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Os ventos do sul sopram leve agora. Parecem mais umas brisas. Não conseguem varrer a ferrugem dos meus dias. Caminho preso aos costum...

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Os ventos do sul sopram leve agora. Parecem mais umas brisas. Não conseguem varrer a ferrugem dos meus dias.

Caminho preso aos costumes e ao passado. Grilhões me arrastam nas madrugadas adentro como anzóis rasgando meus tendões. Sigo no labirinto dos dias, sedento de cores e poesia. Sou pestilento a pedir socorro.

Longe seguem velhos e surrados tênis Passos que se escorrem dentro da noite Há uns que vão são quase comparsas destas ...

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Longe seguem velhos e surrados tênis Passos que se escorrem dentro da noite Há uns que vão são quase comparsas destas escuridões Rua larga Vagos homens vagam Faróis se cruzam no verde que diz:

Os começos são inesquecíveis até o momento em que os esquecemos. Eles viveram isso de forma intensa, como é dado aos amantes. A cara-...

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Os começos são inesquecíveis até o momento em que os esquecemos.

Eles viveram isso de forma intensa, como é dado aos amantes. A cara-metade, o amor que se completa como a lua e a estrela, as bandas que se unem num só todo. Embora a Natureza insistisse no contrário, eles acreditavam no amor romântico, na glória do eterno, aquele eterno que é mesmo o infinito, o sempiterno. Mãos e bocas entrelaçadas, o sexo como encaixe e ajuste perfeito.

Minha sede não é qualquer copo d'água que mata Essa sede é uma sede que é sede do próprio mar Essa sede é uma sede que só se desata Se...

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Minha sede não é qualquer copo d'água que mata Essa sede é uma sede que é sede do próprio mar Essa sede é uma sede que só se desata Se minha língua passeia sobre a pele bruta da areia Sonho colher a flor da maré cheia vasta
Caetano Veloso & Waly Salomão, Talismã

Para José, Raony, Cristian, Jean, Fábio, Ivanildo e Kenilma Éramos oito. Oito rumo às quedas d'água, rumo à Natureza que rest...

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Para José, Raony, Cristian, Jean, Fábio, Ivanildo e Kenilma

Éramos oito. Oito rumo às quedas d'água, rumo à Natureza que restaura corpos e sonhos.

Naquele lugar tudo era plenitude e força. As águas mansas dos córregos e riachos se avolumavam num rio, mas ainda de corredeira lenta. As águas brotavam do solo, nas nascentes, quase como se eclodissem das raízes das árvores que margeavam o rio. Suas copas se fechavam em dossel, protegendo o rio dos raios solares e deixando assim as águas frias, aquelas águas deslizantes, rolando ladeira abaixo.

Para Fábio Ele trocou o macacão da fábrica pela farda da polícia. Dois modelos de disciplina, porém com feições diferentes. Cresceu c...

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Para Fábio

Ele trocou o macacão da fábrica pela farda da polícia. Dois modelos de disciplina, porém com feições diferentes. Cresceu correndo pelas ruas da pequena cidade, aquela rua cheia de vizinhos, aqueles vizinhos que criam os filhos seus e de outros como se filhos fossem. A vida lhe trouxe um lar, dentro do possível que se é um lar, com seus reverses autoritários, mas sempre com um contrapeso do olhar dos mansos.

Para Ricard Ele escolheu praticar a difícil arte da escuta. Desde que a porta do consultório se abria até lá pras tantas da noite...

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Para Ricard

Ele escolheu praticar a difícil arte da escuta. Desde que a porta do consultório se abria até lá pras tantas da noite, naquele cenário desfilavam uma profusão de palavras, muitas delas entrecortadas por lágrimas, risos, gagueiras e silêncios atrozes.

Eles formavam um casal de classe média. Filhos de pais humildes, cada um lutou para sair daquela condição precária de vários modos. Ele,...

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Eles formavam um casal de classe média. Filhos de pais humildes, cada um lutou para sair daquela condição precária de vários modos. Ele, quarto filho de seis, tentou estudar, mas parou no ensino médio. Nunca quis exercer a profissão do seu pai, padeiro, e passou a trabalhar numa revenda de automóveis. Ganhava por comissão e nas crises se valia de agiotas e vales que a empresa adiantava com juros. Ela, filha de empregada doméstica, nunca conheceu seu pai. Para não ter o destino da mãe e das duas irmãs mais velhas, passou a trabalhar como manicure num salão de beleza de uma vizinha e estudar à noite numa escola pública do bairro.

A neve do tempo já havia pintado os cabelos dele. O mundo perdera parte do seu encanto com os desencantamentos do cotidiano daqueles dias. ...

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A neve do tempo já havia pintado os cabelos dele. O mundo perdera parte do seu encanto com os desencantamentos do cotidiano daqueles dias. Dias arrastados e repetidos. Dias de máscaras e vírus e isolamento.

O vírus veio e trouxe para ela o fantasma da violência. O vírus é um depurador: quem era bom, melhor ficou; quem era ruim, em péssimo se tr...

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O vírus veio e trouxe para ela o fantasma da violência. O vírus é um depurador: quem era bom, melhor ficou; quem era ruim, em péssimo se transformou.

Uma manhã fria e nevoenta no brejo. A cidade desfilava seus véus de esbranquiçadas gotículas como filó em vestido de noiva. Não chovia, mas...

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Uma manhã fria e nevoenta no brejo. A cidade desfilava seus véus de esbranquiçadas gotículas como filó em vestido de noiva. Não chovia, mas a cidade lacrimejava invadindo os poros daqueles tijolos tão centenários. O sol insistia em rasgar aquele manto com seus amarelos, mas em vão.

Andarilho das manhãs na areia fina e esfriada pelas lambidas do mar, ele viu boiando já na quebra das ondas uma garrafa azul. Estava tampad...

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Andarilho das manhãs na areia fina e esfriada pelas lambidas do mar, ele viu boiando já na quebra das ondas uma garrafa azul. Estava tampada com uma rolha. Pegou-a e viu que dentro dela havia um papel. Uma mensagem:

Era uma mesa de cozinha. Sempre forrada com uma toalha de plástico com desenhos de frutas bem coloridas. A luz da janela acentuava aquelas ...

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Era uma mesa de cozinha. Sempre forrada com uma toalha de plástico com desenhos de frutas bem coloridas. A luz da janela acentuava aquelas cores tão quentes quanto os móveis dos filmes de Almodóvar.

É quando nos sentimos enlaçados, é quando nos sentimos à beira de um salto nos espaços abissais dos desejos, é quando os avisos de parar j...

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É quando nos sentimos enlaçados, é quando nos sentimos à beira de um salto nos espaços abissais dos desejos, é quando os avisos de parar já não são suficientes para nossa corrida.

Reticências e respiros. O nunca preencher-se. O sempre esborrar-se. O desencanto que chega repleto de encantamentos. O sono dos que nunca dormem. O sonho dos que nunca acordam.

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Talvez o amor seja simplesmente uma dobra de nós mesmos em relação ao outro. Talvez o amor seja apenas um alento para nossa imensa incompletude. Talvez o amor seja um desejo jamais satisfeito, algo imponderável e secreto, infinitamente secreto.

Mas nada disto importa. O que realmente nos faz sonhar, rir à toa e também lacrimejar é saber que o amor é a emoção que não nos permite o sentir-se só. O amor não é ajuste, é completude que não se completa. O amor não é um só, posto que isto é preencher-se da própria individualidade.

Amor não é justaposição. É tão somente um reflexo, um lampejo. Tal como a lua obscura e triste se enfeita de luares quando o sol nela irradia seus solares, a tornando prateadamente encantada.

E se o amor não é perene é porque nos diz da nossa finitude toda vez que se esvai. E se o amor não é eterno, amar nos eterniza. Desta forma, isto nos permite amar sempre, diferentes pessoas, de diferentes maneiras, em espaços e tempos distintos.

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Assim, hoje, cultive seu amor. Não é preciso que se tenha namorado ou namorada pra isso. É só preciso que se tenha amor. E as artes de cuidar. Diga ao seu amor o quanto ele importa, o quanto ele é parte, o quanto ele lhe torna melhor.

Pense também nos seus ex-amores e recite baixinho um agradecimento por eles terem um dia escrito algo no seu livro da vida.
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Mas veja que as palavras não são sempre os melhores instrumentos. Um olhar, um toque.

Deixe vir seu amor. Não aquele romântico que tem final feliz e dias solitários. Deixe vir aquele amor que é só seu. Mas que é tanto que escorre pra outros. Sim, o amor é fluidez. Ribeirinho que escorre manso e verdeja as margens que toca. Amor é porta aberta, mourão sem porteira. De catracas livres se sustenta o amor. Entra pela sala do olhar, arrepia os pelos do desejo, vibra as células da pulsação da vida, se espraia qual vírus nos hálitos dos amantes, se mistura qual cascata em lábios de saliva doce.

Com átomos de amor somos feitos. Órbitas da atração que não se traduz. Mas há algo que traduz a maior das artes do amor: o tornar-se mais humano, demasiadamente humano, porque me reconheço em cada um daqueles que meu amor tocou.

No começo disseram a ela que era um vírus mortal. Recomendaram para que ela ficasse em casa. Ela ficou. Foi sensibilizada por palavras ...

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No começo disseram a ela que era um vírus mortal. Recomendaram para que ela ficasse em casa.

Ela ficou.

Foi sensibilizada por palavras lindas como amor ao próximo, sensibilidade, empatia, doação.

Ele acordou num pequeno corredor, estranho, sem teto. Ainda meio desorientado, ergueu-se, cambaleante, pé ante pé em direção ao nada.

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Ele acordou num pequeno corredor, estranho, sem teto. Ainda meio desorientado, ergueu-se, cambaleante, pé ante pé em direção ao nada.

Em um indefinido ano do século XX, ele ganhou uma caneca personalizada. Branca, com desenho de uma folha de plátano. Era simples. Chegou nu...

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Em um indefinido ano do século XX, ele ganhou uma caneca personalizada. Branca, com desenho de uma folha de plátano. Era simples. Chegou numa data qualquer, nada de aniversário, Natal, bodas. Ela simplesmente chegou.

Recostado num balcão bolorento, Luís terminava o último trago daquela bebida barata. O ar estava enevoado de fumaça e de um ar abafado, ar ...


Recostado num balcão bolorento, Luís terminava o último trago daquela bebida barata. O ar estava enevoado de fumaça e de um ar abafado, ar de maresia misturado com cheiro de roupas suadas. Luís esperava há dois dias pela permissão de embarcar.

Havia mais homens antes naquele bar. Eram os maquinistas, os homens dos porões daquele que seria o grande sonho de Luís e talvez de quase todos que ali se encharcavam de desejos impossíveis. Um cachorro magrelo tomava conta de seu dono, cujo sono de bêbado lembrava mais um cadáver quase morto, quase vivo. As meretrizes já haviam se retirado também. Estas, as quais nem o sono é um direito, faziam parte daquele cenário de noites perdidas. O dono do bar sofria de insônia crônica, o que era perfeito para gerenciar o negócio.

Ele acordou com severas dores no maxilar. Apesar de tantos anos de tratamento, determinadas épocas do ano, as mais frias, faziam com que do...


Ele acordou com severas dores no maxilar. Apesar de tantos anos de tratamento, determinadas épocas do ano, as mais frias, faziam com que dores em forma de alfinetes na carne percorressem-lhe a face. Como raios em tempestade, as dores lhes rasgavam desde a articulação da mandíbula até as têmporas em espasmos ocasionais. A medicina havia suspeitado do território do nervo trigêmeo. Na verdade, estas dores eram físicas e muito mais emocionais. Preso durante a ditadura militar, ao se recusar a falar o que não sabia, foi espancado e, ao solo, levou um chute na boca por um coturno daqueles que faziam da força sua profissão de fé. Agora, assomada às dores físicas do trauma, havia o fantasmagórico passado batendo à sua porta, batendo até seus ossos.

Ele teve medo e desespero. Sentiu-se só, desamparado e quase sufocado por uns picos de pânico que de vez em quando lhe assolavam a base da ...


Ele teve medo e desespero. Sentiu-se só, desamparado e quase sufocado por uns picos de pânico que de vez em quando lhe assolavam a base da espinha e por vezes lhe paralisavam a respiração. Fez-se só na vida. Nada de importunar parentes, amigos. Nas noites de insônia, depois de muitas tentativas inúteis de se conectar com um mundo desconectado, percebeu-se com muitas pessoas em suas redes sociais, mas imensamente solitário. Ligou em vão a TV. Como um croupier de cassino que magicamente embaralha as cartas, seus dedos ágeis zapeavam o controle remoto em busca de uma imagem que lhes trouxesse o sono, senão a paz. Talvez a música pudesse lhe tragar os demônios da noite e lhe assentar nos braços dos deuses do sono. Fechar os olhos e rolar na cama era quase dormir numa cama de faquir. O lençol lhe arranhava os músculos das costas tal qual espinhos de caroá, com sua formosura em vermelho e suas garras de gato de folhas. O travesseiro formigava num comichão de urtiga, misturado com o suor que lhe aflorava o corpo todo, como castigo de penitentes.

Havia ruídos muito estranhos. Talvez invasores, gatunos da noite, malfeitores que sorrateiramente pulavam os muros na calada da noite. Ele não dormiu, enfim. Na sua mente, planos de vencer aqueles medos, de se proteger dos contágios de um mundo cheio de infames e tormentos.

Na manhã que já se avisara em seus clarões, esperou, entre xícaras de café e pílulas da felicidade, que também o mundo despertasse de sua inércia do sono. Após algumas ligações, seus projetos enfim estariam a se cumprir.

No mesmo dia, dezenas de homens com máquinas e matérias de construção ali chegaram. Uns fardados com macacões, botas e luvas a descarregar espinhas dorsais de aço bruto, outros a descarregar sacas de cimento e pedras, naquele amálgama da areia, brita, numa alquimia do mundo plástico para o mundo concreto. Ah, o concreto! Ele vislumbrava no concreto a sua salvação. Ele chegou a se ver naquele meio, entre betoneiras e pás, misturado com pedras fundantes e cascalhos. O som da brita se derramando soava como chuva em tempo seco.

A proposta do mestre de obras era de erguer um muro de 2 metros, pensando em proteção, mas em não esconder a beleza da arquitetura da casa, pensada em dois planos, com vigas que se fundiam numa harmonia de esquadros.

Não. Ele queria mais. Pensou em 3 metros. Pensou em 4 metros. Quem sabe 5? Concordou nos 4 metros, mas com uma cerca daquelas da guerra, daquelas que espiralam a dor das farpas, daquelas que mordem a carne e a sangram como castigo.

Ele se via protegido. Imaginava-se tal qual um senhor feudal tutelado por imensos muros. Ou mesmo um abade adargado pelos imensos torreões das construções sagradas. Talvez até - mas isto era uma proibição – como uma donzela encastelada à espera de seu príncipe, seu salvador, seu tutor de uma vida.

Erguerem o muro e ele encastelou-se. Dormiu bem por duas noites, ainda sob efeitos de pílulas de Morfeus. Na terceira noite, o fantasma do luar lhe visitou. Não havia barulhos. Ele foi à janela. Diante dele o muro.

Ao invés de susto, de pânico, ele chorou. Chorou da dor da proteção. O muro era também separação. O muro era também aprisionamento. E não adiantava a tecnologia naquela hora. O concreto do muro solidificou-lhe também a alma. Sentia-se seguro e abandonado do mundo de lá fora. Chorou pela sua impotência. O potente muro lhe tirou a imagem do sol rasgando o véu da madrugada, dos primeiros pássaros tintilando o dia.

Havia o muro. Mas havia um sumidouro. Havia uma não-existir. Um buraco destes que se sente à boca do estômago. Havia um hiato, mas não entre o muro e a vidraça da janela. Um hiato de si. Uma promessa esgarçada da solidez do muro. Não percebeu ele que, ao construirmos muros inauguramos a cisão e a perda. Os muros são nossos assujeitamentos de um mundo de si, só de si. Há no muro a enganação da segurança. Há nos muros, o esvaziamento do outro, do toque, do olhar. Muro é cegueira.

Ele se sentiu no buraco negro da solidão, porque ergueu um muro.



Era setembro e ela recebeu as chaves de sua nova casa. Um molho com umas 6 chaves para lugares diversos. Está ela parada em frente ao muro de sua nova casa. Experimentou ainda duas chaves até conseguir abrir o portão de ferro. Ela já havia visitado a casa. Mas a sensação de ali entrar com as chaves próprias tinha um significado bem diferente. Abriu o portão, por entre rangidos e engasgos.

A vida dela era feita de travessias. De gente que vem, de gente que vai, como as canções de Milton.
Na primeira noite foi sentindo a casa como quem deita pela primeira vez em colchão novo. Ria à toa e imaginava preencher aqueles espaços com muitos quadros e coisinhas de viagem. Caiu a noite e o breu se fez. Do terraço, ela mirou o céu. Buscava a lua e seus prateados. Ela ainda não havia se erguido. Nessa hora deparou-se com o brusco muro e seu impedimento de tijolos que dormiam uns sobre os outros.

Na sétima manhã ela decidiu pela derrubada do muro. Feito.

Ela viu o mundo crescer e abraçar aquela casa, como um náufrago abraça a terra firme. O mundo é aberto, sem fronteira. Logo plantinhas cresceram onde antes eram as fundações do muro. Matinhos com flores singelas pululavam da terra, entremeados por uns verdores de vida que nem se sabe de onde chegaram. E daí caracóis que rastejavam, formigas e sua incansável lida, e depois beija-flores feito helicópteros de ré, lado e frente.

Ela havia construído uma ponte sobre os nãos do muro. Havia o sim. Havia agora pessoas que passavam e sorriam de estranhamento ou de encanto. Mesmo uns gatunos que já vislumbravam facilidades pra suas artes de surrupio, resolveram não invadir uma casa sem muro, pois que lá nada de valor poderia haver.

Nas outras manhãs e à tardinha, um bando de crianças corria num esconde-esconde e pega pelo jardim dela. Atravessavam a ponte-jardim, o espaço de intermédio que me conduz ao outro. A casa estava ligada ao mundo, aos transeuntes e ela nunca estava só. À noite, naquelas mais escuras, um vigilante sempre atento, passava pelo jardim e a ela acenava.

A vida dela era feita de travessias. De gente que vem, de gente que vai, como as canções de Milton. A ponte é a aventura de ir-se e poder voltar, de transitar para um mundo outro, quando a ponte nos leva para o outro lado de um rio atrevido.

Quantas pontes de rios e abismos teremos atravessado antes de chegarmos ao mar?

Um humano não é uma margem que apenas existe de um ou de outro lado. Um humano é algo como uma terceira margem, uma ponte que sempre me leva para um outro. Um sinal de que somos contato, nunca distância.


Adriano de Léon é doutor em ciências sociais, professor e escritor