A casa era azul da cor do céu, serena e acolhedora como um abraço. Pelas paredes, voavam andorinhas de louça colorida, cada uma carr...

O lar da minha avó

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A casa era azul da cor do céu, serena e acolhedora como um abraço. Pelas paredes, voavam andorinhas de louça colorida, cada uma carregando nas asas as memórias que minha avó nunca deixava morrer... Verdes, amarelas, vermelhas — as cores que ainda dançam na minha lembrança.

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Havia também aquelas pintadas do mesmo azul-celeste, parecendo ter se aderido ao próprio lar.

Na cozinha, outro universo. O galo bordado dominava a toalha de mesa e se multiplicava nos panos que decoravam o fogão após a limpeza. Um galo tão especial, quase mágico, que diante de sua imponência, diferenciava-se das aves do nosso quintal... “Não é Marcelo, é Barcelos!”, minha avó corrigia quando errávamos o nome do galo.

"Olhe com os olhos! Tire as mãos daí!" — ralhava muito mais por costume do que por severidade, enquanto guiava os netos numa jornada que ia de um canto a outro da casa. Sua voz ecoava pelos corredores, cheios de janelas, que ela abria uma a uma, permitindo que a luz do sol invadisse, revelando os azulejos delicadamente trabalhados. E cada figura relembravam histórias que faziam sua voz estremecer.

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Diante dos quadros e azulejos, ela recomeçava a narrativa de suas origens. Embora já tivéssemos ouvido tantas vezes que quase sabíamos de cor, como um conto encantado, ela sempre encontrava um detalhe novo, um episódio esquecido, que nos prendia e fazia mergulhar na fantasia.

Para mim, naquela época, o bairro da minha pequena cidade de interior já parecia infinito, como poderia então compreender a imensidão do mar que ela dizia ter cruzado em um grande navio?

Entre a sala e a cozinha, às vezes ela parava, silenciosa, enquanto lágrimas escorriam discretas por sua face.
Com doçura e firmeza, ela insistia em nos provar, como se tudo fosse mesmo verdade. O lugar mágico de onde viera, chamava-se Portugal, um nome que ela pronunciava com reverência, como se agarrasse um pedaço dele nas mãos. Nós, pequenos exploradores desconfiados, trocávamos olhares cúmplices, duvidando daquelas histórias. "Pobre vovó, vive no mundo da lua", pensávamos em segredo, mas, no fundo, éramos cativados pela força das suas invenções.

Havia, no entanto, momentos em que sua narrativa tropeçava. Entre a sala e a cozinha, às vezes ela parava, silenciosa, enquanto lágrimas escorriam discretas por sua face. Talvez o brilho do sol surpreenderá a visão envelhecida — pensei um dia. Depois, passei a suspeitar que fossem mesmo saudades, aquelas que doem o peito e escapam sem pedir licença.
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Ela então, se sentava, com as mãos acariciando a borda da toalha como se pudesse sentir o galo bordado responder ao seu toque. Suspirava, olhando para longe, para além de nós, para um tempo em que só ela podia alcançar.

Ainda assim, não tardava a voltar à terra, puxada pela beira da saia, por algum dos netos inquietos. “Não é ninho, fia, é Minho!”, corrigia com um sorriso, enquanto cortava o bolo de mel — sempre o mesmo bolo — aquele com o gosto das tradições que adorava compartilhar. E, com a mesma doçura, nos mostrava como dobrar o "lenço dos namorados", igual àquele que não abandonava sua cabeça, feito uma coroa que trazia com orgulho de suas origens.

Minha avó se fazia ponte entre dois mundos, transitava num passado que se recusava esquecer e num presente que ela teimava em preencher de encantos. Cada palavra, cada gesto, cada detalhe, tornava aquela casa azul, muito mais que um singelo lar num cantinho do Brasil. Ali, era um universo onde memórias e sonhos coexistiam em perfeita harmonia.

Texto premiado no concurso anual, promovido pela Associação Portuguesa de Poetas - APP (Lisboa), com apoio da Câmara de Lisboa, classificado com a 1ª menção honrosa, em 05 de abril de 2025


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