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Houve uma Cartilha da Doutrina Social da Igreja, publicada há alguns anos, em que o Papa João Paulo II recomendou aos clérigos que não ...

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Houve uma Cartilha da Doutrina Social da Igreja, publicada há alguns anos, em que o Papa João Paulo II recomendou aos clérigos que não comunguem com a ideia de legalização do casamento entre homossexuais. Ora, o amor entre duas pessoas já é o casamento. A cerimônia para celebrar essa união ou tem fins meramente burocráticos, pois a sociedade a exige para alguns atos da vida civil, como, por exemplo, para definir regras de herança e de venda de bens – nesse caso, qual a diferença se num casamento civil as pessoas têm sexos opostos ou não? – ou tem fins festivos, como acontece na cerimônia religiosa, onde os nubentes, jubilosos, diante da divindade em que acreditam, proclamam seu amor um para o outro e para as pessoas queridas.

Trimmmm, trimmmm, trimmmmm... ⏤ Alô! ⏤ surpreso. ⏤ Quem fala? ⏤ Quer falar com quem? ⏤ ainda espantado. ⏤ Com Felipe... Felipe?

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Trimmmm, trimmmm, trimmmmm...

Permita-me o leitor o estrangeirismo no título desta crônica, mas é que a expressão fica mais sugestiva. Isso porque é o nome origina...

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Permita-me o leitor o estrangeirismo no título desta crônica, mas é que a expressão fica mais sugestiva. Isso porque é o nome original de um filme que trata do dia seguinte a um fictício bombardeio atômico, e que aterrorizou muita gente na década de 1980 com a idéia pouco agradável da hecatombe nuclear. Pois é, no dia seguinte às eleições municipais parece que um ataque atômico é vivido por muita gente. São aquelas

1 ▪ Introito “Eu fico estarrecido que algum homem, vendo o quanto um outro se faz de tolo ao dedicar suas atitudes ao amor, ainda ...

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1 ▪ Introito

“Eu fico estarrecido que algum homem, vendo o quanto um outro se faz de tolo ao dedicar suas atitudes ao amor, ainda possa, após ter rido de tais tolices nos outros, tornar-se motivo de seu próprio desprezo, ficando apaixonado.”
Benedito

Padre Pedro era um jovem servo de Deus. Não se haviam passado mais que dois anos desde sua ordenação. Estava então com vinte e nove anos. S...


Padre Pedro era um jovem servo de Deus. Não se haviam passado mais que dois anos desde sua ordenação. Estava então com vinte e nove anos. Socialista convicto, o reverendo era bastante politizado. Familiarizou-se com os textos esquerdistas ainda na adolescência, quando seu tio Arnaldo, retornando do sul, iniciara-lhe na literatura comunista. Adorava os clássicos, principalmente Lenin. Dedicava tardes inteiras ao estudo da causa operária. Deliciava-se com a idéia de revolução popular, de um mundo sem desigualdades e sem fronteiras, da socialização dos meios de produção... Esse aprofundamento teórico sobre as causas populares refletia em seu caráter. Reto, não admitia nenhuma forma de desonestidade. Pagar a conta de luz de um amigo que tentava furtar-se a fila do banco lhe era um absurdo. Repreendia-o incisivamente.

“Se Deus quiser”. Não encontramos outra expressão que possa substituir um “Se Deus quiser”. Quando dizemos para nosso interlocutor que dará...


“Se Deus quiser”. Não encontramos outra expressão que possa substituir um “Se Deus quiser”. Quando dizemos para nosso interlocutor que dará tudo certo, é inevitável que ele diga “Se Deus quiser”. Poderia ser um “tomara”, um “oxalá”, mas nenhuma delas tem a força de um “Se Deus quiser”. “Graças a Deus” também é expressão insubstituível. Quando dizemos que deu tudo certo, o interlocutor, como que um autômato, dirá “Graças a Deus”. Poderíamos substituir o “Graças a Deus” por um “felizmente” ou mesmo um “ainda bem”, mas da mesma forma não teria o mesmo efeito mágico. Um “Se Deus quiser” ou um “Graças a Deus” elevam os problemas humanos a um patamar divino, afinal de contas Deus estará diretamente, sem subalternos, envolvido no caso.

Na primeira hipótese, a do “Se Deus quiser”, como o evento futuro é incerto – por óbvio –, parece que nos livramos das responsabilidades. Entregamo-las nas mãos da providência. Deus – o leitor poderá substituir Deus por qualquer outra divindade em que acredite, seja Ogum, Santo Antônio, Odin etc. – é o maior álibi do ser humano. Com Ele o homem tira de suas costas o fardo da responsabilidade pelo que está por vir. Atribui a Deus tal ônus. No segundo, o do “Graças a Deus”, o homem, que já havia imposto a Deus toda a responsabilidade pelo que poderia ocorrer, humildemente agradece-Lhe pelo evento favorável. Mas se Deus não cumpriu bem o seu papel aparecerá a terceira expressão insubstituível: “foi Deus quem quis assim”, e voltamos a impor-Lhe responsabilidades pelo que se sucedera. – Pobre menino, estudou tanto, mas não passou no vestibular. Foi “Deus quem quis assim”, dirão. E o garoto, que ocupou o tempo de Deus com seus exames de admissão, terá uma nova chance no ano que vem.

Esse Deus-álibi é uma das duas causas que nos levam a crer em divindades. O homem, enquanto não descobre a realidade irrefutável de alguma coisa, atribui a Deus sua causação. Isso porque não nos conformamos com a incognoscibilidade dos fatos. Tudo tem que ter uma explicação, nem que seja mística. Daí que, ainda hoje, para alguns povos indígenas, relâmpagos e trovões mais que fenômenos climáticos são expressões de sentimentos de deuses. Isso explica também porque enquanto não se provar por a mais b a teoria da evolução das espécies e a de que o universo nasceu de uma grande explosão, existirão pessoas acreditando que nossos avós foram Adão e Eva e que o mundo foi feito em uma semana, pois assim se estaria, metafisicamente, explicando o que ainda não tem explicação racionalmente convincente.

A segunda causa da fé é o nosso medo da morte. Teimamos em desacreditá-la, apesar de termos-na como companhia desde sempre. Conquanto algumas pessoas dispensem a burocracia da natureza e dêem cabo da vida, principalmente da dos outros, por conta própria, pensar que tudo termina quando aquele músculo chamado coração deixa de bombear sangue para o resto do corpo não é idéia com que o homem possa se acostumar. Daí vem a crença na longevidade do espírito em contraposição a efemeridade do corpo. A morte é vírgula e não ponto final, pensamos. Não é agradável crer que tudo acaba com o cerramento dos olhos. Então estendamos nossa vida para além dela. Um juízo-final e pronto, lá estaremos novamente, aptos para a vida eterna. Desencarnar? Sem problemas, a reencarnação está aí para voltarmos.

Não é agradável crer que tudo acaba com o cerramento dos olhos.
Gostaria de crer que existe um paraíso a esperar-me, depois de uma temporada expiando pecados no purgatório, e que lá reencontrarei quem me é precioso. E várias virgens, se a crença for mulçumana. Ou que meu espírito caminha em progressão, e que voltarei para esse mundo ou um outro, até minha alma chegar num estágio avançado de evolução. Seria bom acreditar no “Pai Danguê” e que ele, após um pequeno “trabalho”, afortunar-me-ia com a mulher que amo e mostrar-me-ia quão inúteis foram meus galanteios e gracejos não correspondidos. A solução estava logo ali, embaixo do nariz, num simples jogo de búzios e numa oferenda de perfumes e guloseimas a Iemanjá. Quem sabe crendo numa dessas igrejas novas, após participar da sessão do descarrego ou da vigília dos 318 pastores, eu não encontraria a felicidade nos negócios, agora, já, ainda nessa vida. Ou poderia tornar-me adepto do hinduísmo e cultuar uma vaca ao invés de devorá-la – pelo menos para o pobre bicho seria uma redenção. Mas acredito apenas na capacidade humana de desvendar através da razão. O que não se descobriu, um dia se descobrirá através do conhecimento racional.

Porém, não tenho como caro esse meu posicionamento puramente cético. Não desprezo a fé no ser humano, desde que isso não implique em proibir o uso de anticoncepcionais, no preconceito contra homossexuais, mulheres e principalmente contra outros cultos – ou na descrença neles, na vedação do sexo por prazer, na aversão ao avanço da ciência, na imposição de uso de vestimentas... Compreendo que necessitamos do Deus-álibi para explicar as lacunas do conhecimento humano e para fugir do tormento do inevitável fim da vida. A crença em divindades cumpre esse papel. A religião, o culto, a fé são necessárias ao inquieto e amedrontado homem. A inexorável morte, como a todos, também não me é bem-vinda.


Douglas Antério é advogado e escritor

Oscar Wilde dizia que o patriotismo é a virtude dos corruptos. Ele tinha boas razões para assim se expressar, uma vez que foi preso em seu...


Oscar Wilde dizia que o patriotismo é a virtude dos corruptos. Ele tinha boas
razões para assim se expressar, uma vez que foi preso em seu país – a Irlanda do sul na
época ainda fazia parte do Reino Unido – por práticas homossexuais. Após a prisão,
foi para a França, onde passou o resto de seus dias. Não tenho a pretensão de, com as
minhas, dar respaldo às palavras do ilustre escritor, mas ele tinha razão. O que é,
afinal, patriotismo? É o amor a pátria, apontarão os melhores dicionários.

Pois bem, por que devemos amor a uma pátria? Ora, quando passamos a fazer parte de algum
grupo cultural não foi por escolha nossa. Ali fomos inseridos pelas mais diversas
circunstâncias, menos por nossa vontade. Mesmo aquele que opta onde prefere
compartilhar a cultura, ele também já é egresso de um outro grupo cultural, do qual fez
parte sem espontaneidade. Será que alguém tem culpa de não ser brasileiro?

O patriotismo não é senão a semente da xenofobia. Esse sentimento de amor
exacerbado pela nossa cultura é o que nos leva ao preconceito. Não foi por outra
causa, que não o patriotismo, que em meados do século passado vimos uma tal raça
ariana nutrir sentimentos de superioridade em detrimento de outras. E alguns desejam
que sejamos como os americanos, bandeira na porta de casa, hino na ponta da língua.
Pra quê? O que o patriotismo americano tem de bom? Essa atitude beligerante, com
fins econômicos, de impor a outros povos a sua cultura?

Se por um lado as fronteiras e as culturas movem-se com a história, por
outro a nossa condição humana continua imutável. Somo seres humanos antes de tudo.
Seja o nórdico da Noruega ou o banto africano, ninguém lhe vai tirar sua condição de
humano. Por que celebrar a segregação comemorando a independência? Antes, melhor
que celebremos a união dos povos, sob uma única bandeira, sem vistos ou passaportes.
Afinal, somos condôminos da Terra, apesar de alguns restringirem o seu uso. Mas falo
da união espontânea, como a que caminha na Europa, e não a imposta.

Orgulho do samba? Claro, mas tenho orgulho do tango e da polca também,
pois são expressões artísticas do mesmo homem, que por um acaso nasceu nesse ou
naquele país. “E o Brasil na Copa?, eu vi você torcendo fervorosamente. Isso não é
patriotismo?”. E nas Olimpíadas também, acrescento, mas não creio que seja de forma
patriótica. A competição entre nações é como a competição dentro de um mesmo país.
Não nutro qualquer orgulho especial em torcer pelo Flamengo, apenas torço. Mas
felizmente nós brasileiros não somos patriotas. O 7 de Setembro não é mais que um
feriado que a gente espera todo ano que não aconteça no sábado ou no domingo.


Douglas Antério é advogado e escritor
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Discreto ao modo do conquistador sonso, ei-lo, camuflado entre seus pares, se bem que de maneira inócua diante do brilho prateado que o rev...


Discreto ao modo do conquistador sonso, ei-lo, camuflado entre seus pares, se bem que de maneira inócua diante do brilho prateado que o reveste, sorrindo para mim como o menino traquino que se regozija quando sua má-criação, engenhosamente levada a cabo, finalmente lhe é atribuída, garantindo-lhe, apesar da pisa, a massagem no ego travesso. Ali está, na imagem clonada pelo espelho, todo faceiro, o meu primeiro cabelo branco. Um pêlo branco! Qual não é a surpresa de se deparar com o primeiro cabelo branco?

Ele me aparece num lugar estrategicamente escolhido: sobre o peito esquerdo. “E por que não no couro cabeludo?”, pergunto-me, curioso. Poder-se-ia atribuir tal escolha a um fato nobre. O tórax em vez da cabeça, o coração em vez do cérebro, a emoção em vez da razão. Seria sua escolha uma indicação de que o envelhecer deve ser compreendido pelo lado espiritual e não pelo caráter estritamente biológico, material? Não, a sua escolha não tem nada de transcendental, é apenas uma esperteza que deve aqui ser relatada. A cabeça não lhe era lugar seguro, pois os seus primos que ali residem estão partindo cedo com a calva proeminente. Nas têmporas poderia ser, pois os cabelos que ali fixam morada são como flagelados da seca, que mesmo diante das vicissitudes da vida dura na caatinga, mantém-se na terra inóspita de onde brotaram, nutrindo-se com calangos e fé. Mas ali também não, pois há o risco de um surto de vaidade – sempre ela – culminar numa tintura, e a sua condenação a uma eterna cor violeta – apesar de na embalagem constar preto – ou “acaju”. A barba nem se fala. Uma navalhada e lá estaria ele, caído, gosmento pelo creme de barbear, sujeito a toda sorte de encontros desagradáveis no sistema de esgoto.

No peito, ali sim é um bom lugar. Um porto-seguro. Os cabelos do peito não caem. Pelo contrário, para cada cabelo da cabeça que se vai parece que nasce uma tropa no resto do corpo. Que lógica! E quem danado pinta os cabelos do peito!? Nunca se ouviu falar, pelo menos não é fato divulgado pelas propagandas de tintas. Raspar o peito!? Não se tratando de um nadador profissional ou de uma dragqueen, ninguém raspa o peito, pelo menos é o que se pensa. Um lugar estrategicamente escolhido.

O que dizer do nosso primeiro cabelo branco? Aos vinte e oito anos apareceu-me, no peito, meu primeiro pêlo branco. Com a queda de cabelo e as rugas eu nunca me preocupei. Esses sinais do passar do tempo acontecem devagar, acompanham nossas venturas, são companheiros numa longa viagem de sabores e dissabores. Mas o cabelo branco não. Ele não fica claro aos poucos. Da cor original passa ao branco, sem nenhum pudor.Um dia está você se olhando no espelho, escovando os dentes ou tirando sujeira do nariz, e lá está ele, todo branco. E o fatídico e inevitável pensamento – e não quero aqui fazer terror com o leitor que já tem mais que o pioneiro cabelo branco no corpo – vem a minha mente: “terei, finalmente, chegado ao ponto descendente na parábola da vida? Será que após o glorioso e inconseqüente aclive da mocidade cheguei na ladeira vertiginosa da maturidade? Afinal de contas, estou ficando velho!?” E lembro-me do filme “O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas”, cujo título se torna sugestivo quando você descobre que ele conta a história de pessoas que acabaram de concluir a faculdade.

E agora me pego a pensar se devo extirpá-lo [sim, o cabelo branco] do meu corpo, e viver da doce ilusão de que o tempo não passa, “relativisando-o” como na teoria do gênio alemão, procrastinando o envelhecimento, olvidando que “a vida é uma contagem regressiva”, como alguém apropriadamente já observou, escondendo-me das recordações do passado, preferindo que a morte me pegue sorrateira, numa emboscada, pois assim a vida seria bem mais agradável; ou se devo mantê-lo e orgulhosamente cultivá-lo como a maior lembrança de que passei por todos esses anos, e que, feliz – de longe em sua maior parte –, vivi cada idade, lembrando da infância, de quando minha linda mãe carinhosamente ensinou-me a amarrar os cadarços dos sapatos, das brigas no colégio, das quais saía sempre derrotado pelo colega mais robusto, dos mimos dos meus irmãos, que mesmo depois desse cabelo branco ainda continuarão a tratar-me como criança, do namoro adolescente e afoito na varanda, flagrado pelo pai da moça, dos muitos amigos, uns que permanecem outros que partiram, do banco de reservas, conseguido a duras penas, no time da escola, das paixões correspondidas, e de outras nem tanto – tudo bem, estas em maior número que aquelas –, dos grandes companheiros da faculdade, do sublime amor, vacilante e inseguro, que, contrariando os contos de fadas, insiste em não ser eterno, do elogio, ainda que suspeito por vir de um amigo, à crônica mal acabada.

As duas opções são legítimas e têm lá suas vantagens. Por enquanto, vou ficar com a segunda. O cabelo branco não é um mau presságio, mas um marco comemorativo que me mostra que já faz vinte e oito anos que meus pulmões receberam a primeira carga de ar poluído, e que continuo inspirado na arte de viver. Já fui agraciado com vinte e oito, espero que venham mais alguns anos. Afinal, ainda não escrevi nenhum livro, não plantei nenhuma árvore e sequer, assim suponho, tive um filho, que é o mais fácil – e mais esperado! Mãos à obra, então.


Douglas Antério é advogado e cronista
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O amigo me mandou algumas fotografias – por correio eletrônico (e por isso mesmo não sei se o nome está correto; essas imagens digita...


O amigo me mandou algumas fotografias – por correio eletrônico (e por isso mesmo não sei se o nome está correto; essas imagens digitais são “fotografias”? Depois consultemos nosso amigo Aurélio; por hora fechemos o parêntese, literalmente); e chamou aquele álbum de “Uma tarde no centro histórico...”.

Não soubesse eu de que tarde se tratava, diria que aquelas fotografias, de prédios antigos e praças, haviam sido tiradas em paragens distantes, em alguma cidadezinha pacata das tantas terras estrangeiras que ele habituara-se a visitar, dada ausência de alvoroço nas ruas. Porém, aqueles velhos casarões e aqueles singelos jardins estão bem aqui, na nossa cidade, no aludido e esquecido centro histórico. Vendo essas ruas vazias – é domingo à tarde na imagem paralisada pela tecnologia –, onde agora, no centro da ribalta, se destacam as construções – que normalmente são meros figurantes dos astros principais, os transeuntes frenéticos que ali resolvem suas vidas e cumprem suas rotinas humanas nos dias que chamamos de úteis –, percebo como são belas, e que geralmente me passam despercebidas.

Quão formosos ainda, posto que descuidados, os prédios que outrora abrigaram tantas almas que já não coabitam conosco. Naquela casa amarela – será que sempre o fora? –, a da amiga, a moça deve ter-se escondido do pretendente indesejado por desajeitado, ainda que por seu pai abraçado por abastado (permitam-me a aliteração maljeitosa); naqueloutra, azul, o senhor via passar, tenho certeza, da grande janela, as pessoas indo e vindo e inevitavelmente os anos, esses apenas indo, porquanto jamais voltavam os ingratos, na ampulheta perversa da existência (que absurdo! cronista; pois não é você mesmo quem está a descrever a beleza da vida? Otimismo homem, otimismo...). Ah, que belo jardim! Se hoje vendem panelas e pilhas em suas alamedas, outrora casais ali se descobriam – ou se despediam (mania de aliteração!) – e pais orgulhosos expunham o mundo aos seus filhos, e estes àquele, pois inevitável. A igreja: um dia orgulhou-se de ser o prédio mais alto da cidade; já não o é. A divindade foi perdendo espaço para o homem, que se foi amontoando em edifícios.

Assim com as casas, assim com as gentes. Se me aflora a beleza das construções apenas quando em fotos, olvidando-a na pressa da vida, na desatenção com o mundo que me rodeia, na primariedade egoística do que é apenas meu – e não é muita coisa –, não digo diferente das pessoas. Observando aquelas paredes e portas e janelas, olhando detidamente os jardins, passo a ver sorrisos, desalentos e a ouvir vozes. E o reboco torna-se pele; e as janelas, olhos; e as portas, bocas; e a chuva não passa de lágrimas; não tarda e tenho muitos rostos a encarar-me, indagando-me da sua importância na minha vida. As pessoas me rodeiam e me são importantes, mas só as percebo quando as vejo em velhas fotos, quando observo o intangível passado. Felizes daqueles que não precisam das fotos para enxergar o quanto lhes é importante tudo: os prédios, os jardins, as gentes... Não fui agraciado com essa virtude, mas faço uso de ardil para evitar os atropelos da consciência: não revolvo meus álbuns, para que eles não me exponham a fraqueza.


Douglas Antério é advogado e cronista (Campina Grande-PB).
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