POEMAS DO LIVRO “SONETOS EM CRISE”
(Editora Mondrongo – 2019)
O QUE NÃO CABE
A forma contida - este imbroglio,
amarras de cizal ao vento,
feixo de palavras, regalo,
falso cabedal de um momento
do poeta diante do espelho,
de um olhar vaidoso, soberbo,
lidando com a morte dos tolos
no penduricalho do verbo,
não basta ao real esquecimento
retinto por outros no tempo
como transitório alento.
POEMAS DO LIVRO “SONETOS EM CRISE”
(Editora Mondrongo – 2019)
MASSA DE PÃO
O dote, esta maçã mordida;
A voz, esta tinta de estar
Nome, fugaz expectativa,
Moinho dos ossos, o lar.
Resmas, orvalhos e os espectros
Restam postos, nomeando dias,
Fermento gestando o passado,
Massa de pão, refluxo, azia.
Sempre é oportuno relembrar que a leitura atenta de um livro começa pelo nome com o qual o autor convida o leitor à leitura – sobretudo quando se trata de um livro de poemas. O poeta costuma buscar a densidade em cada palavra, um visgo que grude na capa toda uma carga de significantes e emoções transfigurados em linguagem.
No final do século XVIII o pastor, teólogo e filósofo alemão, Johann Kaspar Lavater surpreendeu Goethe com a sua capacidade de dizer sobre a personalidade das pessoas a partir da análise da expressão facial, características físicas e a postura corporal. Lavater ficou conhecido pelo seu livro Fisiognomia e por sua amizade com o jovem Goethe e com o médico Mesmer (criador do mesmerismo).
"A invenção da imprensa é o maior acontecimento da história. É a revolução mãe... é o pensamento humano que larga uma forma e veste outra... é a completa e definitiva mudança de pele dessa serpente diabólica, que, desde Adão, representa a inteligência."
(Victor Hugo, Nossa Senhora de Paris, 1831)
O exercício era recortar o jornal
picotar as palavras
lançá-las no aquário
as bolhas de um solitário peixe
tratavam de desmentir
qualquer verdade
POEMAS DO LIVRO “SONETOS EM CRISE”
(Editora Mondrongo – 2019)
ERA UMA VEZ A UTOPIAPara Renato Suttana
Será possível conservar acasos,
ruas sem rumo e pastos sem cerca?
As cortinas não expõem a tristeza,
o crepitar, o tremor, o espasmo?
Deixem que os mortos testemunhem a dor,
o vibrar ensurdecedor - silêncio,
cada tambor reverberando o ócio
dos que violam o que do amor restou.
POEMAS DO LIVRO “SONETOS EM CRISE”
(Editora Mondrongo – 2019)
Nota do autor
Crise do soneto ou crise do poeta? Falamos da imperfeição métrica, da inacurácia do esteta ou da pobreza técnica?
Impor-se a necessidade das formas fixas, de por “amarrados” os versos que se firmaram como libertos ao longo dos anos de produção poética – este o objetivo do poeta.
POEMAS DO LIVRO “O ORNITORRINCO DO PAU OCO”
(Editora Cousa – 2018)
EU ME APRESENTO
Há que se entender ou não o ornitorrinco do pau oco?
Eu, por exemplo, vivo em busca de algum autoentendimento. Só recentemente, relendo uma definição do Breviário da decomposição de Emil Cioran, é que me descobri um pessimista entusiasmado.
POEMAS DO LIVRO “O ORNITORRINCO DO PAU OCO”
(Editora Cousa – 2018)
BESTAS, BEATS E BEATOSNa medida em que o olhar poético flui
do verde para o concreto,
muito se perde.
Cabe devastar a poesia,
arrancar a relva,
desgastar a terra,
impregnar de concreto
a carne
e esparramar ao sol
a pele tatuada dos homens?
O non sense,
em dizer:
Maldito deus.
“Sem poesia não há salvação”, escreveu Mario Quintana. Sem dúvida, uma das pessoas que têm plena consciência desta sabedoria é Jorge Elias Neto, que vem há muito se dedicando à poesia. Neste O ornitorrinco do pau oco, traz-nos ele uma coletânea de seus primeiros quatro livros publicados e poemas inéditos. Segundo Carlos Nejar, o poema de Jorge Elias Neto é “feito de chispas”, o que é uma observação perfeitamente correta. Mas também de sua composição fazem parte – como Nejar também nota – o sonho, assim como o lirismo e, claro, a condição humana de um modo geral.
Os pés dentro da ilha
Falar da superfície,
o que envolve,
encharca
e afoga,
o que gruda nos pés
– mangue e areia –,
o cinza absoluto,
o verde disperso
nas frestas e espelhos,
CansaçoAmor: quantas palavras necessárias para que um gesto se torne inscrito no tempo?
Hilton Valeriano
Não me presta,
não me cabe
o alforje de palavras,
a pretensão de
um discurso;
supor que a
obviedade
de um soluço ocupe
mais que um segundo
de um tempo que
se desfaz
e não cabe nesse
cabedal
polvilhado de tolices;
Um resto de sol no desalento
Ocupo-me de uma febre
sem propósito.
Modos existem
de forjar os dias,
principiar universos,
rir do descomunal
segredo da vida ...
Mas não nessa noite gelada
No fue un sueño,
lo vi:
la nieve ardía.Ángel González
Compondo o sítio arqueológico
A vastidão
é uma pedra
redonda e fria.
Grande esfera
onde deslizam
e desabam as criaturas.
O horizonte ‒ gelo
intransponível.
Daí esse tatear – essa procura.
A obscura arqueologia de esconder-se.
70 metros*Na perspectiva da ponte
O pássaro solitário não volta.
Bom sentar aqui...
Gera um desvio do olhar,
um torcicolo súbito
diante da emanação do absurdo.
Ver do alto a evolução das águas:
sem o murmúrio
do bocejo das ondas,
sem o grito ruidoso do
rasgar do mar.
Imagino os que trafegam às minhas costas ...
Nas gaiolas de metal,
guardam as intenções dos gestos.
Uma carteira e seus sentidosàs crianças de Realengo
Observe essa carteira vazia
– ociosa –
desocupada.
Entre na dimensão do absurdo
– no que se contorce –
e resvala,
e desperta,
e nos cala.
Observe essa carteira vazia
–ruidosa–
maculada.
Ventre da omissão confusa
– que nos paralisa –
e enoja,
e perpassa ,
e retalha.
Observe essa carteira vazia
– poderosa –
enfeitada.
Lembre-se da profusão do sangue
– que se dispersa –
e tinge,
e respinga,
e nos entala.
Observe essa carteira vazia
– fervorosa –
devotada.
Sinta a celebração da loucura
– que consente –
e trucida,
e cega,
e nos abala.
Observe essa carteira vazia
– tenebrosa –
malfadada.
Sinta a emanação do ódio
– que se alastra –
e devora,
e abraça,
e nos trespassa.
Observe essa carteira vazia
– silenciosa –
abandonada.
Crente na devassidão do mundo
– que surpreende –
e ignora,
e reproduz,
e nos arrasa.
Observe essa carteira vazia
– deliciosa –
delicada.
Prenhe de ilusão confusa
– que consente –
e insinua,
e seduz,
e nos agarra.
Observe essa carteira vazia
– espaçosa –
desejada.
Ciente na criação do sonho
– que compreende –
e ama,
e perdoa,
e nos concede a graça.
O poema acima de mim
Se disser tudo,
me restará a última mentira.
Mas, rente ao chão,
toda mentira resvala na inutilidade.