O que é ser avô? Quais os encargos e privilégios de exercer, digamos, a “avoíce”? Ser guiado pelos netos, tê-los como a sua nova aurora e, assim, remoçar e renascer em cada um deles. Renascer, menos por persistir como continuidade genética, mas por encontrar neles a sua própria vida, no novo rebento que ali floresce, cujo alicerce é a sedutora inocência, despertada pela doçura do amor e de
uma vida em que tudo é sonho e ideal.
Eis a lição que Victor Hugo nos passa, em um dos seus últimos livros de poemas, gestado ainda no exílio, em Guernesey. Após a morte do filho, Charles, Victor Hugo assume o encargo de criar os netos, indo morar com eles e a sua nora, em Paris, a partir de 1874. A convivência continuada e direta com os dois netos, Georges e Jeanne, resulta neste primoroso livro A arte de ser avô (L’Art d’être grand-père, 1877), um bálsamo para aliviar as agruras da sua vida – o exílio (1851-1870), a morte da filha, Léopoldine (1843); a morte da mulher, Adèle Foucher (1868), e a morte do filho, Charles Hugo (1871):
Ah ! les fils de nos fils nous enchantent,
Ce sont de jeunes voix matinales qui chantent.
L’Autre, poème V
Ah! os filhos de nossos filhos nos encantam,
São jovens vozes matinais que cantam.
O Outro, poema V
A arte de ser avô expressa o amor na sua pureza maior, no aprendizado da madureza com a infância; no coroamento de uma vida de lutas, com as delícias da renovação, da alegria e da inocência que só as crianças podem e sabem proporcionar. Ao mesmo tempo, Hugo diz que os netos “são a aurora”
Jeanne, Victor e Georges Hugo, em foto ilustrativa de A arte de ser avô, ed. 1877. ▪ Wikimedia
(ils sont l’aurore, “Georges et Jeanne”), e que “tornar-se avô é retornar à aurora” (Oui, devenir aïeul, c'est rentrer dans l'aurore, “L’Autre”).
Ainda que seja um livro completamente dominado pelo lirismo, Hugo não esquece os dissabores que o levaram ao exílio por quase 20 anos. Diante disso, escolhemos, para tradução e alguns comentários críticos, um dos poemas mais interessantes, que nos possibilita o diálogo entre o avô enternecido e o político aguerrido – “Victor, sed Victus” (“Vencedor, mas Vencido”), transcrito abaixo:
VICTOR, SED VICTUS
Je suis, dans notre temps de chocs et de fureurs,
Belluaire, et j'ai fait la guerre aux empereurs;
J'ai combattu la foule immonde des Sodomes,
Des millions de flots et des millions d'hommes
Ont rugi contre moi sans me faire céder;
Tout le gouffre est venu m'attaquer et gronder,
Et j'ai livré bataille aux vagues écumantes,
Et sous l'énorme assaut de l'ombre et des tourmentes
Je n'ai pas plus courbé la tête qu'un écueil;
Je ne suis pas de ceux qu'effraie un ciel en deuil,
Et qui, n'osant sonder les styx et les avernes,
Tremblent devant la bouche obscure des cavernes;
Quand les tyrans lançaient sur nous, du haut des airs,
Leur noir tonnerre ayant des crimes pour éclairs,
J'ai jeté mon vers sombre à ces passants sinistres;
J'ai traîné tous les rois avec tous leurs ministres,
Tous les faux dieux avec tous les principes faux,
Tous les trônes liés à tous les échafauds,
L'erreur, le glaive infâme et le sceptre sublime,
J'ai traîné tout cela pêle-mêle à l'abîme;
J'ai devant les césars, les princes, les géants
De la force debout sur l'amas des néants,
Devant tous ceux que l'homme adore, exècre, encense,
Devant les Jupiters de la toute-puissance,
Été quarante ans fier, indompté, triomphant;
Et me voilà vaincu par un petit enfant.
Vencedor, mas vencido
1. Eu sou, em nosso tempo de choques e furores,
Bestiário, e eu fiz a guerra aos imperadores;
2. Eu combati das Sodomas as imundas multidões,
Milhões de vagas e de homens milhões
3. Rugiram contra mim sem me fazer sucumbir;
Todo o abismo veio me atacar e grunhir
4. E eu sustentei o combate com as vagas espumantes,
E sob o enorme assalto da sombra e tormentas tonantes
5. Minha cabeça não curvei, mais que um escolho;
Eu não sou dos que atemoriza um céu lutuoso
6. E que, não ousando sondar o estige e os avernos,
Tremem diante da boca obscura das cavernas;
7. Quando os tiranos lançavam sobre nós, de cima dos ares,
Seu negro trovão tendo por crimes os raios,
8. Eu lancei meu verso sombrio a esses passantes sinistros;
Eu arrastei todos os reis com todos os seus ministros,
9. Todos os falsos deuses com todos os príncipes falsos,
Todos os tronos ligados a todos os cadafalsos,
10. O erro, o gládio infame e o cetro sublime,
Eu arrastei tudo isso na confusão ao abismo;
11. Eu, diante dos césares, dos príncipes, dos gigantes
Tenho força, de pé, sobre o amontoado de insignificâncias,
12. Diante de todos os que o homem adora, execra e turifica,
Diante dos Jupiteres de um poder que se intensifica,
13. Fui quarenta anos altivo, indomável, triunfante;
E eis-me vencido por um pequeno infante.
Victor Hugo e seus netos Georges e Jeanne, em Guernesey, 1872 ▪ Fonte: Wikimedia
No original, os dísticos não estão separados, conforme se pode ver. Fizemos, entretanto, a separação em treze dísticos por uma questão didática, para que se visualizasse melhor o texto traduzido. Optamos, ainda, por fazer uma tradução em versos livres, embora os versos de Hugo sejam perfeitos alexandrinos, com a cesura na 6ª sílaba funcionando como hemistíquio (a metade do verso):
Fizemos um esforço para manter a rima emparelhada do original, que seguem o esquema AA BB CC DD... Mantivemos as rimas consoantes, quando os versos assim permitiram, mas, por pura impossibilidade de nossa parte de manter a consonância, algumas rimas se arranjaram como toantes, aquelas em que a coincidência do som é apenas com a vogal tônica, como se pode
1878: Victor Hugo e os netos em sua casa (Hauteville), durante o exílio em Guernesey. ▪ Wikimedia
ver nos dísticos 5 (escolho/lutuoso), 6 (avernos/cavernas), 7 (ares/raios), 10 (sublimes/abismo) e 11 (gigantes/insignificâncias).
Encontramos um eco do poema de Hugo no soneto “Vencedor”, de Augusto dos Anjos. A diferença é que o romancista francês usa sua pena para falar da capitulação aos netos, tendo como contraponto a oposição firme contra um Estado discricionário; já o poeta do Pau-d’Arco faz do seu soneto a sua matéria de carpintaria, definindo a criação como um embate similar ao do gladiador na arena.
No caso de Hugo, o eu-poético se torna muito explícito falando de suas lutas contra a sordidez e contra a prepotência, sem jamais baixar a cabeça. Por isto mesmo, ele se define como “Bestiário” (Belluaire), um tipo de gladiador, que lutava contra as feras, também chamado de Venator (Caçador) em latim. A luta contra os opressores – o grande abismo (tout le gouffre est venu m’attaquer et gronder) que se volta, como uma boca aberta sem fundo e abjeta (la foule immonde des Sodomes), para atacar quem a ele se opõe – define bem o momento em que Hugo esteve no exílio, em Guernesey, por ter se oposto a Luís Bonaparte, que, depois do golpe de Estado de 1851, se torna Napoleão III, restabelecendo o império (1804-1814), iniciado pelo seu tio Napoleão I.
Victor Hugo com a família e amigos em Guernesey, 1878 ▪ Wikimedia.
Se ninguém doma o coração de um poeta, como diz Augusto, referindo-se à liberdade da criação estética, Hugo procura manter a sua altivez contra os tiranos, sempre com cerviz na posição vertical, sem sucumbir às ameaças dos tempos sombrios, nem temer o trovejar que traz nos seus raios os crimes cometidos por aqueles cujo maior desejo é a opressão do povo: não temer os antros ou as profundezas; desafiar o mundo subterrâneo dos infernos ou o céu sombrio e lutuoso da perseguição; permanecer firme no combate, sem temer as vagas sufocantes da tirania, tudo faz parte da índole do artista.
George e Jeanne Hugo, em Paris, 1878 ▪ Wikimedia
Se por um lado, o poeta é o que procura se libertar das prisões formais da estética (Augusto dos Anjos), por outro lado, também é o que não capitula diante da opressão e dos crimes dos pequenos césares, dos jupiteres anões, que se creem todo-poderosos (Victor Hugo). Ao poeta, apenas a submissão à estesia, na busca do estado da poesia, à doçura e ao amor que uma criança traz consigo. Eis as capitulações possíveis, com ambos lutando aguerridamente como gladiadores, cada qual na sua arena específica.
Fazendo um trocadilho com o seu nome, Victor Hugo compõe o título de seu poema: Victor, sed Victus, o vitorioso vencido, que traz em si uma dubiedade genial: a avô vencido pelo amor ao neto (le petit enfant), é maior e mais digno do que o fracasso dos prepotentes que se julgam eternos, como Luís Bonaparte, que termina o seu governo, em 1871, de maneira vergonhosa. Após a humilhante derrota para a Prússia, por ocasião da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), ele é alijado do poder com a vitória da Comuna de Paris e a restauração da República, a Terceira República Francesa (1871-1945).
Todo o poema se desenvolve com uma luta, sem qualquer possibilidade de capitulação diante do arbítrio. Apresenta-se, ao final, no último verso, como surpresa para o leitor, a capitulação que nos traz a beleza de todo o raciocínio que o eu-poético desenvolve:
Victor Hugo com Georges (aos 17 anos), em Paris, 1885. ▪ Wikimedia
a força, a opressão, a violência nada podem diante da aparente fragilidade de uma criança, por traduzir-se no mais puro que há na natureza, o amor que faz o velho remoçar e se recriar, inspirado na inocência infantil. Os netos que já são a aurora da sua velhice, também são, a um só tempo, luz e guia: “Je prends l’un pour guide/Et l’autre pour lumière” (Eu tomo um por guia/E o outro por luz, “Georges et Jeanne”).
De um livro para saudar as delícias de ser avô, verdadeiro hino de amor aos netos George e Jeanne Hugo, Victor Hugo celebra, também, a vida e a doçura de sua velhice, e a sua existência altiva, no combate em favor da liberdade (“O Exilado Satisfeito I”):
Ne sentez-vous donc pas qu'ayant vu beaucoup d'hommes
On a besoin de fuir sous les arbres épais,
Et que toutes les soifs de vérité, de paix,
D'équité, de raison et de lumière, augmentent
Au fond d'une âme, après tant de choses qui mentent?
Não sentis, pois, que tendo visto muitos homens
Tenhamos a necessidade de fugir sob as árvores copadas,
E que todas as sedes de verdade, de paz,
De equidade, de razão e de luz aumentem
No fundo de uma alma, após tantas coisas que mentem?