A paisagem mudou, mas as imagens de seis décadas atrás continuam repercutindo com cenas marcantes, capazes de suscitar novas atitudes ...

Um grito na voz do vento

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A paisagem mudou, mas as imagens de seis décadas atrás continuam repercutindo com cenas marcantes, capazes de suscitar novas atitudes em favor do homem que cultiva a terra.

O repórter não perdeu a sensibilidade de observar as paisagens humanas, a vegetação, os coqueirais, o riacho de água cristalina, as velhas mangueiras dando abrigo às sombras andantes que restam. A terra sem os canaviais, o roçado de maniva e as galinhas ciscando no terreiro dos casebres fizeram lembrar da tarde ensanguentada de abril de 1962.

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Sou Do Nordeste Com Orgulho
Casas não mais de taipa e goteiras. A alvenaria dando lugar ao chão de terra batido. A lamparina a gás foi trocada pela luz elétrica. O pote e a quartinha foram substituídos pela geladeira. O tamborete perdeu espaço para os sofás. A cama de colchão de palha sumiu quando chegaram os colchões ortopédicos.

Seis décadas depois tudo pode ter muda no Sítio Antas, mas o sangue do camponês continua a ensopar os leirões e os banguês que as usinas absorveram:

— Veja como a paisagem continua linda!

Exclamou o repórter Gonzaga Rodrigues quando olhava os arredores da antiga residência desventurosa. Depois de tantos anos conduzindo a mesma ânsia de compartilhar as dores e os aspirações do homem que cultiva a terra, em cada grão depositado na cova, continua a renovar suas palavras esperança.

O velho repórter voltou para conferir com os olhos do coração como estavam as paisagens tantas vezes rememoradas, saindo da memória para a página do livro, a crônica escrita que
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Gonzaga Rodrigues (Sapé, 2025)
Acervo do autor
dava vida aos personagens da tragédia de Café do Vento, como um grito de liberdade do homem que nunca abandonou as brenhas onde morava.

Agora, Gonzaga estava pisando no chão que sempre sonhou ver liberto das amarras do latifúndio canavieiro. Livre do pêlo da cana e do apito estrondoso das usinas enquanto trituram cana.

Do que presenciou o repórter devaneador, fiel aos acontecimentos para melhor informar, quase nada se modificou. Até o último suspiro nunca desistiu de apontar caminhos, um visionário da esperança. Gonzaga, tendo Osmar de Aquino e Assis Lemos à frente, seus os sonhos socialistas ganhavam dimensão.

— O estágio de conscientização dos camponeses de Sapé e arredores ganhou dimensão internacional – disse-nos.

Certa vez o grupo de jornalistas visionários e simpatizantes do socialismo – olhando para os que lutavam sem a espada de Spartacus, mas com a mesma garra —, foi até Sapé para uma improvisada reunião com os camponeses. Bastou o toque do búzio para pátio ficar apinhado de gente, vindo de todas as veredas para escutar os que davam voz a eles.

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José Nunes e Gonzaga Rodrigues
Acervo do autor
Agora, seis décadas depois, estava ali o velho jornalista a recordar as trovoadas que amedrontaram os norte-americanos, depois do Le Monde repercutir as façanhas de um bocado de descamisados da Paraíba que deram um grito de liberdade.

Gonzaga trouxe para as páginas dos jornais todo conjunto de sonhos daquela gente. Fascinado pelas imagens escreveu belos textos, que as vozes que sabiam distinguir à distância.

Recordou o dia 2 de abril de 1962, quando, de coração contrito, conversou com a viúva ao redor do corpo inerte do marido na lousa, feito um passarinho abatido, rodeada pelos filhos e amparadas pelos agricultores que guardavam o grito na garganta. Dias depois viram que a imagem de João Pedro Teixeira se tornaria uma sombra a perseguir seus algozes.

O cadáver do líder camponês passou dos limites da Paraíba, ganhou dimensão na voz do poeta Raimundo Asfora ao proclamar na sua verve camoniana que:

“João Pedro virou Zumbi, virou assombração... É uma sombra que se alonga pelos canaviais, que bate forte na porta das casas grandes... que grito na voz do vento... que clama vingança”.
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Raimundo Asfora Campina FM
Agora, mais de seis décadas depois, emocionado, vendo as rachaduras na parede de taipa, Gonzaga não se conteve.

— Olhando para este mundo, vasto mundo de terra fértil, nessa bela visão de horizontes distantes, os donos das terras não poderiam deixá-lo vivo.

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