A pendenga jurídica era nervosa, exigia um causídico casca grossa, uma velha raposa que fosse dona de todas as astúcias e conhecedora dos atalhos escondidos nas penumbras dos tribunais.
Indicação aceita, endereço em mãos, fui ao seu escritório lá no centro da cidade, ali pelas imediações do fórum. De pronto veio-me uma decepção. Mobiliário discreto, antigo, estante com velhos alfarrábios que me pareceram fora de uso e estavam por lá apenas para prencher alguns vazios. “Será que estou no endereço certo?” À escrivaninha estava ele esparramado numa velha cadeira. A criatura já passada dos cinquenta, olhou-me com aquele ar de quem não estava muito afeito a deixar sua leitura.
Sim, estava entretido com um volume que logo identifiquei título e autor. Depois dos cumprimentos protocolares e relatar minha demanda, não resisti e tasquei-lhe essa pergunta:
⏤ Já aconteceu o julgamento de Maslova?
⏤ Já leu Ressureição de Tolstói?
Sim, eu havia lido alguns anos atrás. E para resumir essa parte do enredo, minha causa na justiça teve tratamento primoroso, mas o que ficou mesmo digno de registro foi a afinidade que nascera devido às peripécias do príncipe Nekhliudov e a mulher que esse sacripanta seduzira e abandonara. Com essa fraterna empatia, nascida da leitura de um mesmo livro, não é difícil supor que nossas idas aos tribunais fossem desembocar ligeirinho no bar do Ari.
No Ari, entre o whisky do meu parça, a minha cerveja e uma cumbuca de fava, o mote era literatura com mais um punhado de gente da melhor qualidade. O tempo fez-me descobrir que eu conhecera o mais habilidoso ponta esquerda que já pisou nos gramados (ou quase isso) de nossa gloriosa Sumé. Até gol olímpico fizera por lá. Era boêmio, não um boêmio qualquer, mas seresteiro com voz de barítono e bastavam duas doses quando lá vinha ele com seus dó-ré-mis.
Quase uma década depois retornei ao Nordeste, mas não aqui, e sim ali mais para cima no mapa, em Natal. Eis que um dia, ao ligar a TV, quem eu vejo? Meu amigo dando uma entrevista num restaurante, o Bela Nápole, e tecendo loas ao pianista da casa. Não deu outra, fim de semana seguinte lá estava eu perguntando por ele. Manoel disse que o procurado sempre aparecia por lá para ouvi-lo ao piano e dar uma canjinha cantando coisas de Nélson Gonçalves.
Nem passou uma semana e quando atendo uma chamada, o que ouço? “Está por aqui cara pálida?” Como devem ter deduzido quem era o cara pálida. Contato restabelecido, sempre que possível estávamos enchendo os copos e molhando a palavra.
Mesmo não tão longe um do outro, as conversas foram rareando e as notícias também, até que, dias atrás, um filho dele me liga com a triste notícia: “Papai está muito mal”. Este “muito mal” durou poucos dias e pouquinho tempo depois meu amigo foi falar com Deus.
Foi velado aqui. Exéquias às quais compareci trouxeram-me bastante padecimento. Foi difícil ver quem vivera tantas aventuras comigo ali, reduzido literalmente às cinzas. É o que essa tristeza obrigou-me contar: três dos encontros que tive com Djaci Ferreira de Sousa, poeta, advogado, seresteiro, amigo das horas certas, das incertas também. E que se registre aqui: o melhor ponta esquerda que Sumé viu jogar.