O que o pássaro Dodô tem a ver com relações abusivas?
Recentemente, tendo ido a Londres, visitei o Museu de História Natural. É, simplesmente, fenomenal! Mas dentre tantas maravilhas, chamou-me a atenção o pássaro Dodô, mais por sua história do que propriamente por seu aspecto. Proveniente da Ilha de Maurício, país insular pertencente ao continente africano e situado no Oceano Índico, foi extinto dentro do intervalo de menos de um século por navegadores holandeses. Sem predadores naturais, desconhecia o perigo e, desse modo, não temeu o ser humano quando com ele se deparou. Era caçado para servir de alimento e era facilmente capturado.
Cogita-se que deixou de voar exatamente por conta da ausência de predadores e da abundância de alimento na ilha.
Mas o que chamou a minha atenção a seu respeito foi exatamente a sua docilidade diante do inimigo, diante do seu algoz, sem perceber o mal que esse poderia lhe fazer. A confiança tornou-o indefeso, o que acelerou a sua extinção. Isso levou-me a pensar acerca das situações de abuso nas relações do âmbito humano, a começar por famílias disfuncionais, em que os pais têm comportamento abusivo em relação a seus filhos, seres indefesos e completamente dependentes.
Nos primeiros dias aqui no Seminário Maior da Sagrada Família de Coimbra, onde resido no momento, deparei-me com Etty Hillesum e o seu Diário, escrito entre 1941 e 1943, ano da sua morte em um campo de concentração, aos vinte e nove anos de idade. Na realidade, o primeiro registro ocorreu em 9 de março de 1941 e o último, em 13 de outubro de 1942. Encontrei-a por acaso, em um dos corredores do Seminário, mais precisamente, em uma das mesinhas antigas que compõem a decoração do ambiente,
A narrativa do Mito de Narciso, presente no Livro III das Metamorfoses, de Ovídio, é uma das minhas preferidas! Nela, forma e conteúdo compõem um par perfeito! É interessante pensar como, de fato, o poeta/artista é um ser que transcende, pois consegue dar forma e expressar tão bem aspectos humanos através da criação. Há um fazer, uma técnica de que se utiliza, mas há, principalmente, um talento, que pode ser chamado inspiração, transcendência, espírito criador, enfim, trata-se de algo a mais, o toque de Midas que transforma determinado material em ouro, metal precioso pertencente à esfera dos deuses, diversa daquela dos homens comuns a que pertenço.
Acabei de ler o livro do húngaro Sándor Márai (2011), traduzido aqui em Portugal com o título As velas ardem até ao fim, por Mária Magdolna Demeter, leitura sugerida por Milton Marques, meu esposo, que, inclusive, já escreveu um artigo sobre o romance, mas numa perspectiva diferente da que intento tratar. A leitura me capturou por vários motivos, mas o principal deles foi o teor psicanalítico do cenário em que se desenrola o enredo, catártico para o personagem principal. Não foi à toa que Freud bebeu tanto da Literatura, fonte inexaurível para a análise das ocorrências humanas.
Quanto mais lemos o Novo Testamento, particularmente os Evangelhos, mais nos convencemos de estar diante de uma excepcional alegoria.
Para explicar o que dizemos, partiremos de dois pressupostos que, aparentemente, se opõem. O primeiro é que tudo o que foi relatado pelos quatro evangelistas – Mateus, Marcos, Lucas e João – é a mais pura verdade, devendo ser entendido como ali se encontra.
Traduzir é uma arte! Imersos, em nosso gabinete de estudos, aqui em Coimbra, mais precisamente no Seminário Maior da Sagrada Família de Coimbra, onde estamos hospedados, passamos a maior parte do tempo a trabalhar na tradução da obra de um poeta do século III a.C., período helenístico da literatura grega, para a língua portuguesa. Trata-se do nosso trabalho de pós-doutorado junto à Universidade de Coimbra.
Freud, em seu ensaio "Totem e Tabu" [1912], estabelece um paralelo entre as proibições do Tabu e aquelas dos neuróticos obsessivos, remetendo à ambivalência inerente ao ser humano como explicação psicanalítica para a origem do Tabu, reverenciado e temido ao mesmo tempo. Por sua natureza sagrada, não pode ser tocado pelo homem, que se o fizer, contaminar-se-á, tornando-se maldito. Trata-se do interdito! No que diz respeito à ambivalência, trata-se da atitude do indivíduo quanto a um objeto, quanto à ação sobre ele. Ele quer sempre tocá-lo, mas também abomina essa ação. Existe o desejo, que é inconsciente,
Em conversa familiar, discutíamos acerca da noção de infinito, como seria possível apreendermos o seu sentido empiricamente, uma vez que estamos circunscritos a percepções finitas? Veio-me à mente, então, em uma tentativa de aproximação, o caminho que percorremos na aquisição do saber, o qual nos leva sempre a novos caminhos, a novas descobertas, em um movimento contínuo e infindável que relativiza o conhecimento já adquirido. Tal movimento faz-nos perceber quão pouco sabemos, à medida que avançamos nessa viagem maravilhosa e espantosa. O difundido preceito atribuído a Sócrates, “só sei que nada sei”, reverbera esta sensação, a de que quanto mais estudamos, mais temos a aprender, novos mundos se abrem, emulando-nos, convidando-nos a continuar a seguir rumo a novas paragens, sempre com um gostinho de ‘quero mais’.
Afrodite, Ártemis, Hera, Atena, Deméter, Héstia... O que elas têm em comum? Além de serem deusas, imortais, elas têm em comum a sua singularidade, signo de subjetivações distintas, específicas, concernentes ao domínio de cada uma, ao seu âmbito de atuação.
A primeira manifestação literária de que temos notícia no mundo ocidental diz respeito à epopeia homérica, Ilíada, poema de tradição oral, do século VIII a. C., composto em versos hexâmetros e estabelecido como texto escrito no século VI a. C., por Pisístrato, tirano de Atenas. A despeito de não ser pensado ainda como literatura, haja vista que a primeira referência a essa categoria é feita por Aristóteles, na Poética (ἀνώνυμος, 1447b9), apenas no século IV a. C., sendo ele o precursor da futura teoria literária, a Ilíada tem a mimese como seu instrumento de composição, haja vista ser as ocorrências humanas, especificamente do período arcaico grego, o material para a criação do enredo, falando de um mundo guerreiro, em que o valor heroico é o pressuposto.
No livro “Mitos e imagens míticas”, do professor e tradutor José Antonio Alves Torrano são estudados diversos momentos e aspectos do pensamento mítico em suas transformações e permanência nos períodos arcaico e clássico da Literatura Grega. O que é e quais são essas imagens que constituem os elementos e recursos próprios desse pensamento mítico? Como essas imagens distinguem e demarcam o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto?
As Tragédias Gregas põem em cena a imperfeição humana. O personagem atua seus conflitos e suas falhas, que levam ao πάθος, ao sofrimento, dele próprio e daqueles a quem está vinculado.
Ájax, como personagem trágico da peça homônima sofocliana, traz em si as características do herói da tragédia. Ele não reflete antes de agir, está deslocado em relação ao seu contexto, sua trajetória está impregnada de ações desmedidas, se deixando tomar pela soberba e pela ira. Suas ações, movidas pelo princípio do prazer, tendo na base as representações ideativas das pulsões do Id, frustram-se ao se deparar com a realidade que se impõe. E nesse movimento entre processos internos e acontecimentos externos, Ájax é o típico herói trágico, que se vê diante de aporias, sem saída para o seu conflito.
No universo dos mitos, a origem do mundo é feminina. A narrativa que conta a origem do universo, a Cosmogonia, apresenta as quatro Forças Primordiais, Caos, a primeira delas, depois Gaia, a Terra de amplo seio, em seguida Tártaro nevoento e Eros, a força cujo surgimento passou a promover a vida. A primeira ação de Eros foi impulsionar à geração da vida Gaia, que, a partir de si mesma, deu à luz Urano, o Céu, primeiro rebento da primeira linhagem divina. Trata-se do elemento masculino com quem ela gerará, agora através do coito, seus outros filhos. Após a decepação dos seus órgãos genitais por Crono, seu filho mais novo, enquanto realizava o coito com Gaia, encontrando-se no ventre da mãe Terra sem poder sair à vida, pois o pai não permitia, Urano passará a fertilizá-la constantemente através da chuva. Logo, é a partir dela, de Gaia, da força feminina, que surge o elemento masculino, Urano.
A peça de Sófocles, 'Édipo Rei', mostra o herói homônimo, cujo destino foi matar o pai e dormir com a mãe, pelo menos, essa é a história conhecida, inclusive pelo senso comum. Partindo, no entanto, para uma leitura analítica da tragédia, vamos nos deparar com uma complexidade digna do enigma da Esfinge, monstro cuja morte conferiu a Édipo o lugar de tirano, no sentido grego do termo, em Tebas, ao se casar com Jocasta, rainha e viúva do antigo rei, Laio.
A dor é um fenômeno da vida. Manifestando-se em diversos matizes, atinge maior complexidade quando diz respeito ao escopo humano, pois pode expressar desde um simples incômodo até um grande padecimento.
A depender de como seja encarada, ela pode levar quem a sente à estagnação, a uma espécie de cultivo masoquista dos próprios pesares, ou se tornar mola propulsora a novos patamares, funcionando como dínamo transformador, suscitando crescimento, aprendizagem, ressignificação.
Deparo-me, comumente, com certas leituras dos mitos imbuídas de anacronismos e que desconsideram completamente a aura sagrada do universo mítico, como também a hierarquia existente entre as próprias divindades, assim como entre deuses e humanos.
Equívoco é atribuir apenas às figuras femininas o lugar de vítimas da ação dos deuses. É ignorar a história de Ganimedes, raptado por Zeus. Também de Jacinto, objeto do amor de Apolo, ou de Circe, de quem Odisseus não pode escapar.
Elencada como o terceiro dentre os sete pecados capitais, a Inveja, apesar de abominada sobretudo por sua vileza, faz parte dos processos humanos, de tal modo que já os antigos a incluíam em suas narrativas.
O mito de Psiquê e Eros, por exemplo, mostra as irmãs de Psiquê, cuja beleza sobrepujava a da própria Vênus, agindo contra ela, imbuídas de inveja. Fingindo cuidado e preocupação, insuflam-na a quebrar o juramento de nunca tentar ver a face do seu amado, Eros, uma vez que era vedado a um humano ver o semblante de um deus, e esse ato provoca a sua desgraça.
É recorrente na tradição greco-romana o tema da catábase, κατάβασις, que literalmente significa a ação de andar para baixo. Trata-se da descida de um herói ao mundo subterrâneo, denominado Hades, pelos gregos, e Infernos, pelos romanos, onde vivem as almas dos que já não existem, as denominadas sombras dos homens que um dia estiveram entre os vivos. Configura-se esta trajetória como um rito de passagem, uma vez que, ao retornar, realizando a anábase, ανάβασις, a ação de andar para cima, o herói volta transformado.
Narra o mito que Zeus, o deus maior, incumbiu as demais divindades de criar um ser - Pandora - atribuindo-lhe todos os dons (παν+δωρα), a ser entregue a Epimeteu (επι+μήτις, o que percebe depois), que a recebe apesar das advertências de seu irmão Prometeu ( προ+μήτις, o que percebe antes). Impelida pela curiosidade, ela abre a caixa cujo interior continha todos os males, que, a partir de então, passariam a existir entre os homens, à exceção da esperança/expectativa (έλπις), única a restar na caixa. Tal ocorreu porque Prometeu roubara o fogo do Olimpo, morada dos deuses,
A função precípua do Mito era elaborativa! Thânatos e Eros são seres mitológicos do panteão helênico, cuja representatividade simbólica denota aspectos da vida humana, conferindo-lhes sentidos.