Essa é uma visão poética que não define a felicidade, mas di-la inalcançável e, portanto, utópica, porque, na nossa visão distorcida, pomo-la sempre onde não estamos.
Se tudo é relativo, a felicidade, na hipótese de existir, também é relativa. O homem é feliz quando sente alívio ao ver o próximo numa situação ou num problema mais difícil, como no velho adágio chinês, segundo o qual uma pessoa se queixava por não ter sapatos até o dia em que viu um homem sem pernas. A felicidade, portanto, consiste no prazer de verificar que existe gente com sofrimento maior…
A infelicidade não é o contrário ou o antônimo perfeito da felicidade. Nesta, a sensação de conforto é ditada pela comparação com outros mais infelizes. Naquela, a sensação é a de inveja, como no soneto “Círculo vicioso”, do livro Ocidentais, de Machado de Assis: um vaga-lume inveja a luminosidade da estrela, que inveja a palidez da Lua, que inveja o fulgor do Sol, que inveja o brilho simples do vaga-lume... O desejo frustrado ou o ideal não alcançado na inveja é que provoca a sensação de infelicidade.
É claro que existe uma inveja ruim que consiste em desejar que o outro perca algum bem valioso a fim de se igualar ao invejoso. Mas a inveja de ser como o outro ou de também ter o que o outro tem, sem desejar privá-lo do que tem, essa é a inveja boa que não deveria ser considerada um pecado.
Até na solidariedade diante do sofrimento alheio e na ajuda aos necessitados existe o íntimo alívio de poder ajudar por não se estarem sentindo na pele os mesmos problemas ou a mesma dor. Há uma comparação impiedosa e egoísta, ainda que inconsciente, entre o pretenso bem-estar de quem ajuda e o desconforto de quem é ajudado.
Até o consolo amigo é fruto de uma comparação cruel. A quem perdeu a perna num acidente, o consolo é que Deus ajudou por ele não ter perdido a outra perna... (Deus teria sido de melhor ajuda se não o aleijasse.) Ao tetraplégico dá-se o consolo de não ter perdido a visão e de poder contemplar a beleza do mundo que o cerca... Ao cego dá-se o consolo de poder ler em Braille, de aprender a tocar um instrumento musical, de descobrir o mundo pelo tato, de não ser aleijado... A quem se queixa de algum sofrimento há sempre o consolo de encontrar alguém com um sofrimento maior... Aí reside a ideia de felicidade... Apenas a ideia. Infelizmente.
Eu era feliz e não sabia – lamenta Ataulfo Alves no samba em que recorda seus tempos de criança. Mas não é na saudade dos bons tempos que repousa a sensação de uma felicidade ignorada. O que dá a ilusão de ter sido feliz antes é a vivência de uma situação presente desagradável ou sofrida.
Nós éramos felizes e não sabíamos até que um desabamento arrase nossa casa, ou até que um bandido mate uma pessoa querida ou até que um ladrão nos roube o fruto suado de um trabalho intenso, ou, em suma, até que um momento mais crucial nos quebre a rotina ou nos faça suspirar pelos segundos que precederam essa quebra…
Há talvez um certo exagero na declaração sofrida de Ataulfo Alves. Ignorar que se é feliz é ser infeliz. A felicidade que se ignora não é vivida. Como a felicidade é um sentimento, imagino que não exista sofrimento que não seja percebido.
Também não creio que a felicidade seja a autorrealização. Sentir-se realizado significa manter-se numa situação estática, rotineira e, ao final, tediosa. Acredito que a felicidade seja uma colcha de retalhos formada por pequenos períodos de tempo em que nos sentimos em paz com a vida ou com nós mesmos, porque estar em paz consigo e com a vida talvez seja uma forma de felicidade. Não creio que a felicidade seja a sensação de alívio depois do sofrimento. Se isso fosse verdade, seria o homem mais feliz do mundo aquele português da anedota que andava com os sapatos apertados o dia inteiro para ter a sensação de alívio ao descalçá-los à noite.
Imagino que a felicidade (que só tem plural na canção de “parabéns pra você”, embora a autora da letra, Bertha Celeste Homem de Mello, não a tenha escrito pluralizando a felicidade) não exista realmente e seja algo efêmero e incompleto, uma série não linear de momentos agradáveis.
Não tenho saudades da minha infância e imagino que não teria sido feliz sem saber que o era; nem infeliz, sabendo. Mas sinto que um pouco de mim morreu na adolescência que deixei de ter. Eu não era feliz e não sabia. Talvez aí esteja o sentido da felicidade: ignorar que se é infeliz...