Palavra francamente em desuso: caritó. Tem os seguintes significados: casinhola tosca, atribuída a quem fica sem casar ou prateleira rústica colocada em paredes. Isto em tempos atrás, quando a honra da donzela precisava receber a anuência civil e religiosa (até da delegacia). Seguia os traços da moralidade predominante ou era considerada pústula na sociedade; quando, no extremo, o pai, em nome da honra da família, a desterrava a algum cabaré, ignorando-a fatalmente.
A ladeira da Rua da República, vinda dos lados do mangue do rio Sanhauá, passava pelas fábricas. A Matarazzo, a de bebidas, descaroçadora de algodão e desfiadora de agave. Pinica levantava cedo, o balde de leite percorrendo as ruas sonolentas. O céu indeciso. Nem noite, nem dia. Ele entregava a voz explodindo na calma do amanhecer.
A Utopia é imponderável, real e possível. Quem cultiva a Fé na continuidade, em contraponto à propalada finitude humana, sabe conviver com a Realidade Última. A serenidade amanhece constante no complexo construir-se de cada pessoa. Mesmo em tempestades, a Esperança da Claridade se mantém firme. Há abrigos no descanso que antecede a experiência mais íntima e integrada em Deus. Existe em nós, os que maturam na adesão à Palavra e aos ecos retumbantes das afirmações do Ressuscitado, uma vocação,
Os montes curvos, em suas cabeças de pedra talhadas pela sucessão dos séculos. Em suas solidões demarcam temporalidade de que ninguém tem conhecimento. Desafiadores em seus sepulcrais aspectos, mudos e surdos, quais esfinges esculturadas pela natureza. Em seus aspectos e formosuras não veem nem escutam, totalmente pétreos e paralisados, deitados para sempre, a descansarem dos tormentos da obra esculpida pelos transtornos da evolução, em desmoronamentos e reconstruções fenomenais.
Bem, é só um pequenino momento fotográfico. Em poses, uns de pé, outros sentados. Não me lembro quem acionou a Kodak. Um de nós. Ficou ausente do grupo, da turma do ginásio. Sei que a pequenina foto me carregou à Praça São Francisco e de olhos úmidos. Revolvi a cena tão passageira, desinteressante a quem está lendo esta crônica. Mas volto atrás: quase todos tiveram esses encantos grupais dos colegas de escola. Duvido que, me lendo agora, deixe de retroagir no tempo e captar a cintilação, mesmo rápida, de algum lugar no passado.
Há postes acesos, luz amarela se esvaindo pelo chão das ruas recônditas. Gente sobrada da sociedade dos abastados, as mochilas nos recantos, fumaças em tiras flutuantes e se evolando pelas rachaduras das marquises. Naquele conglomerado de esquecimento, são marcados pelas rugas da pobreza em seus rostos com expressão de choro e de dor. Sobre as calçadas esburacadas procuram se esconder na noite.
Os amigos e colegas vão se encantando, vivos ou não. Outro dia, na passarela do calçadão da Duque de Caxias, deparei-me com um deles. Não vou revelar o nome. Questão ética. Fazia parte de um grupinho que se reunia por ali, puxando do Ponto Cem Réis para a Praça João Pessoa. Conversa vesperal a discutir os sinais da vida. Ele se disse afugentado pelos anos, temia revelar o tanto estava anotado na caderneta. “Já não sou criança” – a idade escondida, disfarçada, escamoteada, envergonhada de se expor.
Via-o, em pijama, percorrendo a sala da casa estilo frontão e ligada às outras, ao lado da Catedral, onde morava. Magro, nariz aquilino, ele sobrava na vestimenta íntima e doméstica que usava. Era-me um enigma. Moço estudioso, entregue ao saber, vasculhando as páginas recheadas de conhecimentos. Jamais teria a ousadia em aproximar-me do parapeito da janela sempre aberta, a fim de conversar com ele. Era eu estudante no Ginásio “Lins de Vasconcelos”, do saudoso professor Manoel Neri, que morreu há alguns anos, bem velhinho, nos noventas e que, pela última vez, vi atravessando a movimentada Avenida Epitácio Pessoa, a desafiar carros ligeiros e obstáculos de calçadas desniveladas.
Estava ali, rosa desfolhada. Cuidava de suas ausências, entre o quartinho e o terraço, gestos e sons guturais. A custo se deitava na rede armada. Ali, estendia as recordações, no remanso de um passado variado em família, amigas de juventude, passeios, enfim, enquanto lúcida podia movimentar-se, ao trajeto da vida longa. Viu surgirem os cabelos brancos, a pele se tornando rugosa, o corpo
combalido e as rendas da flacidez nos braços. O calendário dos anos a trouxera através de nove décadas e meia. O máximo que fazia era folhear revistas, repassando figuras, que se tornavam embaçadas, gelatinosas em seu pouco ver. Aos domingos, cuidada pela funcionária, lhe era posto um vestido meio esgarçado na gola e gotas de perfume, após o sacrifício de um banho que lhe atiçavam as dores do reumatismo. Sentada na cadeira de balanço fingia esperar visitas da família. Repassava os rostos distantes. Fazia-os próximos como que a delirar. Chamava pelos nomes que não lhe davam respostas. Ela via os familiares em derredor. Somente ela.
Nem se pense em preconceito: mas o personagem é pesadão em quilos. Não consegue passar por uma lanchonete sem que a invada. Muitas vezes (e a escutei comentando com amiga íntima) fica esperando que a fritura chie e lhe venha ao prato com o pastel enorme (tipo família) e de um gelado refrigerante.
Fui colega de Joaquim Lins, no curso ginasial, Colégio “Lins de Vasconcelos” conduzido pelo Prof. Manoel Nery. Quinca era gordo, bigode tímido, cara arredondada, primo do famoso escritor paraibano José Lins do Rego. Um orgulho secreto do colega que não fazia alarido do parentesco com o autor de “Fogo Morto”. Este tido e havido pelo intelectual maranhense Josué Montello como o melhor romance da geração de 30.
Escolheu por mundo as imediações da cidade mordiscada, em desalento, ornada de incompreensíveis pichações. Desmandos de noites, escritos intraduzíveis lavrando as paredes dos casarões ao abandono. Por ali dominavam as tribos daqueles que se entregavam a vícios e desmantelos, a procurarem fantásticas aventuras. Mas se propunha a uma missão: fazer-se com eles, numa tentativa em recuperar vidas em desalinho. Torturas de quem se achava escolhido à redenção de jovens, adultos, enfim, gente tragada por nuvens espessas.
Alugou uma casa, ele mesmo preparava as refeições, disposto em fé e destemor. Iria, pensava, interpretar o mistério das inscrições nas almas das pessoas decepadas que optaram por aquele viver. A maioria jovens, uma lástima. Motocas envenenadas estacionavam próximas a um galpão. Formava-se a conspiração. Os moradores dos becos e sobrados se achegavam aos motoqueiros. Cantavam músicas, tocavam guitarras. Refugiavam para a reunião acontecida semanalmente.
Ele observava o alvoroço de uma juventude anestesiada por práticas estranhas, falando uma linguagem adversa. Escutava a algazarra, as danças, o espírito de resistência a regras pré-concebidas, a aversão a normas vigentes na aldeia de adultos maduros, velhos. Como tomaria alento para familiarizar-se com eles ainda verdes? Olhava-se a si mesmo e se aceitava já avançado no tempo.
Uma noite, aproximou-se. Foi chamado de coroa. Começou a compor a roda. Uns bebiam, outros tragavam. Tomou com eles uma dose de cerveja. Ganhou-lhes a simpatia. Foi notando que era uma fuga deles aos ditames férreos de uma educação que lhes exigia cumprimento de ordens, obediência subserviente, e se refugiavam naquele espaço privado, sem intromissão de ditadores de comportamentos arcaicos. Todos tinham as pichações nos corações inquietos.
Perguntou se eles acreditavam em Deus. Silenciaram. Uns esboçaram um riso sarcástico. O homem abriu uma carteira e se identificou como padre. Entreolharam-se surpresos. Abriu o coração e o sorriso para eles. Muitos vieram abraçar o sacerdote. Muitos deixaram de frequentar aquele mundo. Para sempre. Franco milagre.
A rua onde a rapaziada ia em busca de caçar borboleta ficava no centro. As casas se equilibravam em desalinho, roupas estendidas nos varais, principalmente lençóis encardidos, tomando sol forte ou a fresca do dia seco.
Praticava halterofilismo. Era neto de um campeão de luta livre. Sangue puro. Vencendo as discórdias da família que o queria numa rinha de paz, insistia em levantar a taça, qual galo de briga criado pelo tio, a fim de fortalecer o moral da raça. Eram pobres, humilhados, embora honestos.
A vida de Bastião não era um poço, mas uma cascata. Sonhava com tudo e em galgar posições restritas a quem já chegara ao topo da pirâmide social. Nunca se acostumou com o miserê em que se criara.
Era gordo. Nem tão balofo como se pode imaginar. Mas sobrado em banha. Pelo que soubesse, encantado com a cozinha. Empilhara algumas caçarolas de alumínio, outras de barro paradas no chão batido. Logo após terminar a construção da média barraca de madeira agarrada ao muro exterior da fábrica de refrigerantes, veio nos pedir água e começar a amizade conosco.
Quanto relógio de pulso ou mais antigos, de parede, abrira com percepção cirúrgica! Com o socorro do monóculo ia desvendando com um estilete as entranhas do aparelho de marcar o tempo. Puxava pedacinhos minúsculos, quase invisíveis a olho nu e encontrava o defeito que impedia o bom desempenho do relógio. Sorria feliz. Às vezes, um simples ajuste ou uma pilha vazando, algo simples até o colapso fatal da máquina. “Só outro, meu caro!” O dono quedou tristonho: um presente de aniversário que comemorava cinquenta anos...
Trabalhei com Dr. Lucas Suassuna, irmão do imenso escritor Ariano Suassuna, na Assessoria Jurídica da Universidade Federal da Paraíba (departamento extinto, há tempo). Ele nos considerava colegas, no mesmo nível dele, nosso chefe. E nós, eu, Luiz Graciano Cabral, de saudosa memória, éramos aprendizes, recém- saídos do forno do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais (era o nome oficial e pomposo do Curso de Direito da velha Faculdade, cujo prédio histórico ficava na Praça João Pessoa). Dr. Lucas era um homem simples, sem se deixar coroar por petulância de cargo e outras medíocres miudezas.
Não me venham confundir o papagaio com o “Urubu Malandro” composto por Pixinguinha. O choro do mestre é obra prima. Pixinguinha, como sabem, faleceu, em estado de graça, ao participar de um batismo. O Brasil lamentou, chorou a perda do grande compositor e músico.