Um jesuíta com jeito de franciscano. Cardeal em Buenos Aires, andava nas ruas, nos ônibus e no metrô como um padrezinho de aldeia: batina surrada, gastos sapatos pretos, uma pasta de couro igualmente marcada pelo uso. Papa, substituiu o anel de ouro por um de prata, manteve os velhos sapatos pretos, recusou o apartamento papal e foi morar coletivamente na hospedaria do Vaticano, optou pelas vestes brancas, as mais simples que havia. Um figurino que expressava verdadeiramente sua persona humilde, não uma fantasia demagógica para aparentar uma simplicidade inexistente. Um pobre no meio de tesouros, um pobre em recursos materiais e principalmente um pobre em espírito, apto, portanto, a herdar o Reino do Céu, como disse Jesus nas bem-aventuranças.
Papa Bento XVI Sven Hoppe
A surpreendente escolha do nome Francisco já disse tudo sobre aquele homem que se anunciou aos fiéis como vindo do “fim do mundo”. Era à época um desconhecido da multidão. Discreto e da periferia mundial, praticamente ninguém, fora da Argentina, ouvira falar de Jorge Mario Bergoglio quando de sua eleição ao papado na conturbada sucessão de Bento XVI, que continuava vivo, voluntariamente recolhido a um mosteiro dentro dos muros do Vaticano. Francisco. Um nome que até então fora adotado por nenhum sucessor de Pedro, o que é de se estranhar, já que se trata de um dos maiores e mais queridos santos da Igreja. Nem o modesto Ângelo Roncalli, filho de camponeses e tão qualificado para usá-lo, lembrou-se dele. E teria combinado tão bem. Entretanto, quis a Providência (ou o destino) que fosse Bergoglio o primeiro a escolhê-lo, com todos os simbolismos decorrentes.
Começava por aí a diferença trazida pelo despretensioso argentino. Diferença que logo depois se confirmou, como dito, com a recusa dos tradicionais apartamento papal e anel de ouro dos pescadores. Pequenas decisões, imensos significados. Bem condizentes com o santo que lhe emprestara o nome. O santo que,
Tariq Tahir
rico, elegera a pobreza como lema e como prática. De fato. Pois poderia Francisco morar num palácio e usar joias valiosas? Nisso ele se diferenciou imediatamente de seu antecessor, um homem santo também, certamente, mas mais apegado às tradições exteriores do papado, como as vestimentas suntuosas, os sapatos vermelhos, os crucifixos preciosos e até chapéus de outras épocas. Ratzinger, sabe-se, era pessoalmente simples nos seus hábitos de cardeal, mas como papa Bento XVI não soube expressar exteriormente sua simplicidade, tal como soube fazê-lo Bergoglio.
Francisco logo cativou a maioria dos católicos e causou admiração entre os não católicos. Sua evidente doçura e sua fraterna tolerância conquistaram fãs. Sua célebre frase sobre os homossexuais “Quem sou eu para julgá-los?” até hoje ecoa pelo mundo, acolhendo e confortando perseguidos e discriminados em geral. Sua abertura à eucaristia aos divorciados casados novamente também. Gestos simples e de certo modo revolucionários, mostrando a face acolhedora do Cristo, nem sempre imitada por sua Igreja santa e pecadora. Mas não foi uma unanimidade entre os católicos, pois sabemos das resistências que enfrentou na Cúria e fora dela, até mesmo entre fiéis comuns, resistências parecidas àquelas que o próprio Jesus enfrentou ao seu tempo, o que prova que o bem às vezes demora para ser compreendido – e praticado. Esses desencontros explicam o porquê de não ter visitado, como papa, sua Argentina natal. Visitou mais de setenta países, mas preferiu não rever a terra onde nasceu e trabalhou quase a vida inteira. É possível que essa controversa decisão tenha sido mais uma de suas contribuições para a paz.
Papa Francisco abençoa a diversidade de gênero (Vaticano, 2020)Grzegorz Galazka
Doze anos pode parecer pouco tempo para um papado. Mas não. João XXIII, o papa bom, revolucionou a Igreja em menos tempo com o Concílio Vaticano II. Essas coisas são misteriosas, como devem ser as coisas cuja decifração estão além da nossa limitada inteligência. Para Francisco, doze anos certamente foi o bastante. A história o julgará. Não esqueçamos de João Paulo I, o papa sorriso, que governou apenas trinta e três dias e que tanto impacto amoroso provocou.
Não se pode esquecer que um papado, para ser importante, não precisa necessariamente ser revolucionário nem agente de grandes mudanças. Às vezes, a importância reside exatamente no contrário, ou seja, na continuidade da tradição milenar, na
Basílica S. Pedro Julien Di Majo
conservação dos legados fundamentais dos antecessores. Por sua história de praticamente dois mil anos e por seu caráter universal, a Igreja costuma se movimentar mais lentamente que outras instituições. Daí a equivocada impressão que alguns têm de que ela está sempre aquém do mundo. Não. A questão é que, por não cultivar a rápida e frequentemente frívola volubilidade mundana, a Igreja não segue modismos nem se preocupa em agradar ou desagradar ninguém, mas opta por sempre permanecer fiel a si mesma, guardiã que é dos ensinamentos de Cristo.
Não foi Francisco um papa intelectual, como Bento XVI. Pelo que sei, não foi um grande teólogo, a despeito de pertencer a uma ordem, os jesuítas, famosa por seu culto aos estudos. Foi mais de falar e de fazer do que de escrever. Publicou quatro encíclicas e estas parecem ter sido suficientes como documentos de seu pontificado. Mais importantes, pelo visto, foram suas palavras e suas práticas, seu testemunho, como se diz. Todavia, alguns livros autobiográficos de sua lavra percorrem o mundo entre os mais vendidos, tornando-o inesperadamente um best-seller. Provavelmente porque nessas obras estão expressos, sem rebuscamentos teológicos, a sua simplicidade e o seu amor à humanidade e à paz.
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Sobre seu sucessor, tudo é mistério. E é bom que seja assim. O Espírito Santo sopra onde quer. Poderá ser um europeu ou um africano. Um mais progressista ou outro menos. Um mais velho ou outro mais jovem. Os favoritos prévios nem sempre são confirmados. O certo é que a Igreja é maior que os papas e sempre lhes sobrevive. Dois mil anos de história estão aí para provar. O jornalista Elio Gaspari escreveu sobre a possibilidade de um próximo João XXIV, nome que o próprio Bergoglio teria inicialmente cogitado para si. Quem sabe?
Elio Gaspari GGN
Talvez pressentindo a partida, Francisco teve tempo para dispor sobre seu funeral. Normalmente uma cerimônia longa e solene, com muitos aparatos, o velório e o sepultamento dos papas é de fazer inveja aos reis. Desta vez, bem no espírito franciscano, tudo será simplificado, para que também na morte o papa se pareça com as pessoas comuns. Mais uma diferença a se registrar no inventário de seu pontificado. Por sua escolha, será sepultado fora da basílica de São Pedro, no chão e num caixão de madeira. E em sua lápide, sem ornamentos, haverá uma única palavra: Franciscus, seu nome em latim, a língua oficial da Igreja. Maior simplicidade, impossível.
Por tudo isso, talvez uma boa e justa maneira de chamá-lo daqui por diante seja “Francisco, o papa simples”. Tem tudo a ver com ele, sem nenhuma dúvida.