Num dos romances de Conan Doyle. O Dr. Watson pergunta a Sherlock Holmes se ele sabia que a Terra é redonda. Sherlock reponde que não sabia e que faria tudo para esquecer, a fim de reservar no cérebro espaço para informações mais úteis à sua função de detetive. Numa primeira leitura, presumo que ele talvez quisesse dizer que a memória humana tem capacidade limitada, como se o saber ocupasse lugar. Numa segunda leitura, acredito que ele talvez quisesse dizer que a memória poderia ser mais bem aproveitada se armazenasse conhecimentos mais práticos e mais importantes para a vida.
Encarregado da disciplina Linguística, no curso de pós-graduação da Universidade, em meados da década de 80, coube-me ensinar Modelos Linguísticos. No final de cada semestre eu aplicava provas. Ainda tenho, amarelecidas pelo tempo, algumas dessas provas na sua maioria datiloscritas que encontrei por acaso numa limpeza de gavetas.
Nelas, entre as questões aplicadas, havia algumas preciosidades jurássicas, como nomear os seis níveis hierárquicos observáveis nos indicadores sintagmáticos da tagmêmica; estabelecer o estema da sentença “Os homens querem que as mulheres sejam fiéis”; estabelecer, segundo a gramática gerativa, com evidências negativas, a ordem de aplicação das regras de reflexivização, concordância do verbo com o sujeito e concordância de gênero e número, em português; dar exemplo, segundo a estemática, de núcleo gêmeo verbal com três actantes e dois circunstantes, de forma que um dos circunstantes tenha sido submetido à translação, etc.
Tiveram menos destaque e menor valor questões que hoje considero mais importantes, como o conceito de feito de fala e as possibilidades que o sistema oferece por oposição à norma; padrões reais e padrões ideais de linguagem; o porquê de “ninguém não veio” ser uma construção condenável e “não veio ninguém” ser aceitável, embora em ambos os casos haja dupla negação; por que um ditongo terminado em semivogal é chamado de decrescente; por que o tonema não é fonemático em português, e o tasema é; por que não se deve considerar flexão interna o plural de qualquer (quaisquer) ou de anãozinho (anõezinhos) e como seria a flexão interna em português; por que não se deve definir pronome como substituto do nome; como justificar a concordância no singular da frase “O véu e a seda embeleza a noiva.” Etc. etc. Privilegiei conhecimentos superados e deixei de considerar assuntos linguísticos diretamente ligados ao ensino da língua portuguesa.
Hoje, analisando essas provas, dou-me conta (há alguns anos já aposentado por causa da idade) de que eu mesmo talvez não respondesse adequadamente a todas essas questões constantes das provas. O que me leva a pensar na inutilidade de muito do que transmiti aos meus alunos, na ânsia de querer ensinar. Dou-me conta também de que, no convívio com alunos, quase todos jovens, eles me ensinavam, com sua juventude e ideais de vida, muito mais do que eu pretensamente lhes ensinava dos meus alfarrábios. Eu saía ganhando na troca.
Por que exigir a tagmêmica, a ordenação de regras da gerativa, a estemática (apesar da gramática de valências) ou as gramáticas de casos? Por que não valorizei problemas da nossa própria língua? Há um mundo de assuntos importantes sobre nosso sistema linguístico a que não dei a devida atenção, talvez por, equivocadamente, achá-los desnecessários para a formação de professores. Eu talvez achasse que o conhecimento de várias abordagens sintáticas seria mais importante que a aprendizagem da sintaxe tradicional exposta (embora sem profundidade) nas nossas gramáticas ou nos manuais escolares. Muitas dessas abordagens sintáticas que eram o objetivo do meu curso estão ultrapassadas, e ensiná-las, achando que elas foram úteis quando foram propostas, não deveria significar que fossem aprendidas em seus detalhes. Esquecemos muito do que estudamos e aprendemos. O que fica na memória de tudo o que estudamos, se é que fica alguma coisa, é apenas o essencial, que talvez sirva para alguma decisão ou reflexão ao longo da vida. O essencial das provas citadas talvez estivesse nas questões gramaticais relacionadas à língua portuguesa, mas certamente é um essencial que se terá perdido no meio de tanta perfumaria.
O que será que sobrou na memória dos meus alunos do que achei que lhes tinha ensinado em mais de cinquenta anos de magistério? Quanto do essencial que eu deveria ter transmitido terá sido esquecido no emaranhado de inutilidades? Devo ter perdido a noção do dever de um educador. Ou talvez nunca tenha tido essa noção, entusiasmado com as novidades que descobria nos livros e dominado pela ânsia de transmiti-las aos alunos.
Acho que Sherlock Holmes estava certo. Há certas informações que poderíamos dispensar, para preservar o cérebro de esforços inúteis e para nele reservar espaço maior para conhecimentos mais importantes.
Meu magistério talvez tenha sido uma fraude. Se o foi, dou-me conta de que é tarde demais para desculpar-me com meus alunos...