Mercê de Deus ou da Senhora da Conceição, de imagem herdada de uma das remotas casas do Padre Ibiapina, ainda não fui eximido do exercício medido, pró-consciente da aplicação da palavra na construção da escrita. Desde que me entendi neste jogo tento ver no assentamento da palavra o que sentia o menino de parcos brinquedos a assistir à assentada de cada tijolo na obra de pedreiro de mestre Elesbão. A cada assentamento o alisado da colher e a recorrência ao prumo do nivelamento. No final, a parede vermelha sem reboco, um tijolo amarrado no outro numa composição que só anos depois, muito depois, pude associar, mesmo através de reproduções de banca de revista, à fase cubista de Mondrian.
E fiquei na lição ainda que ingênua do mestre Elesbão. Mais ainda quando o texto era de responsabilidade editorial do jornal, da sua palavra, o seu tijolo. Se eu escrevia uma vez lia dez, por mim e pelos que encarnavam a crítica da época: “O que Alfredo Pessoa de Lima vai achar disso? / E Armando Frazão? / E Messias Leite? “ – eram os Agripinos Griecos dos cafés que ladeavam o Ponto de Cem Réis.
Mas tive ajuda. Um grande brasileiro seguido de norte a sul em sua doutrinação e em seu mister de escritor militante da literatura e das ideias de soberania nacional, Monteiro Lobato, chegava a tempo na biblioteca municipal de Alagoa Nova. Biblioteca a que não pode faltar o nome do seu fundador, o prefeito Arlindo Colaço. Graças a Urupês, a Cidades Mortas, o menino de grupo escolar descobriu um nome novo e de luxo para o que em casa e na rua, na escola, conhecíamos como mangação. Era a ironia e o modo crítico de julgar certas criaturas que nos pareciam falsas. E foi numa carta de Lobato ao parceiro de letras e amigo da vida inteira, Edgar Cavalheiro, que ele dava a fórmula:
“Quer escrever exato, leia e releia o Código Civil de Bevilacqua. Ele não deixa brecha à equivocada ou falsa interpretação.”
Anos depois, no Ginásio Castro Pinto - uma seccional do Liceu no turno da noite – sobreveio-me a mesma recomendação de um velho professor de Português que se foi com a gramática de Eduardo Carlos Pereira, o professor Deloni: “A maior obra de Epitácio Pessoa não foi sua dedicação ao Nordeste, mas confiar a redação do Código Civil a um colega cearense de Faculdade, Bevilacqua. Rui Barbosa nunca o perdoou.”
Tudo isso irrompe da sombra ao deparar, no primeiro jornal da semana, com a notícia da aprovação, pelo Senado, do projeto de lei que “permite ao governo brasileiro retaliar medidas comerciais que prejudiquem os produtos do país no mercado internacional”.
Parei a leitura em retaliar. E fiquei mastigando: retaliar, retaliação. Não é que eu desconhecesse a palavra de uso tão frequente. É que não avultava à mente ensombrada, subitamente surpreendida com a palavra, a força radical do seu significado. Mente em desuso ante a realidade do noticiário, confinada ao pensamento e às leituras do meu particular agrado. E me espantei em meus receios com a demência.
Corri ao dicionário mais próximo e retomei um cuidado da vida inteira. Lá está: “Retaliar: revidar com dano igual ao dano recebido.” A sinonímia prossegue, vária, rica, mas dispensável. Não há outra expressão, ela é única para a situação em que foi empregada ou em que estamos confrontados. Tijolo da construção de longe alicerçada na cabeça velha do menino.