Naquele dia Osvaldo abriu os olhos e, por uma espécie de automatismo, levantou-se da cama...

Aposentado

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Naquele dia Osvaldo abriu os olhos e, por uma espécie de automatismo, levantou-se da cama e foi olhar o relógio. Deu-se então conta de que não precisava mais fazer isso; estava aposentado. Pensou em ainda dormir um pouco, quando percebeu que a mulher já estava sentada à mesa da copa. Depois de escovar os dentes e lavar o rosto, foi até lá e se sentou para o primeiro café em anos sem pressa, sem preocupação com o trânsito, sem medo de chegar tarde e não poder assinar o ponto.

Rosilda notou sua expressão de alívio. O marido bem que merecia o descanso. Esforçara-se muito para criar os filhos do casal – Nestor e Amanda – e a partir de agora tinha direito a outro tipo de rotina. Por sinal, Osvaldo já lhe dissera que um velho amigo, Aníbal, participava de um grupo que costumava jogar gamão à tardinha, num shopping, e lhe fizera o convite. Ele tinha aceitado.

A aposentadoria seria também uma forma de o marido lhe ajudar em algumas tarefas domésticas, como lavar os pratos. O trabalho na repartição nunca havia deixado tempo para isso. Rosilda tocou no assunto e, ao se levantarem da mesa, levou-o até a pia para mostrar como era simples o serviço:

– Você só tem que borrifar detergente numa bucha, esfregar na louça engordurada e remover tudo com a água da torneira. – Ele fez sinal de que entendera e pouco depois, para confirmar que tinha boa vontade, começou a trabalhar. Dispôs-se então a ficar ajudando a mulher nessa tarefa, que não prejudicaria o gamão com os amigos nem outras amenidades a que a sua nova condição lhe daria direito.

No dia seguinte, recebeu a visita de um dos filhos. Mal entrou em casa, Nestor saudou-o com entusiasmo:

– Viva! Agora temos aqui um aposentado. Dever cumprido, chega enfim o repouso do guerreiro.

Osvaldo sorriu sem jeito, e ficou mais sem jeito ainda quando o filho acrescentou:

– O descanso é merecido, mas tome cuidado. Aposentadoria não é sinônimo de ociosidade. O pai de um amigo meu se aposentou e ficou sem fazer nada. Resultado: acabou com depressão. Hoje toma remédios, por sinal caríssimos.

Osvaldo ponderou que não ia se tornar um inativo. Além do gamão, pretendia procurar outras distrações...

– Eu tenho uma proposta para o senhor não ficar sedentário – cortou o rapaz. – Três vezes por semana devo providenciar um relatório sobre os gastos da empresa. Coisa simples, mas que me toma o tempo de outros serviços. O senhor podia me dar uma mão. Nem vai precisar sair de casa, eu trago a papelada pra cá.

O pai disse que era possível, sim, desde que o trabalho não atrapalhasse os encontros que pretendia ter com as pessoas da sua faixa de idade.

– Beleza, pai. Esse trabalho, o senhor vai ver, fará bem a nós dois – disse e saiu apressado. Precisava trabalhar num dos tais relatórios.

No dia seguinte foi a vez de Amanda. Ela veio com os filhos – um casal – e foi logo pedindo aos dois:

– Deem os parabéns ao seu avô. Ele agora está aposentado.

– O que é “aposentado”, mamãe? – perguntou Eduardo.

– Quer dizer que ele vai ficar em casa descansando.

– Puxa mãe, que bom! – exclamou Carol. – Agora vovô vai ficar mais com a gente.

– Pois é... – disse Amanda. – Agora ele vai ficar mais com a família.

Pensou um pouco e completou: – Pai, por que não pega os dois na escola pelo menos três dias na semana? É uma forma de o senhor se distrair e me ajudar a ficar mais tempo na loja. Às vezes perco clientes quando tenho que sair mais cedo.

– Ah, vovô, Faz isso, faz! – reforçaram as crianças quase ao mesmo tempo. – Quero que o senhor conheça minhas colegas – justificou a menina, segurando a mão dele. Como escapar àquela afetuosa intimação?

– Está bem, vou ver os melhores dias de pegar vocês – prometeu, já pensando em como dividir essa tarefa com as partidas que jogaria com os amigos.

Osvaldo entrou, assim, na sua rotina de aposentado. Nem sempre podia dormir o quanto queria, pois tinha que ajudar Rosilda nos trabalhos domésticos (além de cuidar dos pratos, lavava agora os banheiros “para manter rija a musculatura”, conforme lhe dissera a mulher). À tarde corrigia os relatórios de Nestor; como nunca fora bom em Português, tinha por vezes que fazer consultas na internet sobre regência, acentuação, colocação pronominal e outros tópicos, o que retardava o trabalho.

Quanto à busca dos netos na escola, era a melhor parte; o problema é que justamente nessa hora os amigos se reuniam, e as duas vezes por semana que sobravam para se encontrar com eles lhe pareciam poucas. Embora sentisse um enorme prazer em abraçar os garotos, conduzi-los ao automóvel e deixá-los no apartamento onde moravam, a lembrança das conversas com a turma (às vezes recheadas de anedotas ou de filosóficas considerações sobre a passagem do tempo) deixava-o um pouco nostálgico.

Passaram-se seis meses, e Oswaldo parecia ter se adaptado à nova rotina. Dele se poderia dizer tudo, menos que se tornara “um inútil”. Como uma forma de demonstrar reconhecimento à disposição do marido, que poderia ter se “recolhido aos aposentos” mas não quisera, Rosilda resolveu fazer um almoço especial em família. Nestor e Amanda acharam muito justo, pois o pai vinha se mostrando uma espécie de “aposentado exemplar”. Era um modelo que desencorajava os que confundiam essa etapa da vida com inação.

Chegou o domingo do almoço. Família reunida, só faltava o homenageado, que permanecia no quarto enquanto o restante conversava em volta da mesa.

– Mãe, cadê papai? – estranhou Amanda. – Vá chamar.

Rosilda não chegou a fazer isso, pois logo se ouviu bater a porta do quarto; pouco depois, Osvaldo aparecia com um papel na mão. Postou-se diante do grupo e falou:

– Pessoal, tenho uma surpresa para vocês. – Fez uma pausa e completou:

– A partir de amanhã vou voltar ao trabalho. Este é o meu documento de readmissão; fui buscar ontem.

Ficaram todos em silêncio, que foi quebrado por Amanda:

– Mas por quê, pai?! Não se adaptou à vida de aposentado?

– Mais ou menos isso, filha – respondeu, com um sorriso enigmático.

Em seguida, ante o olhar surpreso e levemente decepcionado do grupo, tratou de ocupar o seu lugar à mesa.

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  1. Beleza de texto, Chico. Perspicácia e humor na observação da realidade. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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