OraçãoHildeberto Barbosa
As pedras paralisadas
me movem o espanto
nas veias dessa manhã.
É um domingo neutro
a se desdobrar sobre a pele
dos campos paralíticos.
Há uma enorme e sagrada
limpeza batendo forte
no meu coração.
Meu coração, bicho feroz,
atento aos decretos do sangue.
A vida também acode, aqui,
dentro do silêncio, do absurdo.
As criaturas cumprem
a caligrafia do destino.
O mais fino tesouro da terra
se converte numa oração
sem motivos. Opaca, laica,
salubre como o alho natural
que me governa.
Como o samba de Noel, chega a mim, em feitio de oração, um poema do Professor Hildeberto Barbosa. Música, oração e poesia têm algo em comum: a contemplação, o pasmo diante da existência e da complexidade de tudo que a constitui e que nos cerca, a transcendência do ordinário, a conexão com algo maior do que nós mesmos, o encontro com o extraordinário.
A vida é um fluxo eterno de criação e destruição, e o amor, nesse contexto, não é nem pode ser eterno. Não é fácil para a condição humana aceitar o fim, o encerramento de conexões profundas cultivadas ao longo do tempo, mas é preciso entender que relacionamentos, como tudo o mais na vida, não estão previamente e sem mais destinados a durar para sempre. Nossas experiências e circunstâncias influenciam sentimentos e sensações e é preciso aceitar que o amor pode passar por transformações e desafios ao longo da vida, podendo levar as pessoas, em algum momento, a optar por seguir caminhos diferentes.
Não é possível, como quando se idealiza romanticamente o amor, construir na vida real, com pessoas concretas, uma relação de fascínio e encantamento contínuos que sobrevivam às provocações esmagadoras do cotidiano. Compreender isso, bem como e principalmente aceitar, cada um, a solidão e o silêncio do outro, é sempre muito difícil, desafiador, mas é condição essencial para se fazer perene e duradoura uma relação amorosa.
Tocada pelos lampejos de luz dos recentes escritos dos professores Milton Marques e Helder Moura, lidos com admiração e especial interesse, venho a este ambiente.
No cerne do diálogo que se estabeleceu entre ambos estão os grafiteiros de Coimbra e sua anárquica vocação de independência e arrojo, seu sonho de uma vida acima das estrelas.
Ritmo lento, cadência suave, melodia envolvente e apaixonada, letras poéticas e românticas combinadas com arranjos orquestrais ricos e harmonias sofisticadas, o bolero é um gênero musical que se destaca pela capacidade de transmitir emoções e contar histórias de sofrência, amor e desilusão.
A música de Noel, que escuto nessa estranha manhã chuvosa de verão, expressa o último pedido do poeta a Ceci, dançarina de um bordel na Lapa e sua grande paixão. Fragilizado pela tuberculose e sob a ameaça da morte iminente, o poeta pede ao pianista Vadico, seu amigo e arranjador, que entregue aquela confissão apaixonada, e triste despedida, ao seu maior e inesquecível amor. Na noite boêmia e sedutora da Lapa, que acolhia os encantos e pecados de Ceci, ela, que trocara Noel por Mario Lago, recebe de Vadico o “Último Desejo“ do poeta:
O vinil começou a girar e o blue de George Brooks encheu a casa hoje cedo, enquanto eu, preguiçosamente, aguardava um café quentinho, saído da velha Bialetti que eu colocara momentos antes no fogo. Famoso nos anos 20, na interpretação de Bessie Smith, “SEND-ME TO THE ELETRIC CHAIR” chegava na voz vibrante e expressiva de Dinah Washington, paralisando o decorrer das horas e convertendo o cenário mais banal de uma cozinha, num reduto de melancólica “sofrência” e enigmática solidão.
Inteiramente fascinada, encantada, maravilhada com a narrativa profundamente humana de Annie Ernaux, concluí a leitura de PAIXÃO SIMPLES, uma obra de pouco mais de cinquenta páginas, intimista e introspectiva, espécie de inventário da paixão intensa e proibida experimentada pela autora por um homem chamado A.
Tenho especial predileção pelos escritores, poetas, pensadores da suspeita. Aqueles que questionam as verdades estabelecidas, desvelam as motivações ocultas por trás das ideias e instituições, desafiam convenções literárias e sociais, exploram a incerteza, a ambiguidade, a complexidade, as contradições da condição humana, reconhecem a tragicidade, a dimensão noturna, sombria, melancólica da existência e, sobretudo, confirmam o peso mórbido da moral, a sádica dimensão dos moralistas e dos sobejamente religiosos.
Propondo-se a uma arqueologia da noite, Helder nos conduz poeticamente a um mergulho no escuro de que nos constituímos e que é a própria luminosidade em sua força mais intensa. A noite remete à tragicidade própria da existência, à questão do nada, do abismo no qual estamos suspensos, como finitos que somos, mas do qual fugimos, perdidos na agitação incessante e superficial da vida pública, impessoal.
Viver e morrer, qual a glória? A pergunta, inscrita num poema de Professor Hildeberto Barbosa Filho, tem uma intensidade mágica especial. São versos de uma vitalidade agressiva que nos lança nas grandezas e misérias do que somos, enquanto inexoravelmente para a morte.
Deslizo sobre o meu velho caderno de receitas e me vejo repentinamente instalada na vitalidade de antigas cozinhas familiares, cujo poder de evocação vem da vida vivida ali, do afeto partilhado em singulares combinações de cores e odores, e dos sabores que dali saiam, até hoje incomparáveis, inesquecíveis. Não, não se falava em gastronomia, não havia supermercados. Minha tia comprava o “coxão” de porco no habitual vendedor de quem já era conhecida freguesa, e a batata doce, que tradicionalmente era seu acompanhamento, não podia vir de outro lugar que não daquele monturo acumulado no chão da feira pelas mãos de Manoel Cesário, que também vendia inhame e macaxeira, expostos do mesmo modo.