Num recanto o ventilador quebra a sonoridade noturna. E gira, gira, gira... embebido antes de consumir qualquer bebida que regue a noite. São tempos "decembrais" e as festivas luzes natalinas intercalam claridades coloridas no ambiente, refletindo tons diversos às taças de vinho e água. Um gole para abrir a sede de beber livros, músicas, olhares e seduções.
Vento no porto
O vento canta o mar com um assobio,
deixa-se levar no desequilíbrio,
segue nas vagas o prumo,
balança na entrada do sitiado porto.
Feito vida assopra sem rumo,
queima noturno, esfria soturno,
agarra o ser, atira-se aos cascos,
corrente que afoga, afaga, apoio.
Havia naquele fim de tarde um vento estranho. Forte, penetrava com intervalos inexplicáveis nas janelas, sacudia o interior das casinhas, balançava roupas e fantasmas das pessoas. Não trazia chuva, só uma fina poeira que se impregnava em tudo que tocava. Do rosto entristecido de um quadro na parede à superfície da mesa no canto da sala, do enfeite dependurado num armador de rede às garrafas de vinho enfileiradas como ornamentos ébrios num aparador...
Eis que surge uma notícia desafinada e triste: o silenciar de um piano. Morreu o pianista carioca Arthur Moreira Lima, aos 84 anos, vítima de câncer. Imediatamente me vem à memória o inusitado dia em que o entrevistei para o extinto Jornal O Norte, do Diários Associados.
Longos monstros de braços gigantes espiam sobre a serra. Alertas, atravessam enormes pás ciclopes para além do horizonte na vigilância da serpente negra por onde trafegam inventos que transportam humanos no sentido leste-oeste. A paisagem seca por quilômetros abriga muita vida e o verde desaparecido está à espera de qualquer invernada para reflorescer a região.
As latas e as garrafas espalhadas pelo canto da varanda nas alturas de um endereço encantado são testemunhas e enumeram a lista de amores e anos juntos. Tudo amarrado em Recife, Parahyba, Campinas, Guarulhos e terras alhures, passagens em Minas e Paraíba. É hora de sorrir ao som das falas das vozes conhecidas até a madrugada chegar, à espera do primeiro sol do dia que desmergulha do Atlântico.
A última chuva abraça a primavera trazida por ventos que lembram agosto. Contudo, as pessoas continuam a seguir em frente alheias às passadas do tempo. Flores, carros e relógios são dispositivos da vida rumo a uma finitude desconhecida, por mais que se finjam certezas sobre o instante seguinte ao fechar os olhos.
Transpareço pelas esquinas e ruas como uma nuvem flutuante, ou um cão dono da própria vida que é atraído pelo cheiro da comida, a abelha conectada pelo néctar das flores a sugar vida. A cidade velha me atrai. Faz mergulhar nas histórias. Em outros instantes me afoga nas vivências de anos partidos. Ela me agarra na revisita das marcas visíveis e conceituais das suas paredes e monumentos.
De repente na manhã uma chuva de gotas fortes dá passagem e permite a volta do céu aberto... A mente levanta voo e vai buscar umas saudades aleatórias. Uma misturada de coisas antigas guardadas no depósito da memória que salta à superfície do imaginário como pedrinhas em meio a um pequeno terremoto de magnitude suficiente apenas para ser sentido, sem maiores danos. A terra se divide e surgem objetos de velhos mundos. E reaparecem, feito tempestade, objetos díspares em nuvens de lembranças.
Imagino José Américo de Almeida observando a paisagem da Praia do Cabo Branco pela primeira vez. O “Homem de Areia”, saído do Brejo e do meio dos engenhos, desembarcando no litoral. Penso no sossego dos dias quando o escritor residia na casa de número 3336 à beira-mar e compunha o cenário paradisíaco daquela região da cidade.
Há poesia nos movimentos... No gol gritado a plenos pulmões para uma torcida fictícia quando a bola atravessa um gol demarcado por pedras, sandálias ou pedaços de madeira fincados ao solo; na corrida desenfreada pelo terreno do corredor de pés descalços; no cruzar dos olhos concentrados no adversário do outro lado da rede que já apresenta furos antes de um saque com a bola gasta; no equilíbrio do corpo sobre uma corda ou um skate, ou ainda na escalada da árvore em busca do fruto maduro como se fora um salto em altura...
Eram os tumultuados e confusos anos 70... E eu lembro bem de uma miscelânea de imagens daquela época vomitada em preto e branco através do tubo de imagem da TV. Guerra do Vietnã, o Ira na Irlanda, John Lennon, um Papa que morria e um novo que sorria, mísseis apontados para o céu, bandeiras e discursos, o rebolado e a morte de Elvis Presley, ruas ocupadas e os cassetetes impondo uma “ordem”. Por outro lado, a mente captava ondas sonoras de uma caixinha mágica chamada rádio. Elas ainda repercutem nos meus ouvidos como se eu permanecesse nos agitados anos daquela década.
Piados quebram o silêncio das primeiras horas. A luz desperta bem-te-vis, canários da terra, rolinhas e outros pássaros que trazem em primeira mão as rotineiras notícias do dia. Aqui e acolá há um movimento humano de domingo despreguiça o cenário. O Sol já se faz presente há algumas horas, chega para descortinar a madrugada friorenta do fim de junho e revela as formas dos bancos, calçadas e árvores da praça.
Eis que chove novamente por todos os cantos e a água sempre refresca a memória quando o junino mês se estende... Já em seus meados dias enfeitados de tantas festas se reveste de tiras de papel e pano, bandeirolas coloridas por terreiros e postes, contraste em dias de céu nublado. Junino de alegrias, de tempos sorrisos, múltiplos encantos com sabores de receitas do milho de vivo verde e gosto a mais no sentimento de enamorados que passeiam na garupa e carrocerias pelas estradas, campinas e fantasias.
A estrada abriu-se em um abraço da saudade e, ao mesmo tempo, sinalizou reencontros enquanto o dia ainda dormia durante o avanço pelo tapete negro espichado por entre planos e elevadas passagens. A estrada já conhecia os passantes de outras épocas e sabia que fazia parte da história escrita pelas idas e vindas na aproximação das distâncias entre corpos e almas. Agora, um novo capítulo era escrito, antes imaginado tantas vezes, do mesmo modo desejado ser indefinidamente adiado. E tudo ao fim e a cabo se resumia a cumprir um ritual.
Reflexos distorcidos dão noção realística ao imaginário mundo que vaga pelas cabeças e mares puxados pela força do fogo ao bater na água e também na areia. A projeção é um toque de criação para formar espaços de contemplação. Fotografias das câmeras abertas: olhos. Ângulos, luzes, sombras, essência, visão interior, fazem parte da receita. Quem sabe é sonho a visão do espelho, do retrovisor, da fachada da loja, da garrafa de vinho, da vela bailarina atiçada pela brisa.
O ouro que plantou o homem à terra e cultivou dramas se foi, restou talhado como ornamentação de igrejas e soterrado em paredes de velhas minas e da história. Aos vivos restou o chão cercado por serras e os alicerces antigos fincados nas rochas, equilibrados em caminhos imprecisos e íngremes. Só o tempo com suas incertezas traz algum sentido. Antes lágrimas, sangue e chibata, agora poses e história. Minas Gerais é terra de misturas, de desencontros e encontros, é plural, de início forçosamente, depois à revelia da vontade dos homens.
E logo uma cidade grande com prédios, ônibus, pessoas e toda infraestrutura é erguida a partir das pedras, ou de pedaços de papel e papelão. São esquinas, postes, avenidas... E até aeroportos com seus aviões e submersíveis. Também surgem campos de batalhas com exércitos postos para o combate com seus canhões, veículos militares, trincheiras, explosões... Ou mesmo um comboio formado por uma fileira cavalos e muares segue em deslocamento adentrando desertos imaginários...
E no meio da noite surgiram desenhos na escuridão. O céu rabiscado em furiosos traços como se fora grafados por uma mão agitada, acordada de um pesadelo ou que tivesse uma ideia sensacional e necessita urgentemente colocar tudo para fora, registrar no horizonte. A tinta branca traça formas geométricas indecifráveis na superfície delicada das nuvens transportadoras de chuvas. E todo aquele turbilhão penetra a janela, invade o quarto, clareia o sono, um espetáculo teatral descortina o horizonte acompanhado de uma melodiosa sonoridade que pousa depois devido ao distanciamento físico.
Flocos brancos e roxos ladeiam o tapete vermelho feito de tinta sobre o cimento frio inanimado e de horas quentes dos meados do dia. Sobre os galhos perfilados, enfeite natural, a passagem tem um perfume sutil, dourados como tochas suavemente brilhantes ao serem tocados pelos raios do Sol no findar das tardes dos últimos dias do verão.