Surpreende-me a notícia, nesta manhã do dia 14 de abril de 2025, da morte do escritor peruano Mario Vargas Llosa, aos 89 anos. Não o sabia doente. Pelo contrário. Admirava-me de sua boa forma física e mental, de sua elegância e de seu ar cosmopolita de cidadão do mundo, a se deslocar, lépido, entre cidades e países. Até sua ainda jovem e bela esposa atestava seu vigor e sua saúde. Não sei a causa de sua partida. Pode ter sido um mal repentino, e aí não há o que fazer. De qualquer modo, pode-se afirmar que viveu bastante – e bem. Uma vida plena, rica de experiências exitosas, mas também de alguns fracassos retumbantes.
Mario Vargas Llosa (1990) Cris Bouroncle
De todos os reveses, talvez o maior tenha sido sua malograda candidatura à presidência do Peru. Um revés que, particularmente, vejo como vitória, já que nunca vi a política fazer bem a um escritor. Ele perdeu a eleição, mas a literatura ganhou - e isso basta. Ele perdeu para um sujeito chamado Alberto Fujimori, que depois revelou-se o verdadeiro desastre da política peruana. Pode-se dizer que um país que derrota um Vargas Llosa não o merece. E é verdade. Sabe Deus o que teria acontecido com o escritor tivesse ele colocado em si a faixa presidencial. Para o país, suponho que teria sido bom experimentar, uma vez na vida, um governo honesto, democrático e com bons propósitos. Até para poder comparar essa iguaria exótica com o tradicional cardápio de mediocridades, corrupções e truculências que têm marcado sua história.
Por ter, politicamente, virado à direita, Vargas Llosa foi, de certa forma, marginalizado pela intelectualidade peruana e mundial. É um fenômeno comum e antigo, sabemos. Também um fenômeno que retrata a desinteligência daqueles que, a partir de um maniqueísmo tosco, dividem a humanidade entre “nós” e “eles”, empobrecendo-a com o unilateralismo fanático. Colocando-o frente a García Márquez, admirador e hóspede de Fidel, difícil é não lembrar do discreto Raymond Aron colocado frente ao Sartre que, já velho, distribuía na rua panfletos maoístas. Tudo isso comprova que a política praticada sem prudente reflexão termina sempre conduzindo as pessoas ao emburrecimento dos sectarismos cegos.
Jean Paul Sartre e Raymond Aron Arnaud de Wildenberg
Muita coragem, pois, precisou ter Vargas Llosa para assumir publicamente seu liberalismo numa arena dominada por poderosos adversários ideológicos. Só isso dá a medida de seu caráter, pois ser-lhe-ia, sem dúvida, mais fácil – e mais cômodo – contemporizar – ou procurar contemporizar – com os supostos desafetos. Mas ele optou pela coerência com suas ideias e pela fidelidade a si mesmo. E foi na contramão, caminhando contra o vento, desafiando pretensas unanimidades. Mas deixemos agora o político e voltemo-nos rapidamente para o escritor.
O Prêmio Nobel de Literatura diz tudo, no seu caso. O Nobel, o Cervantes e tantos outros prêmios literários pelo mundo afora. Quem negará seu mérito e seu merecimento? Nem os antagonistas, certamente. É uma vasta obra de romancista.
Llosa recebendo o Nobel (2010)Gobierno de Chile
Mas não só, pois nele conviveram muito bem o articulista, o crítico e o ensaísta. Aprecio-os todos, mas tenho uma especial queda por sua não ficção. Nela podemos ver o grande intelectual que ele foi. O homem culto, de muitas leituras. O pensador, por excelência. Um homem que orgulhou a inteligência latino-americana, nem sempre devidamente reconhecida por outras inteligências colonialistas. O homem de classe média nascido num país periférico e de forte presença indígena brilhando nos mais célebres centros acadêmicos e culturais do mundo. Mostrando que o talento é como o vento e o Espírito Santo: sopra onde quer, contrariando os preconceitos e as discriminações.
Destaco particularmente três livros seus: A linguagem da paixão, de 2002, A verdade das mentiras, de 2004, e A orgia perpétua, de 2015. Os dois primeiros editados entre nós pela ARX e o terceiro pela Alfaguara. O primeiro é uma coletânea de textos sobre temas diversos, que foram publicados originariamente
no jornal El País, de Madri. De caráter nitidamente jornalístico, nem por isso perdem a profundidade dos escritos que resultam de grave reflexão. Não são ligeiros nem rasos. E neles o intelectual de escol aflora à vista de todos, como algo incontornável. O segundo é uma preciosa coleção de ensaios sobre obras fundamentais da literatura universal, onde o grande leitor e o refinado crítico que ele foi nos ilumina, com clareza quase didática, as eventuais obscuridades que tais livros podem apresentar aos que não são especialistas. E o último é uma leitura e uma exegese extraordinárias de Madame Bovary, de Flaubert. Uma decifração quase definitiva do célebre livro desafiador. A gênese desta obra é bastante remota, como esclareceu o próprio autor:
“No verão de 1959, cheguei a Paris com pouco dinheiro e a promessa de uma bolsa. Uma das primeiras coisas que fiz foi comprar, numa biblioteca do Quartier Latin, um exemplar de Madame Bovary
na edição dos Clássicos Garnier. Comecei a ler nessa mesma tarde, num quartinho do hotel Wetter, nas imediações do Museu de Cluny. Aí começa de fato a minha história. Desde as primeiras linhas, o poder de persuasão do livro agiu sobre mim de maneira fulminante, como um feitiço poderosíssimo. Fazia anos que nenhum romance vampirizava tão rapidamente minha atenção, abolia assim o entorno físico e me submergia tão profundamente em seu mundo”.
Uma curiosidade: seu romance Tia Júlia e o escrevinhador foi baseado em sua própria vida, pois seu primeiro casamento foi, de fato, com uma tia sua, chamada Júlia, divorciada e dez anos mais velha que ele. Outra: ele foi o primeiro escritor estrangeiro a ingressar na Academia Francesa sem ter escrito alguma obra em francês. Uma deferência e tanto. E mais uma, para finalizar: seu célebre desentendimento com García Márquez (ele chegou a dar um murro no colombiano) pode ter tido uma mulher como causa, vejam só.
Julia Urquidi e Mario Vargas Llosa @trome.com
Dizer que o mundo diminui sem Vargas Llosa pode ser um clichê, mas não deixa de ser uma verdade, num mundo de tantas mentiras e encenações. Estancou o manancial que parecia inesgotável. Uma das fontes que matava a sede intelectual de muitos. Não tenho dúvidas sobre a feliz posteridade que está reservada à sua obra plural, a qual, sem demérito de outras igualmente importantes, só tende a crescer ainda mais daqui por diante.