Três milagres narrativos: Literatura, Cinema e Pós-TV
A obra O Leopardo é um grande romance épico da literatura italiana, escrita por Don Giuseppe Tomasi de Lampedusa (1958). Seu foco incide sobre a beleza, poder, riqueza e decadência de uma família aristocrata italiana. E se tornou icônica desde a frase de um dos protagonistas da trama:
“É preciso que tudo mude para que tudo continue como está”.
Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896—1957) / Fonte: Wikimedia (adapt.)
De modo similar, encontramos uma expressão análoga, o patrão não morre, no grande épico cinematográfico 1900 (Bernardo Bertolucci, 1976). A literatura italiana não cessa de contestar os poderes dominantes, instigar modos de empoderamento e estratégias de contra-poder, como o livro de Umberto Eco, A Passo de Caranguejo — Guerras Quentes e o Populismo da Mídia (2022), uma crítica também à volta da extrema direita.
O romance de Lampedusa tematiza, em meados do século XX, o declínio da nobreza italiana e a unificação da Itália, à época, dividida em vários reinos e ducados em conflito permanente. O Leopardo conta a história de Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, que luta para manter sua posição e os valores tradicionais, durante a mudança da sociedade siciliana e as consequências dessa mudança para a família do príncipe. O codinome
Il Gattopardo (no texto original) é um dos livros mais lidos na Itália (e no mundo), ao lado de obras como A Divina Comédia (Dante Alighieri), Decamerão (Boccaccio), O Príncipe (Maquiavel), Orlando Furioso (Ariosto), Pinóquio (Collodi) e O Nome da Rosa (Umberto Eco).
O manuscrito deste romance histórico-ficcional foi elaborado em três versões diferentes (desde 1957) e focaliza o protagonismo de Giuseppe Garibaldi durante o chamado ‘ressurgimento’, que traduz o processo de lutas pela unificação italiana, após as guerras napoleônicas e a revolução francesa (1860-1910). E, falando em protagonismo, o personagem de Fabrício Salina, chamado de “príncipe” ou sob a codinome “o leopardo” foi inspirado no próprio avô do escritor Lampedusa, o que indica um resgate e inserção das memórias afetivas e sentimentais da infância do autor (e da família) numa obra ficcional que desvela matizes históricos, sociais e políticos.
Giuseppe Garibaldi, general, guerrilheiro e revolucionário italiano, alcunhado de Herói de dois mundos, devido à sua participação em conflitos na Europa e na América do Sul. / Imagem: Library and Museum of Freemasonry / Fonte: Wikimedia + Wikipedia
O Leopardo no Cinema de Luchino Visconti
O livro O Leopardo foi adaptado para a tela grande do cinema (em 1963) pelo cineasta Luchino Visconti (1906-1976), designado nas suas biografias e revistas de celebridades, como “o príncipe do cinema italiano”.
A narrativa cinematográfica desse grande épico ganha novos contornos junto ao público de leitores e cinéfilos dos anos 60, com a introdução do ator Burt Lancaster no papel do príncipe de Salina.
Burt Lancaster, no papel de Don Fabrizio Corbera (O Leopardo, 1963) / Fonte: Imdb
Burt Lancaster ingressou no cinema em 1946, e ganhou o Oscar pela sua atuação em A Um Passo da Eternidade (1953), quando se tornou sex-symbol, pela cena de amor na praia com a célebre atriz Debora Kerr; além de ser considerado bom ator de teatro, contribuiu para a revolução dos costumes no cinema de Hollywood, em uma época repressiva e conservadora.
O filme O Leopardo foi o grande vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes (1963), uma película que representou o ambiente dos palácios da aristocracia durante o agitado reinado de Francisco II, das duas Sicílias e o “ressurgimento” que gerou o reino da Itália em 1870.
Claudia Cardinale (Angelica Sedara) em O Leopardo (1963) / Fonte: Imdb
Claudia Cardinale interpreta a bela burguesa Angélica Sedara, que se casa com o “esperto” sobrinho do Príncipe de Salina, Tancredi Falconeri (interpretado por Alain Delon), quando este era objeto da paixão de sua prima e filha do Principe de Salina (Consetta / Lucilla Morlacchi), o que implica em conflito no campo das relações amorosas, e que introduz uma aresta romântica na construção dessa narrativa épica.
Quando Angelica (Claudia Cardinale) entra em cena pela primeira vez “é como se o mundo parasse para olhá-la, através da câmera igualmente extasiada”. A atuação de Burt Lancaster é antológica, ele vive como ninguém a figura do aristocrata decaído, e Angélica mexe com seus brios; sua radiante sensualidade perturba os desejos mais inconfessáveis do príncipe Fabrizio.
O ator francês Alain Delon (1935-2024) interpreta o sobrinho Tancredi Falconeri (espécie de filho adotado por Fabrizio). Delon já foi considerado pelas fãs, segundo as “revistas do coração”, o “homem mais bonito do mundo”.
Alain Delon interpreta Tancredi Falconeri, em O Leopardo (1963) / Fonte: Imdb
Tancredi Falconeri (Delon) é quem profere a célebre frase do romance: “É preciso que tudo mude para que tudo continue como está”. É um personagem forte, marcante, singular, que se casa por interesse, desprezando sua admiradora e se bandeia para as tropas rebeldes chefiada pelo famoso líder revolucionário Garibaldi (interpretado no cinema por Giulliano Gemma), pressentindo que estes serão os vencedores do conflito.
Alain Delon (Tancredi Falconeri), Terence Hill (Conde Cavriaghi) e Giulliano Gemma (General Garibaldi), em O Leopardo (1963) / Fonte: Imdb
Luchino Visconti (1906—1976), cineasta italiano. / Fonte: Imdb
Visconti escancara o paradoxo: de certo modo, empregando, em alguns momentos, traços barrocos numa obra de cunho essencialmente realista.
Ele expõe os maravilhosos bailes aristocráticos, quadros fabulosos, tapeçarias cuidadosas, bustos estatuários, cômodos sem fim, luxo, riqueza, grandiosidade, encanto visual e ostentação de classe. O baile, no filme de Visconti, dura 45 minutos, é a sua parte mais exultante; ali se expõe com esmero, o gigantesco cenário onde se move a classe opulenta em seu momento de euforia, êxtase e celebração.
O filme elabora uma barroca “teoria da mortalidade”: expõe o belo, o fausto, “la dolce vita”, e igualmente o seu contrário, “o pó, a melancolia, o vagar paralítico, a indefinição, o tédio, a morbidez, a iminência do fim”.
Visconti apresenta-nos os elementos para uma compreensão sociológica daquela estranha e bela realidade: mergulha fundo nas instituições, mostrando a casa-mansão-palácio como lugar onde se funda “a tirania da intimidade”, que se projeta sobre a esfera social, afetando o mundo do trabalho e os servos explorados pelos ricos proprietários.
Cenas de O Leopardo (1963), que teve parte de suas filmagens realizadas na Villa Boscogrande, em Palermo, Sicília, Itália / Fonte: Imdb
Há uma subversão hilariante da Igreja, do clero e dos fiéis (dos “tementes a Deus”) na narrativa “sacro-profana” elaborada por Visconti.O padre (Pirrone / Romolo Valli) compõe uma figura curiosa e pitoresca, sendo mostrado como um ‘ridículo precioso’. Há uma cena em que ele e a nobreza assustada formam um quadro complexo, um show à parte. Enquanto, a família reza uma prece monótona na igreja, o avanço das tropas de Garibaldi interrompe a ladainha e os membros da “sagrada família” fogem apavorados. Daí, o verso herege: “Deus não pacifica espíritos atormentados”.
O Leopardo (1963) / Fonte: Imdb
É impagável a cena em que o príncipe se lava na banheira e o padre, bajulador, pega uma toalha para secar o patriarca, mas é severamente repreendido por este e se afasta constrangido.
Romolo Valli (Padre Pirrone) e Burt Lancaster (Don Fabrizio Corbera) contracenam em O Leopardo (1963). / Fonte: Imdb
Paulo Stoppa (Don Calogero Sedara), em O Leopardo (1963). / Fonte: Imdb
O Leopardo – na série da (pós)TV / NetFlix
A adaptação do romance O Leopardo tem enfrentado os mesmos desafios de outras obras literárias que migraram para a TV, como Cem anos de Solidão (Gabriel Garcia Marques, 1976), que saiu na NetFlix (2024).
Netflix / via Imdb
Diante da febre das séries feitas para a linguagem do vídeo (ou isto que se tem chamado de “pós-televisão”), distribuídas em pacotes e assistidas pelas plateias, compulsivamente, sob a forma de maratonas, temos um fenômeno radicalmente novo que altera o ‘estado da arte’ da produção audiovisual em cadeia planetária. Dito isto, há uma legião de leitores mais radicais que torcem o nariz para as adaptações da “videoliteratura”.
Há que se respeitar os leitores mais exigentes, educados por outra forma de mediação artístico-tecnológica. Todavia é preciso reconhecer o valor dessa nova experiência de arte-streaming que atrai corações e mentes em escala global, na tradução e conjunção de formações culturais tão distintas, na difícil transmutação de criações literárias histórico-ficcionais.
T. Barbhuiya
Beeboom
A experiência da pós-TV se opera justamente quando, nos grandes centros culturais, o público começa a conhecer o fenômeno das exposições imersivas. Até recentemente, íamos aos museus apreciar as telas de Van Gogh, Monet, Da Vinci, Michelangelo, Picasso ou Cândido Portinari. Mas hoje, podemos mergulhar em ambientes virtuais, imersivos, tridimensionais, interativos, imagético-tácteis-musicais, em que as imagens saltam dos quadros, projetam-se em movimento pelas enormes paredes, movem-se pelo chão e pelo teto em várias angulações. Atravessam nossas peles, corpos e mentes, e nos envolvem como gigantescos lençóis que nos arrebatam as sensações, emoções e sentimentos de modo inimaginável para os antigos amantes das artes. Este é apenas o início do fenômeno de “imersão total”.
Caberia repensarmos o livro, o filme e o vídeo reconhecendo suas três vocações: cumpriria aqui fazer novas “considerações em torno do ato de ler”. Hoje não podemos ignorar como os indivíduos fazem suas leituras através dos celulares, tablets, laptops. Atualmente – na era tecnológica – há um novo modo de leitura (imersiva), um novo modo de afetação dos espíritos, uma nova forma de deleite, gozo estético e aprendizagem.
O filme (e a série) que migrou do cinema pra a TV interativa (WebTV) não é mais o mesmo: mudou o modo de produção, distribuição e consumo.
PxH
As narrativas audiovisuais mediadas pela tecnologia afetam – de modo inédito – nossa vida mental e cerebral. Isto é, pelo prisma simbólico, a série O Leopardo (disponibilizada na mídia digital) envolve o imaginário popular esteticamente, historicamente e sensorialmente de uma forma radicalmente nova. E parafraseando McLuhan, pelo prisma ótico-acústico-sensorial, a narrativa eletrônica (dos grandes clássicos) afeta os perceptos, neurônios, memórias e cognições distintamente das experiências estéticas e cognitivas no tempo forte do cinema e televisão tradicionais.
A série da NetFlix é uma produção ítalo-britânica de Richard Warlow. Diz-se, jocosamente, que após os norte-americanos fazerem uma “pop colonização” no drama de época britânico, com ‘Bridgerton’ (NetFlix, 2024), que retrata a aristocracia inglesa, chegou a vez dos britânicos fazerem o mesmo com a história da Itália. Com roteiro dos experts Benji Walters e Ricardo Warlow (The Serpent), sendo dirigido por Tom Shankland, Giuseppe Capotondi e Laura Luchetti, tem no elenco os atores italianos Kim Ross Stuart (Don Fabrizzio), Saul Nanni (Tancredi), Benedetta Porcaroli (Concetta), e Deva Cassel (Angélica Sedara) filha do francês Vicent Cassel e da italiana Monica Bellucci, que concorrem para uma “tradução genuína”.
Kim Rossi Stuart (Don Fabrizio Corbera), em O Leopardo, a série (2024)
Deva Cassel (Angelica Sedara), em O Leopardo, a série (2024)
Saul Nanni (Tancredi Falconeri), em O Leopardo, a série (2024)
Atualizando (e subvertendo) o conceito de Walter Benjamin, a série da NetFlix — de certo modo — concedeu uma nova “aura” ao épico O Leopardo:
“Ambientado na Sicília — é suntuoso, sensual, emocionalmente tempestuoso e cheio de comida gostosa; todas as qualidades que nosso drama de época caseiro tende a não ter. Mas esta série suada e fumegante é muito mais do que um deleite para os sentidos. Por trás dos babados e das emoções românticas — no centro da ação está um cativante triângulo amoroso jovem — está um conto sócio-historicamente perspicaz da descida de um clã de elite à obsolescência”.
The Guardian (Rachel Aroesti, 05.03.2025)
O Leopardo, a série (2024) / Fonte: Imdb
O som e a fúria — na moderna tradição da obra O Leopardo — retornam através da filmagem irrepreensível dos rituais, da festa, do baile, dos conflitos, batalhas e da guerra civil que mudou o destino da Itália. Há que se reveja e se deleite com a série, sem esquecer Lampedusa e Visconti jamais.