Os dicionários no Brasil deveriam respeitar sempre a ortografia oficial constante no Vocabulário Ortográfico. Durante muitos anos, o Aurélio inventou os hifens em “dona de casa”, contrariando a ortografia oficial; o Houaiss contribui com essa desobediência ao nosso Vocabulário Ortográfico, grafando inadequadamente, numa justificativa indevida, berinjela com < g > (beringela), como vimos no nosso artigo do dia 04.12.2023, neste espaço. E a grande maioria dos dicionários brasileiros dividem as sílabas de
“parapsicologia” desrespeitando as regras ortográficas vigentes que exigem que o < p > e o < s > se separem na translineação (mudança de linha): pa-rap-si-cologia (e não para-psi-co...), já que não há hífen depois de para.
Toda vez que consulto um desses dois dicionários encontro pelo menos uma escorregadela em algum verbete.
Desde cedo aprendemos que a ordem da numeração decimal é a seguinte: unidade, dezena, centena, milhar, milhão, bilhão, etc. A unidade monetária dos Estados Unidos é o dólar. A da União Europeia é o euro. No Brasil, a unidade monetária é o real. O Dicionário Aurélio, no verbete Real 2, informa adequadamente que o real é a antiga unidade monetária do Brasil e de Portugal (plural: réis) e que, desde 01.07.1994, passou a ser a unidade monetária atual do Brasil (plural: reais). Contrariando a matemática, o Aurélio, no verbete mil-réis
(que não deveria ser verbete) informa que se trata da unidade monetária brasileira antes de 1.11.1942. Ora, mil-réis não é unidade monetária de nenhum país, como mil dólares não é a unidade monetária dos Estados Unidos. Mil não é unidade, nem centena, mas milhar. A bobagem continua no mesmo verbete, numa informação entre parênteses: “um mil-réis unidade monetária portuguesa antes de 1911, quando foi substituída pelo escudo”. Além de errar em matemática, o Aurélio erra no vernáculo: todos sabemos, desde que aprendemos a ler, que não existe UM antes de mil. Dizemos “mil novecentos e onze”, não “um mil novecentos e onze”. Dizemos “mil reais”, não “um mil reais”.
O Houaiss claudica ainda mais. No verbete dar, na parte de gramática, em rodapé, o Houaiss dá a seguinte explicação no item c): “exemplos de concordância por atração com o objeto direto: deram duas horas; vão dar duas horas”. O Houaiss inventa uma regra impossível em português: não existe concordância do verbo com o objeto direto, mas apenas com o sujeito (ou com o predicativo do sujeito). As boas gramáticas ensinam que, em “Deram duas horas”, o sujeito é “Duas horas” e o verbo concorda com o sujeito. Deram, aí, é verbo intransitivo e, portanto, sem objeto.
Mas os erros denunciadores da má qualificação do autor dos verbetes (certamente sem nenhum curso especializado de lexicografia) não param por aí. Na predicação verbal temos, pela Nomenclatura Gramatical Brasileira, a seguinte classificação dos verbos: de ligação, intransitivos, transitivos diretos, transitivos indiretos e transitivos diretos e indiretos, e não “bitransitivos” que o Houaiss adota em todos os verbetes em que classifica os verbos pela predicação.
Mas não é só. Apenas para exemplificar, porque as ocorrências são numerosíssimas, no verbete despertar, o Dicionário informa entre as predicações possíveis a de “predicativo”, com os exemplos seguintes (item 4): “despertou adoentado / o dia despertara festivo”. Ora, o predicativo é função nominal, não verbal,
um atributo de qualquer termo oracional (normalmente do sujeito e do objeto), independentemente da predicação verbal. Têm predicativo do sujeito verbos de ligação, como em “ele é bom”; e verbos intransitivos, como em “ele saiu triste”. Nos verbos transitivos, o predicativo pode ser do objeto direto ou do sujeito, como em “Ele se acha sábio” (sábio aí é predicativo tanto do sujeito quanto do objeto); mas em “Ele me considera sábio”, o predicativo é apenas do objeto direto. Em “Preciso de você sóbrio”, o predicativo é do objeto indireto. Mas há predicativos de outras funções sintáticas, além do sujeito e do objeto. Há o predicativo de adjunto adverbial, como em “Ela não sairá com você bêbado”, e há até predicativo de predicativo, como em “Arroz-doce só é bom gelado” ou como em “O bom guarda é eficaz desarmado.”
Ainda a propósito desse verbete: despertar não é verbo pronominal, como desinforma o Houaiss no item 5. O pronome oblíquo não é parte do verbo, como em queixar-se, por exemplo, ou como em arrepender-se, que só se conjugam com o pronome.
Não é, portanto, a predicação verbal que implica a ocorrência de predicativo. Consequentemente, nos exemplos equivocados do Houaiss, adoentado e festivo são predicativos do sujeito, e o verbo despertar, no caso, é intransitivo. Não existe em português “verbo predicativo”.
Conheci o Houaiss pessoalmente, e tenho a certeza de que ele condenaria o dicionário que foi publicado após sua morte. Segismundo Spina, no livro Episódios que a vida não apaga – itinerário de um pícaro poeta (São Paulo: Humanitas FFCH/USP, 1999, p.149), afirma:
Segismundo Spina
“O referido Dicionário [Aurélio], a par de sua bondade, de sua modernidade e aparente fundamentação filológica, está cheio de furos. Aurélio não tinha, como não tiverem os próprios dicionaristas Cândido de Figueiredo e Laudelino Freire, estofo filológico para um trabalho sério, no campo da lexicografia.”
Antônio Houaiss tinha esse estofo. E pelo que dele conheci, creio que ele teria vergonha do dicionário que leva seu nome.