Bravíssimo, Maestro Daniel Barenboim! Feliz aniversário!
Se há uma geopolítica musical, Barenboim, que hoje completa 80 anos, é um dos grandes responsáveis por uma certa détente artístico-cultural na política internacional.
Em 2001, por exemplo, ele regeu, no Festival de Ópera de Israel, "Tristão e Isolda", de Wagner. Em 2002, conduziu a West Eastern Divan Orchestra em Ramallah, na Cisjordânia, quando a capital de fato da Palestina encontrava-se então marcada por fortes combates. Em 1998, com a Filarmônica de Berlim no mítico Waldbühne, abaixou a batuta e cruzou os braços para, num ato democrático inédito, permitir que a orquestra seguisse sozinha numa espetacular interpretação do Bolero de Ravel. Seguiu-se um estupenda ovação.
(Marcílio Toscano Franca Filho e Nathálya Lins da Silva)
Há um famoso poema de W. H. Auden que diz que o direito é como o amor. Auden escreveu a sua aventura sentimental “Law Like Love” há 80 anos, em 1939. Para alguns juristas, porém, amor e direito estariam em lados antagônicos da realidade humana. Permitir que o amor se articulasse com o jurídico foi mesmo visto como desvantajoso (“love as a disadvantage”), algo oposto à razão e ao comportamento econômico racional, em casos como Louth v. Diprose (1992), Da Yun Xu v. Fang Lin (2005) e MacKintosh v. Johnston (2013), julgados por cortes australianas.
Naqueles precedentes, assentou-se que o amor pode fragilizar a posição de um contratante, pois distorce a capacidade de tomar decisões racionais, que deveriam ser motivadas apenas por forças de mercado.
A cegueira, portanto, é, em certa medida, característica negativa do amor (personificado por Cupido) e nota positiva da justiça (personificada por Têmis).
Apesar disso, constituições de muitos países – democráticos ou não – trazem em seu texto principal ou no respectivo preâmbulo (Barbados, Egito, Filipinas, Eritreia, Hungria, Iraque, Coreia do Sul, Libéria, Líbia e Rússia, p. ex.) o verbo amar ou o substantivo amor, quer como fundamento do Estado quer como direitos ou exortações dirigidos a seus cidadãos.
Há, pois, um espaço amoroso em diversas constituições nacionais, como que a demonstrar a possibilidade desse diálogo.
Se dividirmos esse “amor constitucional” em categorias, é possível encontrar desde referências ao amor à pátria, à humanidade ou às crianças, até o amor à liberdade, à paz e à justiça social. A elevação do amor a essa categorização jurídica supralegal pode, pelo menos em parte, ser entendida como o triunfo de certa visão positiva do amor, da paixão e do sentimento e, portanto, contrária àquela concepção dos referidos tribunais australianos, do amor como cegueira, emburrecimento ou ignorância.
Múltiplas nações ressaltam em seu texto constitucional a preocupação com os direitos humanos e a vida em sociedade ao associar o amor seja à liberdade e à paz (Croácia, art. 3), seja à humanidade (Áustria, art. 5, e Filipinas, art. XIV), seja ao islam (Maldivas, art. 36), seja à justiça social (Croácia, art. 3). Na Áustria (art. 14), o amor, ainda, deve ser cultivado na educação dos jovens e das crianças, para que qualquer jovem possa, de acordo com seu desenvolvimento e curso educacional, estar aberto ao pensamento político, religioso e ideológico.
A Nicarágua (art. 5) fala em “amor ao próximo”, enquanto que a Eritreia (art. 9) eleva o amor a valor do Estado. Colômbia (art. 44) e Haiti (art. 261) também asseguram à criança o direito de ser amada. Há países, todavia, que preferem indicar apenas o amor pela pátria, como, p. ex., Bahrein (art. 5), China (art. 24), Kuwait (art. 9), México (art. 3), Moçambique (art. 120), Catar (art. 21), Arábia Saudita (art. 9) e Iêmen (art. 26), além da Venezuela (art. 278) que acrescenta o amor ao nativo, à terra às virtudes cívicas e democráticas e os valores transcendentais da República.
A história constitucional brasileira é uma história de muitos sentimentos à flor da pele. Em quase 200 anos de independência nacional, muitas foram as lutas, revoluções, ditaduras, guerras, reivindicações, golpes, redemocratizações e, obviamente, risos, choros, amores, ódios, gargalhadas e lágrimas no panorama político-constitucional. Apesar disso, nem a Carta atual do Brasil nem as anteriores apresentam qualquer referência explícita ao amor, embora as emoções permaneçam tuteladas e valorizadas em diversos setores de nossa ordem jurídica em vigor.
Há de se reconhecer, é verdade, que o amor é sentimento de manifestações complexas e variadas, e mesmo não guardando expressa referência constitucional, o amor e o amar podem encontrar amparo e reflexo nas entrelinhas da Carta Magna brasileira.
Aliás, o deputado Ulysses Guimarães, no seu famoso discurso de promulgação da constituição, pronunciado em de 5 de outubro de 1988, perante a Assembleia Nacional Constituinte, afirmou esse substrato amoroso da Carta Magna cidadã: “Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam. (…) A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo”. Fazer sem medo é fazer com coragem – COR-AGEM, “o agir com o coração”.
O prof. Stefano Rodotà, grande jurista italiano, quando do lançamento do seu clássico “Diritto d’Amore”, constatou: “Com’è povero il diritto se non parla d’amore”. Decididamente, o direito constitucional brasileiro não padece dessa pobreza. Acompanhando as palavras de Ulysses Guimarães, há de se reconhecer que na Carta de 1988 também vibra o sentir amoroso, tolerante e respeitoso pelo outro.