pão, trabalha em Paris até seu grave acidente num andaime; Madame Milligan, mãe de Rémi; e os Driscolls, uma família de embusteiros contratada para ludibriá-lo a mando de Jaime Milligan, tio de Rémi e autor da trama para o seu rapto.

Sobre a concepção dos personagens, de pronto é possível analisar cada nome: Vitalis, o cantor de grande sucesso e musicalidade, significa em Latim a força concernente à vida, força da vida, força criadora, portanto. Já o protagonista aponta para rêmige (ou remígio) que, no Latim, alude para remador, aquele que toma o remo nas mãos. Já no português o verbo remir tem tanto no indicativo, quanto no subjuntivo e no imperativo, o vocábulo ‘remi’,
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"O pequeno órfão" ▪ 2018 Div. / Via Imdb
cuja origem latina aponta para redimir e o significado não está distante da saga enfrentada pela criança em cruzar, por duas vezes, boa parte do território francês a, literalmente, tornar a obter uma família. Em sítios eletrônicos de curiosidades jornalísticas sobre nomes, Rémi, certamente influenciado pela notabilidade que alcançou o romance no século passado, aponta para “associação com características de coragem e determinação, refletindo a imagem de alguém que supera obstáculos e alcança seus objetivos. Além disso, o nome Rémi também pode evocar uma conexão com a natureza, lembrando o movimento das águas e a atividade de remar”. Na versão de Lefèvre, ‘Renato’ é nenascido, em renovadas chances e salvo pela Música; a escolha não é má. E é isto que se exprime da longa jornada do menino sem família que vai, aos poucos, amadurecendo, vivendo uma dura vida de fome, de frio, de perseguições e sofrimentos até o encontro com sua mãe e irmão, mesmo quando, na primeira vez, ainda não os reconhece.

Sobre a ligação de Rémi com a natureza há, no livro, outros personagens animais que têm marcante papel na simbologia do discurso além de Roussette. Os três cães Capitão (“chama-se assim mas atende por Capi, uma abreviatura de seu nome!” ...), Zerbino (“palavra italiana que quer dizer galã.
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"O pequeno órfão" ▪ 2018 Div. / Via Imdb
É realmente o galã da companhia.”) e Dulce (cadelinha fox-terrier) além de Joli-Cœur (“Boa-Vida” para Lefèvre), cujo carinhoso e bem-humorado nome dá a dimensão das peraltices desse macaquinho adestrado que, com o trio canino, compõem o “Conjunto Teatral Vitalis”. A descrição da paisagem da primeira infância de Rémi é outra demonstração de sua ligação afetiva com a flora:

“Nossa casa ficava perto desses ribeirões que descem da montanha e vão engrossar as águas do grande rio distante, privilégio de terras mais felizes, e nela minha mãe adotiva tinha sua horta e seu pomar. Dois ou três carvalhos nos davam sombra nos dias de calor”.

E, também, sua experiência com a agricultura familiar:

“Achei melhor ir trabalhar na horta, para passar o tempo. Maria Barbarino reservara-me um canto no roçado, onde eu podia plantar o que quisesse. Resolvera fazer-lhe uma surpresa e tinha plantado uns tubérculos de batata-doce que um vizinho me arranjara, garantindo ser mais gostosa do que a batata comum. Eu acompanhava o desenvolvimento de minhas batatas-doces, imaginando a surpresa de minha mãe adotiva quando as recebesse das minhas mãos”.
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"O pequeno órfão" ▪ 2018 Div. / Via Imdb
No recorte de Blossier somente Capi e Boa-Vida compõem a trupe de Vitalis e há, além disso, a troca de personagens ou um enxugamento que mantém os arquétipos. O primeiro tomo do livro caracteriza-se pelas conquistas do aprendizado de Vida e Música forjando o pequeno Rémi sob a direção de seu Mestre. Quando Vitalis morre, ganha proeminência, no segundo tomo, a figura de Mattia, criança italiana de grande talento musical. Blossier então funde os personagens para economizar o discurso fílmico e dá ao Mestre as atribuições musicais de Matias que era autodidata em vários instrumentos tornando-se num grande violinista. Já a carreira de sucesso como cantor de ópera é, no livro, a vida de Vitalis que Blossier entrega pra Rémi fechando nele o ímpeto criador da Música. Outra troca é a de Lise que existe tanto no original quanto nesta versão porém Lise, no filme, é filha de Madame Harper, personagem inventado em detrimento de Pedro Aquino, um florista doméstico que recebe Renato após a morte de Vitalis por hipotermia, à sua porta, quando ambos fugiam de uma nevasca. A cena, no filme, dessa madrugada tenebrosa, em que Rémi adormece, já exausto, nos braços de Vitalis morto, é tocante.

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"O pequeno órfão" ▪ 2018 Div. / Via Imdb
A primeira imagem que surge de Rémi criança é ao campo, em colheita e contemplando a beleza floral enquanto entoa o tema central do filme, em bocca chiusa: na verdade, seu próprio tema, com Vermelha (nem tão vermelha assim...) ao fundo. É uma cantiga metalinguística e arquetípica que resume o romance. Na cena da aula de canto, ele é levado pelo Mestre a escarrar a alma, cantando em verdade, ainda sem palavras, a partir de uma reminiscência sinestésica. A voz vai-se colocando, projetando-se para a roça e aos campesinos, a afetar-lhes sobremaneira, como também a tocar a Capi e ao Mestre que vê aí sua ideia não ter sido em vão em tê-lo como pupilo. Rémi vai descobrindo a profundeza da Música, a profusão de sentimentos que ela evoca e a sensação de libertação pelo alimento da vida interior.

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Maleaume Paquin (Rémi) e Daniel Auteuil (Vitalis), em "O pequeno órfão" ▪ 2018 Div. / Via Imdb
Para se estudar Música requer-se muito mais que uma ou duas horas por semana. A Música, e especialmente o canto, demanda domínio da respiração, de idiomas, uma consciência fonética e o apuramento do ouvido, a perceber os mais sutis intervalos e seus contextos harmônicos, além da precisão do tempo, dos pulsos, do ritmo que é corporal e organicamente afetivo. A cena da aula de canto tem fundamento no capítulo sétimo do livro, quando Vitalis também alfabetiza seu pupilo:

“...entusiasmado com meus progressos, perguntou: — Quer aprender as notas musicais? Interessado, indaguei: — Conhecendo as notas poderei cantar como o senhor? Vitalis fitou-me com um ar desconfiado. — Você quer cantar como eu? — Nunca poderei cantar tão bem como o senhor, mas tenho vontade de aprender. — Você gosta de me ouvir cantar? — Se gosto! Acho lindo o canto dos pássaros, mas o seu me emociona muito mais. Sua voz toca-me fundo o coração, dando-me às vezes vontade de rir e outras de chorar. Ouvindo-o, fico com mais saudade de mamãe. E me vejo de novo a seu lado, sentindo o calor de sua ternura e de sua dedicação. Não entendo as palavras – deve ser italiano – mas não preciso delas para compreender a melodia. Os olhos de Vitalis estavam cheios de lágrimas. Comovido, perguntei: — O senhor ficou triste comigo? Ele me afagou o rosto e respondeu: — Não, meu filho. Recordava meus tempos de rapaz... Bons tempos aqueles... Vou ensiná-lo a cantar. Você tem boa voz e parece possuir senso musical. Tudo indica que será um bom cantor e receberá muitos aplausos... Você vai ver!”
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"O pequeno órfão" ▪ 2018 Div. / Via Imdb
O texto da canção só acontece fora do filme, nos créditos finais, como na maioria das canções em que os versos retratam a narrativa mas não cabem, diretamente, no discurso. A partitura é criação de Romaric e, certamente a pedido de Blossier, evoca uma cantiga de ninar tradicional francesa. A forma encontrada no roteiro para representar a força da Música na vida humana, que perpassa gerações e estabelece laços, foi a de, através dessa canção, haver a chave para a identificação da senhora Milligan ao, finalmente, ter encontrado seu filho raptado. A métrica é ternária simples, como numa valsa infantil ou numa cantiga de roda; e a singela letra é assinada por Gaëlle Godard-Blossier. Os versos apontam tanto para a explicitação da ligação à distância entre mãe (biológica ou de criação) e filho,
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"O pequeno órfão" ▪ 2018 Div. / Via Imdb
pela batida do coração firmada pelo pulso musical, quanto pela associação latente da própria Música com o menino, este representando a jornada de aprendizado do ser que se entrega ao seu caminhar árduo e, ao fim, vitorioso. A ciência vem estudar e comprovar, já bem depois do que sabem os Mestre de Música, sobre a inflexão melódica dos idiomas, e sobre a consequente força que a canção exerce sobre o cérebro de fetos e bebês, antes mesmo da fala acontecer. O Instituto Max-Planck, através do Laboratório de Ciências Cognitivas da Escola Normal Superior de Paris, constatou que a melodia do choro de bebês franceses se difere, substancialmente, dos bebês alemães e isso se deve pela forma como eles captam a linguagem dos que estão à volta — ouso dizer não só o idioma mas a letra cantada, a força da distinção da grande música entre estas nações e a percepção dos cérebros infantis.

Guarda a Confiança foi guardada na mente de Rémi quando ele sequer falava, não sabendo portanto da letra mas não se esquecendo da melodia. É uma espécie de mandamento de fé, ordenança que lembra diretamente o apóstolo Paulo em sua segunda epístola ao amado filho Timóteo, resumindo a trajetória arquetípica de Rémi, enquanto herói: “Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé”:

Aux soirs d'orage Ne crains rien Garde confiance Ma voix sera ton guide Même loin de toi Nos cœurs sont liés dans cette chanson Le vent te porte Déploie tes ailes Suis ton destin Garde confiance Même loin de moi Nos cœurs sont liés dans cette chanson Un jour, demain (un jour, demain) L'aventure Te mènera à moi (l'aventure te mènera à moi) Tu finiras ton voyage (tu finiras ton voyage) Tout près de moi (tout près de moi) Et nos cœurs liés dans cette chanson (et nos cœurs liés dans cette chanson)

Coube a gravação de Garde Confiance ao renomado coro de meninos Manécanterie des Petits Chanteurs à la croix de bois, fundado em 1907 por Paul Berthier e Pierre Martin, e durante muito tempo dirigido pelo padre Fernand Maillet. A metalinguagem na referência dos versos à própria canção é lastreada em Malot quando, ao fim do livro, Rémi narra que termina de compor uma autobiografia romanceada:

“Terminei o livro em que narrei minhas aventuras. Os felizes não têm história. Posso, pois dar-lhe um epílogo [...] hoje, à noite, devemos estar todos juntos. Só Vitalis faltará! Como eu seria feliz se tivesse conosco o meu querido e primeiro mestre! Pude, ao menos, dar-lhe um túmulo. Consegui fotografias do seu tempo de glória e fortuna e mandei esculpir-lhe o busto em bronze e colocá-lo no cemitério, em Paris. Tenho a miniatura sobre minha escrivaninha e costumo passar alguns momentos de olhos fechados, sentindo-lhe a presença gravada na minha eterna saudade.”

Outro ponto forte de louvor à Música é quando, já exauridos de forças e com a enfermidade se abatendo sobre Joli-Cœur tanto como sobre o próprio Vitalis, na luta pela sobrevivência, o velho Mestre decide deixar de lado por
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"O pequeno órfão" ▪ 2018 Div. / Via Imdb
um tempo seu orgulho e revelar-se para a plateia do hotel. É quando há o trecho da única obra não composta por Romaric: o tema principal do primeiro movimento do opus 64, em mi menor (tonalidade escolhida por Romaric para Garde Confiance), de Felix Mendelssohn-Bartholdy. A virtuosidade ao violino é só trocada de personagem: no livro é Matias o violinista, não antes, como Vitalis foi enquanto cantor, mas depois da peregrinação e da peleja agreste, a ajudar, empenhadamente, seu mui amigo a encontrar a verdadeira família, e, também, depois, na busca pelo desenvolvimento mais profundo de seus talentos musicais e violinísticos. A narração de Rémi é entusiasmada a respeito de seu grande amigo:

“Matias é hoje conhecido no mundo inteiro. Tornou-se um grande concertista. Denominaram-no o ‘Chopin do Violino’. Muitas composições suas já se tornaram famosas. Sempre em ‘tournée’ artística, não foi fácil conseguirmos sua presença no batizado de meu filho, mas o jornal de hoje publicará, com destaque, a notícia de sua breve visita a Londres, para ser padrinho do mais novo rebento da família Milligan, que, aliás, tem seu nome.”

O filme termina com o amanhecer de um novo dia, a aurora da realidade tranquila após a chuvosa madrugada: “o choro pode durar uma noite mas a alegria vem pela manhã”. Rémi põe os órfãos que o haviam ouvido em suas aventuras para dormir,
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Jacques Perrin (Rémi, adulto) em "O pequeno órfão" ▪ 2018 Div. / Via Imdb
cumprimenta a cada um, e sobe para seu quarto. As crianças entram no amplo quarto em que a harpa, um fiel instrumento-companheiro de Rémi em sua jornada, está como que a inspirar o estudo, este sim virtuoso, dos infantes. O protagonista sobe as escadas para os seus aposentos e, do alto, se vira para a parede repleta de fotografias — as que no livro rememoram Vitalis — de sua carreira exitosa de cantor operístico com recortes de jornais e primeira capa de programas dos mais renomados templos à Música por toda Europa. O Orfanato Vitalis é alusão tanto ao busto forjado em bronze no livro quanto à criação da “Casa do Pequeno Músico Ambulante”, idealizada por Rémi após um último recital “à moda antiga”, com harpa e violino, em duo com seu parceiro de vida Matias e com a presença do velhinho Capi, a recolher as moedas após os aplausos da família.

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Bayard, 1880 / PD
Já a obra de Malot finaliza-se com uma lição de moral, uma lamborada nos sistemas educacionais contemporâneos (principalmente o brasileiro!) mostrando que Arte é, de facto, atemporal:

“Aos poucos convencia de que a verdadeira aristocracia é a da educação, inteligência e caráter [...] tinha razão meu velho Mestre Vitalis com a sentença que gostava de repetir nos seus momentos de dificuldade: ‘Quanto mais numerosos os espinhos, mais belas são as rosas’.”

Citar o Mestre para encerrar o livro é distinguir o apreço e prestígio devidos. É isto que precisa ser restituído segundo o professor Piazzi. Também, a descrição da hipocrisia da sociedade londrina endinheirada — nada diferente do vazio que assistimos de perto, hoje, no Brasil “instagramável” ... —, atestando o preconceito familiar, é outra crítica que Malot não deixa de usar para arrematar o seu precioso trabalho. Ao fim, louva-se o músico itinerante, o goliardo infantil que antes da publicação de Sans Famille,
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Bayard, 1880 / PD
já em 1853, havia sido igualmente louvado pela literata francesa Augustine Fouillee (nascida Augustine Tuillerie), conhecida pelo pseudônimo masculino de G. Bruno, em seu livro Le Tour de la France par deux enfants, ao narrar o percorrer do grupo italiano Les Viggianesi de Basilicate.

A humildade, a singeleza de coração, o reconhecer das vocações e o servir à Música são a base da sociedade saudável, da família emocionalmente sadia que sabe orientar seus filhos, que planeja o caminho e conduz a criança, pela mão, em cada situação adversa, dando-lhe segurança, orientando-a a guardar a confiança e seguir adiante. Por esta razão, raramente vê-se no Brasil incentivos, quer governamentais, quer privados, no desenvolvimento de coros de meninos ou mesmo coros mistos: porque nos núcleos familiares é ausente a busca pela fruição, o reconhecimento da importância impreterível das Artes, da Vida Interior, do nutrir dos afetos e o equilíbrio que só pela educação do mundo sensível se pode obter. Por isto, não raro, a vulnerabilidade às telas, literalmente chupetas digitais, que NÃO COMPENSAM a falta do contato do pai, sobretudo daquele que sabe que não deve meramente criar como fôra criado, mas que deve estudar para ampliar os horizontes familiares, inda mais os afetivos. Biddulph adverte:

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Arranje tempo. Preste atenção nesta que é talvez a frase mais importante de todo este livro: se você tem como rotina trabalhar de cinqüenta e cinco a sessenta horas por semana e ainda viaja a trabalho, simplesmente não vai dar conta de ser pai. Seus filhos vão ter problemas, e isso vai se refletir em você.”

As desculpas que as famílias dão para, por exemplo, não encarar a Música de modo sério são as mais esfarrapadas e demonstram o quão ausente é da sociedade atual a Arte e quão sufocante é a cultura de massa. É incalculável o tempo que se perde com o besteirol cultural em detrimento da falta dessa nutrição espiritual. Ainda assim, mesmo que compreensível a busca de pais inconformados, o que em si já é louvável, muitos caem em armadilhas, buscando em formatos equivocados uma confusão entre educação e instrução. Não adianta o pai dispensar a escola ordinária sem que consiga ensinar a seus filhos a boa etiqueta e os bons modos no trato com o outro. Como costuma dizer a jornalista e consultora de moda Glória Kalil “chique mesmo é ser educado: uma pessoa que só tem aparência e que não cuida de seu comportamento moral e conteúdo intelectual não é chique de verdade”.

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Bayard, 1880 / PD
A Arte nos promove, autenticamente, o sonho, e a criança é a expressão do suspirar, em plena simplicidade e energia, de que o sonho pode ser realizado. Se bem instruída a criança, o sonho artístico não tem como não se realizar, mesmo diante das quase que invencíveis adversidades que nos impõe a selva de pedra atual. Não obstante não nos esqueçamos que o pai “realista” e a mãe burocrata ou incrédula que desencorajam a criança ao caminho musical, desconfiando, porém, lá no fundo, que seus filhos são vocacionados, concorre para mais uma geração de maus médicos, de advogados usurários, de engenheiros corruptos, de seres humanos frustrados. Comenius exorta-nos há séculos:

As crianças não são apenas o objeto, mas também o exemplar da verdadeira regeneração. Mas que palavras são estas?! Ouvi-as bem e examinai-as atentamente todos, para ver que coisa queria dizer o Mestre e Senhor de todos. Como proclama que só as criancinhas são merecedoras do reino de Deus, admitindo a participar na herança apenas os homens que se tenham tornado semelhantes às criancinhas!
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Bayard, 1880 / PD
Oxalá vós, diletas criancinhas, possais entender este vosso celeste privilégio! Eis no que ele consiste: é vosso o resto de dignidade que ficou ainda no gênero humano, ou seja, o direito que ele tem ainda à pátria celeste! (Cristo é vosso, vossa é a santificação do Espírito, vossa a graça de Deus, vossa a herança da vida futura; sim, tudo isto é vosso, pertence-vos a vós particularmente e infalivelmente, pertence mesmo só a vós, a não ser que qualquer outro, convertendo-se, se torne como vós. Eis que nós, adultos, que julgamos que só nós somos homens e vós sois macaquinhos, só nós sábios e vós doidinhos, só nós faladores inteligentes e vós ainda não aptos para falar, eis que, enfim, somos obrigados a vir à vossa escola! Vós fostes-nos dados como mestres, e as vossas obras são dadas às nossas como espelho e exemplo!

De sorte que a Música, se percebida como ela realmente é, o indivíduo, a família e a sociedade darão conta de que não há solidão quando se ouve, mentalmente, uma melodia. Daremo-nos todos conta de que é na infância onde pode-se cantar livre, leve, agudo, solto e afinado, e que na fase adulta é só confirmação, profissional, daquilo que já se é em mais tenra idade. Pais, não esperem que os governantes resolvam investir em vossos filhos, este é mandamento bíblico e concernente só aos educadores de fato. Não deneguem o direito à expressão mais sincera que parte do timbre infantil, sendo este mesmo o espelho e o exemplo da eloquência mirim a que se refere o teólogo.

hector malot sem familia remi
Bayard, 1880 / PD
A canção Garde Confiance é referência à canção napolitana recorrente no livro, que simboliza Vitalis e Matias, a relação do protagonista com estas duas gerações de italianos devotados à Música; mas também é o ensinamento de que quem não canta não tem as suas emoções plenamente desenvoltas, não tem o senso de forma encorporado, não se afina com o mundo ou para além das aparências, vive, portanto, em sombras. Ao fim, a Música é o som que nos abraça, a canção familiar aos ouvidos e à memória, é a mais querida e verdadeira família: enquanto Rémi penou por resolver suas angústias de não saber sobre seu passado, ou quando passou por terríveis vicissitudes, como nos dias soterrado na mina, fase dramática que Blossier não dá conta no filme, ou quando chega nos dias de fartura e senta para tocar em sua velha harpa é a Música, a sua mais íntima companheira, que lhe dá senso de humor ao lado de Lise, e a que o inspira a prosseguir agindo pelo bem dos pequenos andarilhos musicistas.


Oxalá tenhamos uma revolução vocal em nosso meio: quiçá as crianças possam mesmo, sem impedimentos parentais, crer que terão em seus genitores sustentáculos para seguir neste caminho em que devem andar e, quando adultos, sejam como Matias que só serviu à Música com sinceridade do coração. Quiçá Malot seja reconhecido como alguém que realmente escreveu para e sobre a infância. Ele exemplificou literariamente o que o salmista — não por acaso o rei Davi e Rémi são harpistas... — entoou sobre a fidelidade de Deus: “O Senhor guarda o peregrino, ampara o órfão e a viúva, porém transtorna o caminho dos ímpios”. Oxalá o personagem central de Sans Famille seja modelo de quem remiu a muitos por deixarem de ser seguidores de “influencers” para serem propagadores de sonhos...

O Brasil não merece os brasileiros... O brasileiro não conhece o Brasil... Quando na cerimônia da XXXI Abertura dos Jogos Olímpicos ...

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O Brasil não merece os brasileiros... O brasileiro não conhece o Brasil...

Quando na cerimônia da XXXI Abertura dos Jogos Olímpicos de Verão, no Rio de Janeiro, escolheu-se aclamar Larissa de Macedo Machado em detrimento de inúmeras cantoras de fato, tivemos, ali, um crasso exemplo de que o importante no Brasil de hoje é lacrar, fechar, abafar, parecendo ser, e nada mais...

Em 1987 a grande musicista, já aposentada há tempos, Balduína de Oliveira Sayão concedeu uma densa entrevista ao importante radialista e produtor musical Lauro Gomes Pinto. Desse precioso momento, Bidú nos dá muito o que refletir sobre

De minha janela vejo apodrecer a juventude... De aqui miro, em foco, o cair do corpo sem alma. Sem o ouvir do Belo, o organismo fenec...

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De minha janela vejo apodrecer a juventude... De aqui miro, em foco, o cair do corpo sem alma. Sem o ouvir do Belo, o organismo fenece: Há tiros, gritos, desesperança diante da morte em vão... Em plena Arte, levantar-nos-íamos do torpor, do chão! ...

Há tempos não ouço e vejo um filme tão envolvente quanto este: Boychoir – cujo subtítulo de divulgação (Hear my song) aponta para o canto individual, íntimo, pessoal – é um apanhado de excelentes peças corais justificado por um argumento bem humano, e bem possível de acontecer.

Não alcancei Heitor Villa-Lobos; já os irmãos José e João Baptista Siqueira, quando faleceram, ainda era criança vivendo nos arredores ca...

literatura paraibana critica musical edino krieger nenem clássico violino cordas trio aquarius duo santoro
Não alcancei Heitor Villa-Lobos; já os irmãos José e João Baptista Siqueira, quando faleceram, ainda era criança vivendo nos arredores campinenses, sem instrução musical formal. Mas, já adulto, conheci e me aproximei de um baluarte da música, uma pedra fundamental na composição brasileira, e é desta coluna artística que brota, por exemplo, a primeira Sonata para piano cheia de encantos rítmicos,
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simplicidade, marca registrada no uso dos ornamentos, e dos vetores intervalares como a quarta justa. Tão idiomático é o estilo de Edino Krieger que, seguindo coerência composicional, as quartas, e sua inversão em quintas, estruturam-se em temas de pura sonoridade, timbre e nostalgia na segunda Sonata para piano , concebida em abril de 1956, na capital britânica.

Temos a sorte de tê-lo longevo, e, ao longo de suas mais de nove décadas de existência, podemos sorver de sua mente criadora, atuando não só por meio da própria obra, quanto como pelos cargos que exerceu na promoção das artes e dos artistas nacionais. Ele mesmo, dentre muitas homenagens que recebera pela passagem de seu nonagésimo aniversário, relembrou no programa Harmonia da Rede Minas, muito de sua trajetória.

O álbum Edino Krieger entre amigos é produção caseira dedicada com amor à sua esposa Nenem, e aos frutos dessa longa relação de parceria e apoio mútuo. Tem, na apresentação do encarte, palavras de Tim Rescala, notável humorista-compositor que disponibilizou seu estúdio onde se deram parte das gravações:

O músico, como todo artista, sempre tem alguma referência, alguém que admira, seja pelo talento, pela obra ou mesmo pela personalidade. É difícil lembrar de um outro músico por quem a classe musical nutra tanta admiração [...] da mesma forma que criou obras fundamentais para a música brasileira, deu condições para que seus colegas também criassem. Da mesma forma que abriu caminhos, deu condições para que outros abrissem. Há, não só no Brasil mas no mundo, poucas pessoas assim [...] em tempos difíceis, confusos e difusos, como este em que vivemos, este registro de Trio Aquarius e Duo Santoro de algumas obras de Edino é um alento. Resume uma trajetória, mostra um caminho, dá um norte. Que privilégio é ouvir de perto as obras do mestre e ser espectador, de alguma forma, de seu processo criativo. Que privilégio é tomar um vinho com o mestre, jogar conversa fora, na companhia de sua cara-metade, que é pra ele fundamental, assim como, para ela, fundamental ele também é. E para nós também, os privilegiados.

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O próprio Edino refere-se a este álbum como fruto de uma autêntica amizade; os intérpretes são muito próximos da família Krieger, e por vezes, já tocaram, inclusive como estreia, suas obras. O disco vai desde uma Sonata para violino solo (opus 1) feita na adolescência, sob as primeiras orientações de Hans-Joachim Koellreutter, aos seus dezesseis anos; até obras estreadas em Bienais de Música mais recentes, como o ciclo dos Estudos Intervalares. O álbum abre com uma singela peça, Chôro Manhoso, concebido aos vinte e quatro de agosto de 1956, e dedicado a Dinorah Krieger, sua irmã. A versão original é para piano solo e podemos ouvi-la pelas mãos de um intérprete muito conhecido e velho amigo dos Krieger, Miguel Proença .

Na Europa é comum que grandes mestres tenham versões e versões do original de suas peças, transcritas em novas instrumentações; é uma forma de ampliar a percepção, e de que as obras sejam mais conhecidas e compartilhadas por diferentes grupos e intérpretes: quando a música transcende a própria concepção originária. É do pianista mineiro Flávio Augusto, membro do Trio Aquarius, essa e as demais versões em trio (Sonatina e a valsa Nina, também na concepção primeira para piano).

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A Sonatina para piano solo, – que aqui trago na sutil e sensível interpretação do pianista gaúcho Alexandre Dossin – é, no amistoso álbum, incrementada com notas pedais de um tênue vibrato ao violoncelo, no primeiro tema que é suportado com compartilhamento da melodia entre o violino, ora só, ora dobrado pelo violoncelo no segundo tema do primeiro movimento. Noutros momentos, o grave do piano é dobrado com o violoncelo, dando um reforço timbrístico, num som composto. Já no segundo movimento, o sério e desafiador Allegro, a dosagem é bem equilibrada entre os três instrumentos, revelando uma transcrição bem elaborada tecnicamente: Flávio Augusto foi feliz ao traduzir para trio essa peça. Aliás, o Trio Aquarius é maduro em concepção camerística, extremamente entrosado e convence nessa versão que bem poderia ter sido concebida pelo próprio Edino. É inspirador ver quando intérpretes se dedicam nesse nível à obra de algum artista criador de nosso solo pátrio; e Edino merece!

Na valsa Nina, estruturada numa harmonia saudosa, rememorando o espírito seresteiro, cancioneiro, o Trio AquariUs brinda-nos com a leveza que a obra merece: audição despretensiosa e leve, deixando-se levar por onde a memória e o espírito nos conduzirem. Mas, é na obra Trio Tocata que a interação criativa entre os instrumentos, revela uma originalidade da concepção e uma maturidade de uma criação robusta.
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A peça já começa com um uníssono longo e arrebatador que desemboca numa dissonância provocante: um autêntico Edino. Essa sonoridade sinuosa, com quartas aumentadas, mais ásperas, e articuladas por ritmo insistente, marcante, é característica de muitas de suas obras mais elaboradas. Dessa abertura mais séria e árida, surge um arrasta-pé modal, um baião cheio de molejo no qual violoncelo e violino vão se desafiando, sem perder os ataques reiterados de uma agressividade latente, como é agressiva a seca nordestina. A rítmica mais rude retorna, com a repetição de baixos ao piano, ou acordes insistentes no agudo, e dessa harmonia, brota desmembramentos em conversações timbrísticas. Um implícito rememorar de contornos melódicos villa-lobianos, e uma vez mais a emulação do baião: como se fora um baião telúrico, de uma terra rachada, num fundo de cacimba, e, em cada rachadura, uma lembrança espirituosa. A obra termina como começa, não sem antes um ponto final, também ao estilo de Villa-Lobos: uma tônica exclamativa.

O ciclo de seus Estudos Intervalares já em si merece um ensaio analítico exclusivo. Destaco a mimetização do mecânico, do maquinal presente nos estudos Das segundas e Das terças, com ritmo frenético em cachos de notas que mais parecem sintetizadas: idéias que se contrapõem e se ratificam a partir de trinados ou arpejos vagos e ressonantes. Já harmonizações comuns no jazz se ouvem no estudo Das quartas, sem que se perca um coerente motorizado canto indígena, relembrando novamente Villa-Lobos. Ou o pulsar de uma citação em ritmo de maracatu no Das quintas. E também o baião sem baixo fixo, no Das sextas, repleto de referências. De cantadores, como numa moda ou toada de viola do Centro-oeste, ou do ritmo bem nordestino com contorno modal, à valsa opus 64 nº. 2 de Chopin, em dó sustenido menor, numa intertextualidade bem humorada, misturada a partir desse que foi o intervalo eleito no século XIX como o mais romântico no repertório, sobretudo pianístico.

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O Nordeste de sua amada Nenem também se faz presente no Das sétimas, e o baião, dessa vez, bem autêntico quanto à marcação, é pulsado numa melodia simples e gingada, e com o incremento das sétimas arpejadas. Edino é mais Edino no Das oitavas, quando elabora um ritmo de mãos alternadas que progride cromaticamente e se encerra vibrante e viril: traço presente em diversas de suas obras. O Das nonas resume os anteriores no que de simbólico ou arquetípico o ciclo contém.

Instrumento primeiro de seu Edino é o violino. Não por outro motivo decidiu escrever uma Sonata solo em seu opus inaugural. É peça dedicada ao seu pai, músico que o conduziu nos primeiros passos da vida e da lida musical. A simplicidade de seu Edino o impede de reconhecer o valor para além da aprendizagem das formas barrocas. A interpretação é do mineiro Ricardo Amado que satisfaz o compositor, tendo sido o próprio violinista a sugerir a inclusão dessa obra histórica sobre a qual se pode traçar toda a trajetória criativa de seu Edino, até a mais recente, de que tive o privilégio de colaborar, honrosamente, na edição.

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A última obra do álbum é feita para os gêmeos Santoro. É uma emulação entre os violoncelistas, alçando uma independência de peça com forma e caráter próprios, numa das partes que constitui o destaque máximo dos solistas de um concerto. Cadência, num sentido de encaminhamento, de concatenação de idéias, também explora a tessitura do instrumento e desafia o instrumentista a explorar os recursos expressivos que o particularizam. Aliás, falando em particularidades, Edino, quando ouvido em diversas obras, salta-nos aos ouvidos, em estilo e jeito pessoais de tratar os sons, sua música é sinal indelével.


Por isso, diante de sua produção rica e diversa, mas de uma coesão admirável, além desse álbum, permito-me ainda falar de uma obra cuja vivacidade composicional é de um orgulho nacional como poucos feitos na atualidade: o Concerto Duplo para violões e cordas com arco [Edino Krieger: Concerto for two guitars & string orchestra]. Edino se congraça numa tradição perpetrada por grandes nomes nacionais como Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, os irmãos Siqueira; além de Osvaldo Lacerda, Marlos Nobre e o próprio Villa-Lobos e Guerra-Peixe. Ou ainda estrangeiros radicados no Brasil, como Ernst Widmer que foram felizes no uso sistemático dos contornos modais eclesiásticos, já com seus jargões nossos, dessas referências da rica região nordestina, muitas vezes, tutelada pelo sudeste. É como se Edino vestisse a couraça de vaqueiro e o chapéu que o caracterize como um sertanejo-catarinense, numa caatinga imaginária em seu coração e mente criadora. Mesmo assim, Edino se mantém simples, como um velho amigo do Brasil, em suas idéias (perdoem-me o saudosismo no acento...) que são tão ricas a ponto da obra poder-se estender por mais tempo, e Edino, no entanto, decide encerrar com simplicidade e sinceridade: marcas de personalidade inconfundível.

É lamentável que programas icónicos da televisão brasileira, como o Roda-Viva, por exemplo, nunca tenham pautado entrevistas com nomes da música como Mozart Camargo Guarnieri, José Siqueira, Francisco Mignone, Jamary Oliveira ou Edino Krieger. Ouçam Edino, ouçam o Brasil que há em seu Edino, ouçam-no em inteligência e perspicácia musical! Ouçamo-nos através de suas obras: é esse nosso dever enquanto diletantes, amantes das Artes, e percebamo-nos como apreciadores sinceros dessa nossa Arte própria, por meio desses nossos grandes referenciais.


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O calendarium eclesiástico luterano reúne diversos eventos litúrgicos dentre os quais o nascimento do Redentor é reiterado, relembrado e simbolicamente revivido. E vê-se na liturgia luterana que vida e morte são parte de um mesmo propósito: os ciclos do tempo calendarius são distintos e interligados, pois a vida a partir do nascimento de Jesus só se faz completa com sua morte de cruz, por condenação do pecar de muitos; foi por isto que ele veio ao mundo! E essa consciência é praticada em música, inclusive pelo próprio Martin Luther que, além de teólogo, foi também compositor.

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Em tempos pandêmicos, mais do que nunca, nos é escassa e imprescindível a existência de referenciais. Flui, nos países da América Latina, subterraneamente, uma riqueza incomensurável de Arte e fazeres que a contemporaneidade pós-moderna, tenta, a grande custo, liquefazer: ao achatar toda e qualquer forma de criação humana, procurando igualá-la indistintamente. Em música é urgente que se brade em alto e bom som: nem toda música é Arte! E isso precisa ser esclarecido, sobretudo nos ambientes acadêmicos, pois é lá, seja por fins de estudos, seja por interesses seculares de alimento do mal gosto,

Até onde pode ir a ruindade humana? ... Há vezes que estranhamos sobremaneira a indiferença, a incompetência moral e a covardia enquanto c...

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Até onde pode ir a ruindade humana? ... Há vezes que estranhamos sobremaneira a indiferença, a incompetência moral e a covardia enquanto conduta corriqueira nas relações, as mais diversas, e nos incomodamos. Mas, será que esse incômodo é suficiente para nos enxergar e criticarmo-nos até que mudanças sinceras e honestas ocorram dentro em nós? ... Será que nossas lotadas agendas, nosso sempre frenético corre-corre — mesmo em tempos pandêmicos, concedidos pela Natureza, ainda assim, não aproveitamos o tempo sabático para nos agarrar a essa lição... — para algum lugar que não sabemos qual, vale mesmo o preço de não praticarmos a verdadeira empatia? ...

A ruidosa contemporaneidade e suas vicissitudes tutelam a criação de muitos artistas. O reconhecimento do próprio punho, a  manu propria ,...

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A ruidosa contemporaneidade e suas vicissitudes tutelam a criação de muitos artistas. O reconhecimento do próprio punho, a manu propria, em autoria, tem sido algo discutível hoje em dia, senão diluído, num mundo pós-baumaniano, cuja liquefação de valores e princípios já afeta diretamente a criatividade em gerações de artistas.

Tocar piano não é mesmo nada simples ou fácil; mui penoso é o estudo, requer árduo esforço e perseverança inabalável. Quanto mais estudamo...

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Tocar piano não é mesmo nada simples ou fácil; mui penoso é o estudo, requer árduo esforço e perseverança inabalável. Quanto mais estudamos, mais nos damos conta do nobilíssimo mister, do dominar a Arte de tocar esse instrumento que sobrepuja a escrita musical desde sua criação por volta de 1711, pelo italiano Bartolomeo Cristofori di Francesco.

Viveu cabalísticos sessenta e dois anos: francês que chacoalhou a vida musical de seu país, Hector Berlioz nasceu no início do século XIX....


Viveu cabalísticos sessenta e dois anos: francês que chacoalhou a vida musical de seu país, Hector Berlioz nasceu no início do século XIX. Lembrando-me aqui de meu admirado professor Didier Jean Georges Guigue que, durante a graduação, apresentou-me seu conterrâneo de forma mais íntima e esmiuçada do que dele já conhecera até então. Um pesquisador do timbre, das instrumentações, seu livro sobre orquestração – tempos depois, revisado e ampliado por Richard Strauss, que com sua obra, muito aprendeu – é marco original até hoje.