Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-los?
(Vinicius de Morais)
Inexistem registros cronológicos e afetivos que permitam perscrutar os vácuos e abismos que se materializam entre avós, e sobremodo, pais e filhos. Os nossos antepassados, e os atuais pais convivem com minguadas proximidades afetivas que se estilhaçam e ferem os sentimentos dos que, contrariados, ingressaram em idades provectas. Homens e mulheres submetidos à ditadura do tempo, espremidos pelas insanidades corpóreas, vão celeremente caminhando nas veredas dos finais de vida perdendo os laços afetivos com os filhos.
Deslizam nos ventos das recordações, fatos, pessoas e datas que assomam renitentes na nossa existência. São eventos e situações vividas que ficam tatuadas na memória como marcas insepultas. Não emergem de lembranças adormecidas no meu subconsciente, elas estão esculpidas numa desperta e ativa consciência. Estão sempre à mão. Precipitam-se ordenadas por um breve olhar sobre as sendas e passos vividos. Sem qualquer esforço memorial se derramam sobre meus ombros dias, fatos por vezes convulsos, datas e imagens de cumplicidade com pessoas que encenaram atos vivenciados no torpor de violências e injustiças ditatoriais.
Há 63 anos, em 25 de Julho de 1959, consumou-se a morte de meu pai. Morrer aos 51 anos de uma forma dolorosa e impiedosa como a dele será sempre inaceitável e injusto. Sem rancor, a única coisa que ele repetia constantemente – "Minha Virgem Santa Mãe Deus, me conceda mais alguns anos para meus filhos, eles são tão pequenos ainda". Não fora atendido ao tão desejado e doloroso desejo. A ele foi concedida apenas a graça de interromper o sofrimento. Como o previsto, o seu generoso coração não resistiu ao excesso de morfinas que contribuiu decisivamente para encerrar o seu ciclo infernal de dores lancinantes provocadas por metástases ósseas.
Cada uma de nossas felicidades encontra no afeto e no amor suas mais elevadas dimensões humanas. E quando elas se amalgamam numa superior e única entidade, derivada da presença, condição física e afetiva em um só tempo de viver os dois maravilhosos cenários: o de pai e avô, é algo indescritível, sobretudo, quando o critério da verdade é o afeto liberador. A vida nos propicia caminhos surpreendentes quando o lirismo amoroso nos cristaliza pelo advento de ser e de desfrutar esta múltipla vivência. Tudo à conta do afeto e do amor.
Há mais de 65 anos, meados e final dos anos cinquenta, me vejo ainda hoje mergulhando num cenário infantil da Praça D. Adauto em frente do Palácio do Arcebispo onde reinava D. Moisés Coelho. Na Praça do Bispo, dividida em três seções ajardinadas, eu e um grupo de meninos usávamos intensivamente a primeira fração defronte ao abrigo pastoral de benemerência do Padre Zé Coutinho para nos reunirmos, jogar bola e exercitar nossas habilidades com bolas de gudes. As adquiríamos no Armarinho do mal humorado Seu Viana, na Rua Direita. Éramos muitos, e todos moravam na Visconde Pelotas, Rua Direita, na Conselheiro Henriques, e na Rua Nova, a da Catedral.
A geografia tem sido injusta e arredia com Gonzaguinha. A Paraíba, neste sofrido Nordeste, rarissimamente tem os seus talentos reverenciados. Triste terra onde ruge o vento nordeste. Sempre admiti que ninguém nasce na Paraíba impunemente. A história do Neguinho Gonzaga é a história de um sobrevivente que escapou da cilada da mediocridade que poderia ter lhe imposto o castigo de ser apenas um barnabé do massacrado e inerte do funcionalismo público. Refugiou-se como um apátrida na sua superior Inteligência e domínio das letras, e, passo a passo, dor a dor com sua humildade e grandeza, teve reconhecida por muito poucos a sua extremada eloquência literária. Tornou-se um arauto, e competente espião da alma humana da sociedade.
Debruçando-me, e sendo genuflexo, rogando a mesma a benevolência da minha ousadia ao desejar seguir os inimitáveis passos de sua proficiência literária, alcei como um colibri indo ao seu encontro num voo curto e célere na sua bela caminhada até o Lyceu Paraibano. Como um colibri alvoroçado fiz de cada uma de suas frases a coleta de néctar inspirador. Colhi-os e, impetuosamente, muito longe de seu estilo escorreito e amoroso, acompanhei-a nos seus passos e olhares sobre o nosso Lyceu. E como Ângela deixou “as portas abertas”, sem querer sombreá-la, como um infante espião, segui-a vendo “presenças, vozes, risos, emoções” da alma e do coração daquele altar do saber.
Caríssimo Germano, vez por outra recorro, com uma certa renitência, e pergunto-me se você tem ciência da dadivosa importância de sua contribuição à cultura, exercendo a sua nobre função de menestrel literário. Pelas suas mãos se cristaliza quase um Thesaurus de belos e profundos textos de dezenas de autores que nele expõem suas perplexidades, lindas lembranças, sentimentos afetuosos, veias poéticas, cotidianos inusitados, paixões reprimidas, alegrias memoráveis, afagos, repentes iracundos e tantos outros escritos, que deles poder-se-ia se confeccionar uma rica taxonomia dos assuntos emergentes.
Debutava o ano de 1979, o primeiro dia de Janeiro, dezoito horas, eu rumava para o Recife depois de uma feliz noite com a família. Tinha uma importante reunião no Governo de Pernambuco no dia seguinte tinha que estar no Recife.
No leito da estrada tudo fluía tranquilo, conduzia com calma nas proximidades das Sete Lagoas perto do acesso a BR 101. Na margem esquerda distingui um coletivo estacionado num precário acostamento, e vi que algumas pessoas pelo lado traseiro do ônibus pessoas se precipitavam para atravessar para o lado oposto da pista.
Meus pais, a Rússia e dias felizes de deslumbramento
Retorno sempre às minhas lembranças, como filho pródigo do afeto e da felicidade vivida na infância. Transpira em mim sempre o prazer de revolver emoções por vezes pesarosas que latejam num distante passado. Diante de mim tenho a cumplicidade de uma xicara de café ladeada por um cigarro que arde solitário e sonolento, e ambos acalentam os meus nervos, que resistem à solidão, impregnados de fumo e de cafeína. Solitária, uma página em branco se exibe provocativamente, expondo-me a sua virgindade.
Lindas lembranças que têm se assenhorado de minhas noites — e possivelmente do “inconsciente” aliado à minha percepção — me fazem exaltar o feliz momento, sabendo que daqui para frente a vida me regateará menos tempo. Passo a valorizar o que ainda pode me restar de felicidade em minha adormecida memória. Imagens esquecidas em profusão levam-me ao Recife, e a um tempo ímpar que lá vivi. Retorno à ruas da Aurora, do Imperador e da Imperatriz, com todos os seus cafés e sorveterias. Vou até a Viana Leal, com a sua icônica escada rolante, e também vejo a Sloper, tão reverenciada por minha mãe.
Desde algum tempo, recorrem à minha memória passagens infanto-juvenis, fazendo aflorar e reencontrar os meus Mestres e Mestras, os quais, por suas mãos, me conduziram aos umbrais do conhecimento. Foram fundamentais a convivência e o aprendizado nos bancos escolares, quase sempre sisudos e vetustos. Lembro-me, com precisão, de Irmã Cristina do Colégio das Lourdinas, que me acolheu, aos cinco anos. Ela, admirável e impenetrável sob o seu puro e alvo manto, era dona de beleza cúmplice, dotada de uma delicadeza que me seduziu.
Tempos difíceis neste presente, que nos conduz a revisitar o presente passado, e, se possível, mergulhar no presente futuro, como nos ensinou Santo Agostinho. Neste mergulho ao passado, tenho incessantemente procurado ir a lugares, procurado amigos que o tempo e a distância esconderam. Buscando reeditar velhos e bons afetos. Foi assim que encontrei Cristovam Buarque, com quem tive uma grande convivência na diáspora parisiense durante a ditadura.
Espreitando o espírito iluminado de Gonzaga Rodrigues, lendo a sua bela crônica sobre a Rua Direita, agressivamente chamada pelos ignaros extemporâneos de Duque de Caxias, e por todos aqueles que ignoram a dimensão secular das ruas da Parahyba de então. Rua Direita que na memória fisiográfica “urbana” sempre foi, e para os que têm a dimensão sentimental desta cidade, ela, sempre será a artéria que secularmente irrigou com alegria a nevralgia do centro desta cidade.
O escrito do Neguinho Gonzaga me aguçou o desejo de dedilhar e rever os meus passos na infância e na juventude sublimando cada passo, e em cada olhar, revi e vivi com felicidade a Rua Direita. Ela era um dos meus apreciados endereços afetivos.
A rua dos meus avós, dos amigos da infância e adolescência. A rua da primeira paixão aos 13 anos em que os hormônios despertaram para o sentido de um amor ainda infantil. Declarei-me timidamente: você quer ser a minha namorada? Ela fez um afirmativo e discreto e lindo sorriso. Não passamos desta mise em scène sem palco e sem atos. O tempo nunca esmaeceu aquele primeiro amor.
A minha caminhada reluzindo da memória, começou no Cruzeiro do pátio de São Francisco onde com dificuldades nos meus dez anos tentava escalar aquele monumento. Era o terreiro de Quincas Brito, com quem batia pelada com ele, Castanha e Péricles Ombreira. O adro da Igreja, as largas calçadas da Rua Nova, a quadra do Lins de Vasconcelos era o nosso chão onde proliferavam grandes topadas.
A memória me conduziu em lentos passos a rever o belo casario, iniciando pela Academia de Letras que pertenceu a recatadas professoras da família Mesquita. Olhando a margem direita, fiquei imaginando Orlandinho, e Maria Santiago née Cavalcanti, esta uma das mais belas donzelas da minha geração. Tinha cabelos pretos e sedosos como as asas da craúna vide Iracema a virgem dos lábios de mel. Ao lado da casa deles, havia morado o Juiz Maurício Furtado, pai de Celso.
Ao lado, pude distinguir o casarão de Seu Sassá Norat que recolhia os travessos Hardman, Ives, Badu, Marquinhos e muitos outros filhos que faziam travessuras na vetusta rua. Os meus passos, se paralisaram diante da casa de meus avós Luiz e Carolina Lopes de Mendonça. Lembro-me de uma frondosa goiabeira na qual minha delicada e culta avó pendurava suas peneiras com passas de caju. Eu e os primos, especial Beto Oião dizimávamos sempre as suas sedutoras passas.
Pude ainda sentir ressoando os chamamentos das minhas tias Lucila e Bernadete: "Franz — era o meu apelido —, sai da rua menino". Desobediente prossegui e me postei diante da casa do Professor José de Mello e D. Maria que abrigavam, entre muitos filhos, o grande e valoroso Humberto, e, entre outros, Gilson, o Caveira, Heraldo e Celso. Educadas e recatadas, pude ver os vultos de Maria Lúcia e Maria Helena. A grande e serena Maria Lúcia que sempre percorreu a sua trajetória humana, como médica e mulher com a grandeza de um ser superior. A minha queridíssima Comadre, que se casou com meu primo Carlinhos, e que me concederam esta honraria muitos anos depois.
Mais à frente, a memória me reeditou as imagens infanto juvenis de Gabriel, Zé Elias, Chico e a formosa Ângela, todos os rebentos de Sr. José Metri. Nesta mansarda, residia também o meu estimado e atencioso professor de biologia Antônio Augusto de Arroxelas, a quem chamávamos jocosamente de espirilo.
Andava espionando as casas, apenas ouvia as risadas e as brincadeiras, das quais eu sempre participava com os pupilos de Waldemar e Ivanda Nunes do Rego, pais de Leninha, Francisco Eduardo, o Babinha, Ani e Leonor. Na primeira esquina dava para sentir o halo do brilho e da beleza de Selda Rolim, irmãzinha do inteligente e bem comportado varão Sergio Rolim. A casa dos avós deles, em sua sala, ostentava uma rara beleza ornamental do forro de madeira finamente lavrada no estilo neoclássico.
Do terraço de Ivanda sempre acenávamos para o Padre Juarez Batista, o nosso Juju, cabelos revoltos, e que ainda ajeitava a embaraçosa batina, sempre atrasado ia para a Catedral. Figura luminar, que quando descia a Rua Direita levava horas, proseando para chegar ao Ponto de Cem Réis. Era muito querido e admirado.
Prosseguindo no lado direito, me acomodando, passei a recordar apenas os apelidos que começaram fluir à margem da residência de Seu Ciro, dono da loja o Faqueiro, que sabia ser o esconderijo de Xaréu e Albacora, e de Ciro, o seu filho mais velho.
Na sequência, não me contive em observar as moradas de Lúcio, Pé de Valsa, e a sua bela irmã Lucinha. Ali em frente, estava o Armarinho de Seu Viana, que nervosamente irritadiço nos atendia
quando íamos comprar bolas de gude e outras indefinidas bugigangas. Não ligávamos para o grau de insuportabilidade demonstrado ao nos atender sempre com o indisfarçado mau humor: "Vão querer o quê?"
A memória me vaticinou a fazer o reconhecimento dos múltiplos personagens pelos apelidos, muito dos quais foram irreverentemente gestadosno Pio X e nas peladas. Foram os casos de Marcelo Piola, Catabi, Catapora e Catapeba os gordinhos que não economizavam os sapatos Clarks chutando as pontas de calçadas. Vizinho de Roberto Peru, era a Casa de Eudoro Chaves. O apelido Peru viera de cenas cômicas do Pio X, em que ele secundava o velhinho Irmão Anastácio que cuidava de um criação de muitos perus.
Passando pelo Beco da Companhia de Comércio PB/PE que existira no século XIX, e que desembocaria na Maçonaria da Rua Nova. Em seguida divisava a Chefatura de Polícia com o seu repelente camburão, uma Chevrolet preta 1948, da RP, a rádio pancada, guardada repressivamente por Balbino, um policial que não hesitava em invocar o seu bastão de borracha. Ele era terror dos incipientes delinquentes. Balbino respeitava apenas Newton Borges — amigo de meu pai —, que valentemente o surrara na calçada-bar do Cabo Branco. Perto dali, podiam-se ouvir os gritos abafados que vinham dos confessionários. Reinava o Capitão Belmont.
Defronte à Chefatura, estava a Praça Rio Branco, que frequentava assiduamente lá trabalhavam na bela agência dos Correios a minha mãe e a minha tia Bernadete. Passava timidamente pelo suspeito bar do Camonge, cujo dono era deficiente de um olho, frequentado pelos pés de cana, que bebericavam, e tinham por parede um caldo de ovo de boi que era propagandeado numa lousa – Caldo de colhões. À frente ficava o Foto Stuckert, onde podia se divisar Guilherme, que secundava o pai.
Ao lado da Polícia, e sob a sua proteção, se homiziava ordeiramente uma figura com singular nome de Luiz de Marillac, casarão que abrigava também a escola de datilografia de D. Alzira, minha professora, que não hesitou em me dizer: Meu filho vá fazer outra coisa, faz uma semana e você não consegue passar do a s d f g, o primeiro exercício. Você será sempre dedógrafo. Revoltado, fui embora... semi-desmoralizado.
Capítulo II
No lado direito da Rua Direita a curiosidade me empurrava para ver as bacanas se lapidando pelas mãos de D. Edith, a cabelereira mais famosa da cidade. Vizinha estava a redação do Jornal O NORTE. Nunca adentrei, mas ouvia os sonidos tipográficos. Quase em frente estava a Farmácia do Seu Teixeira, que era vizinha ao Restaurante Lido muito frequentado pelo meu pai, amigo que era do Coronel Fialho, e de Inácio Pedrosa, os donos, sempre atenciosamente atendidos pelo garçom Cobrinha.
Na esquina da Rua Direita com o Beco da Misericórdia, estava a imponente sede do Cabo Branco, que com frequência ia ver os habitués do xadrez, lembrei-me de Yves Beach desafiando Chico Espínola, Arnaldo Tavares, ou Ivo Bichara, ameaçando sempre os concorrentes com seus xeque-mates. Era imbatível no relógio. Havia várias sinucas, mesas de jogos de baralhos onde foram destronados muita gente abonada, e o indefectível Pelé Tuxaua dos Índios de Mandacaru. Fazia um café irretocável. Sempre dava uma espiada nas vitrines da Livraria de Benevides em frente ao Cabo Branco. Na diminuta loja Seu Ciro, o Faqueiro fui presenteado pelo meu pai com uma linda capa de Gabardine, marrom clara, que me fez parecer um diletante imitador da extremada elegância de Humphrey Bogart.
Conhecia e frequentava muito o Cine Rex, com um porteiro intransigente Seu Etelvino, que nos tangia para não entrar nos filmes interditados para os menores de 14 anos. Era insuportável e repugnante a sua vigilância. Era muito difícil ludibriar. Só conseguíamos quando ele ia ao banheiro. Não conseguiu segurar a enxurrada de fãs quando foi exibido O Balanço das Horas – Rock Around the Clock com Billy Halley e seus Cometas nos idos de 1958. Pararam a sessão, e chamaram a polícia tamanha era a algaravia e alucinação destruindo muitas cadeiras do Rex. Ia às sessões matinais, aplaudia Fumanchu, e fazia um escambo de Gibis. Os mais cotados eram os heróis Rock Lane, Roy Rogers, Hopalong Cassidy e Jesse James.
O Salão João Mata, estava ao lado do Rex, e era dirigido pelo barbeiro Severino, que nos impunha cortes de cabelo à la Jack Deman, canastrão hollyoodiano no estilo zero de recruta. Um desastre agravado pelos selos que nos eram infligidos no colégio.
Em frente ao Salão, estava o Restaurante Flórida, de Zezé Laet, vizinho ficava a Sinuca de Seu Salú, onde íamos goderar e espionar os jogos dos outros. Mais atraente era ir à Casa dos Frios do alemão, Seu Ernesto, pai de Gasolina e Erica, meus colegas de Pio X. Era permitido que tomássemos um chope com ovos cozidos coloridos. Em seguida, íamos para o bar de Forzinho, num beco transversal à Rua Direita.
Ao desembocar no Ponto de Cem Réis com seus belos pavilhões art déco e um belo relógio ao centro, aguardávamos os bondes para ir até a Praça Dom Adauto, sendo impiedosamente perseguidos pelos cobradores. Ainda no Ponto de Cem Réis podíamos observar à distancia: o Bar Duas Américas, a Padaria de Seu Aranha, o Café Alvear, a loja de long-plays de Walmir dos Santos Lima, a Sorveteria Canadá no Paraíba Palace Hotel, de João Minervino. Na Praça de Táxi, eu procurava os taxistas Elias Teixeira, Zé Papagaio e Dionísio, para saber os rastros de meu pai, do qual eram amigos.
Ao subir a Rua Direita, em direção à Praça João Pessoa, destinava um olhar curioso em direção do Bar Querubim, e que era detentora de uma quadrinha irreverente: “Na Paraába existe coisa de admirar. Subindo é o Bar Querubim. Descendo é Quero Bimbar". Silva Jardim, Rua da Areia e Maciel Pinheiro eram os pontos de aterrissagem. Muito tempo depois entendi a inversão semântica.
Mais adiante, podia se avistar a Escola Underwood, que abrigava Tartaruga, sobrinho da dona do estabelecimento. A escola era chamada, de modo insultante e irreverente, de Cabaré de Osmarina... Havia ainda a livraria de Nólo Pereira: a Casa do Estudante.
Em seguida — em nossa inesquecível perambulação, a consumir quase tudo que a memória permitiu —, a rua deságua na burocrática Praça João Pessoa.
A Rua Direita assomou as minhas lembranças à conta da enorme influência de Gonzaga Rodrigues, e me fez mergulhar nas minhas infantis e adolescentes andanças. Fui só, queria muito ter tido o prazer de rastrear o Neguinho ao meu lado. A rua sempre abrigou uma fase muito feliz. Ela foi o início da longa e tortuosa estrada que percorri na vida.
Se a memória me acenou para voltar à Rua Direita, devo dizer que o Neguinho Gonzaga, sem o saber, me empurrou e me deu o prazer de lhe dedicar esta crônica desembalada. Gostaria de tê-lo tido ao meu lado, mão no ombro, o querido Gonzaguinha. Fiz o meu itinerário sozinho, recorrendo, aqui e acolá, às luzes de Humberto Mello.
Merci, Gonzaguinha
A Rua Direita — a de ontem, não mais a devastada de hoje — foi o principal berço viário de uma vida jovem semeada de aventuras e brincadeiras, e inicio de muitas amizades e paixões carbonárias.
Dá-me um olhar que te direi quem és. Assim como o corpo é um continente, o olhar é o conteúdo. O olhar expressa o ser e o sentir de cada vivente. Reflete o sublime êxtase da vida. É uma porta entreaberta que permite conhecer a alma em toda a sua profundidade.
Os olhos com generosidade e pureza exalam os sentimentos mais nobres da grandeza e da profundidade da condição humana. Permitem, sem restrições e preconceitos, nos conceder-nos um privilégio muito além da palavra, aproximar-nos da alma humana. Edificam com emoção a cumplicidade da vida em comum. Nos olhos encontram-se as narrativas dos mais profundos
Estar recluso numa UTI, e espreitar o entorno, a quem quer que seja é sentir-se incomodado como se estivesse numa ante-sala da morte. A racionalidade imposta pelos nossos sombrios e atuais cotidianos impõe-nos esta trágica e nua verdade. Os frios números da dura realidade se encontram expressos nas inexoráveis estatísticas que atemorizam, e pairam sobre todos infelicitados. Tristeza para os que vão. Felicidade para os raros que conseguem dela sair.
No sombrio tempo contemporâneo impera o sentimento de que a morte está à espreita e nos impõe a dura transcendência de que esta virá impetuosa, sem pedir licença. O tempo de viver, apenas, se reparte entre um abrir e fechar de olhos. Estranhamente, dilacerante é conviver com o sentimento de que um dia a mais, é sempre um dia a menos.
De repente, o prazer de todos os dias, de abrir os olhos que sorriem para a vida que em segundos, pode não mais ser perene. O dia surge radiante e cálido, e ao nosso mirar está a natureza que viceja compartilhando com a alegria dos viventes. Subitamente, o que seria mais um dia de celebração, me atingiu um ritmo cardíaco declinante dando às claras sensações de desaceleração e de inesperado declínio. As aurículas e ventrículos tão preciosos dão sinais imprecisos e convulsos, anunciando que a distância e o tempo nos aproximam e sinalizam que a morte ronda. Passo a viver uma mise en scène, e protagonizar um grave enredo ao mais comum dos mortais: simplesmente morrer.
E, celeremente, percebi que os meus batimentos, que tanto na minha vida se exultaram com belas e intrépidas emoções, em muitos anos, já não eram os mesmos. O coração vacilante não creditava mais ao cérebro, e a todos os órgãos, a energia e a eletricidade vital. O corpo demonstrava passos cambaleantes, a respiração ofegante, e a oxigenação dos pulmões se revelava precária. Os batimentos cardíacos se refletiam de modo grave em ritmo declinante e destemperado, o que sinalizava um estado de torpor arrítmico comandado por um bloqueio total que poderia estar anunciando a proximidade de uma morte súbita.
Médicos experientes me vociferaram: busque socorro! Olhei em paz ao meu lado, e fui acudido por um filho querido, também chamado de Francisco, que pelas mãos divinas estava ali numa grave hora. Acomoda-me num bólido, e infringindo todas as cautelas do trânsito, num ritmo alucinante, percorre 150 kms e calmamente diz – “Vamos, Pai.” E num piscar de olhos chegamos ao hospital.
Celeremente, me desembarcam numa UTI, diante da insistência de desatinados batimentos que já não ultrapassavam um percentual mínimo. O coração iria me decretar morte súbita.
Com o olhar vago, vejo uma UTI e seu sinistro ambiente. Tudo o que ninguém deseja. E de pronto, a aleatoriedade. De modo involuntário vão surgindo inconsistentes divagações e pensamentos. Não havia desespero. Sabia que tinha uma caminhada difícil, e, tinha a certeza de que diante das minhas orações obteria a benevolência divina.
Tive a felicidade de acalmar os meus filhos na porta da UTI. Dediquei-lhes o meu sorriso e os meus gestos de paz como um sinal de que eles me esperassem. Não iria demorar. Tinha certeza que o meu coração não iria ser indelicado com eles, e menos ainda comigo. Logo ele, que tanto havia dividido comigo mais momentos de felicidade do que de amargura. Havíamos de continuar juntos.
A Covid, tempos antes me atingira. Passou célere. E eu alegremente a observei dobrando a esquina. Pressentia desde que me enfurnei na UTI, e acreditei, mesmo vendo o lado soturno e desalentador daquele ambiente quase funesto, que iria mais uma vez ter um sursis divino que me restituiria a doçura da vida. Assim o foi.
Ninguém entra numa UTI impunemente, há sempre um preço a pagar. Hoje, apenas um mês depois, tenho a mais absoluta convicção do drama que significou para as 460.000 mil vítimas que vivenciaram o término de suas vidas cercados de desespero e dos sons aterradores do sofrimento. Um ambiente onde ressoavam gemidos e aterrissava a morte.
O pesadelo passou. E com coração novamente forte, tributário da cirurgia, solfejando alegremente num diapasão que o continuará sintonizado com a minha doçura de viver. Com clara percepção, sei hoje o que significa ir ao inferno e ressurgir em paz rumo ao céu da vida em paz. Longe, muito longe da mescalina de Huxley, me distanciei do mundo, viajei e vi quase tudo.
Cumpre-me agradecer aos que me propiciaram a alegria de me sentir redivivo.
Aos meus filhos, pelo afeto, em especial Francisco, que, competente e arrebatado, me conduziu ao hospital como um distinto Samaritano, iluminado pelo espírito franciscano da extremada e virtuosa amiga médica, Dra. Maria de Lourdes Lopes. Igualmente aos médicos Marco Antônio Barros, ao competente cirurgião André Avelino de Queiroga, e aos uteístas que me acudiram nos meus dias e incontáveis horas, meus distinguidos agradecimentos e homenagens.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer.
E não tivesse mais irmandade com as coisas.Fernando Pessoa
De vez em quando me assomam impertinentes pensamentos de que os dias estão se esvaindo numa incontida hemorragia em que o tempo celeremente vai sendo consumido. Tempus Fugit. E, o que o resta dos dias são apenas fagulhas efêmeras que mal conseguem alumiar os sentimentos de esperança. A vida segue rumo ao seu final num curso imprevisível.