Uma das memórias que melhor evocam a infância é a lembrança de um sabor. O de minha preferência é o do mingau de araruta, meu "ca...

Recordar é viver?

Uma das memórias que melhor evocam a infância é a lembrança de um sabor. O de minha preferência é o do mingau de araruta, meu "café da manhã" favorito quando criança. Lembro dele por sua consistência aveludada, cremosa e levemente gelatinosa, que ficava mais espessa conforme esfriava, mantendo, porém, uma textura macia e lisa.

Uma de suas características mais marcantes é sua liga suave, leve e brilhante, parecida com um gel. Quando quente, o mingau de araruta é macio e fluido, e, depois de esfriar, denso e elástico, como o de maisena, sendo, porém, mais delicado e transparente, sem aquele aspecto opaco do amido de milho.

@Receitas da Maria
Certa vez eu me aventurei numa jornada em busca da matéria-prima para fazer o meu mingau favorito, a fécula de araruta, o amido extraído das raízes da "maranta arundinacea", o nome científico da araruta. Trata-se de um pó branco, fino e muito leve, também utilizado como espessante em outras receitas.

Fui a dois ou três mercados públicos tradicionais até encontrar o que me foi apresentado como sendo o produto que buscava.

@dicasdemulher.com
Preparei o mingau, segundo a fórmula da qual me recordava, e mediante uma consulta às minhas tias longevas. Além da fécula, os ingredientes para o preparo incluem leite ou água, para dissolver e cozinhar a farinha; açúcar ou mel, para adoçar; e canela ou baunilha, para acrescentar um toque ao paladar. Como prefiro o gosto natural, usei apenas leite e açúcar.

O sabor não foi o que eu esperava. Algo parecia faltar, ou sobrar. Recordei-me, então, do que disse Rubens Alves sobre a experiência de retornar a lugares que marcaram nossa memória, destacando que, muitas vezes, ao revisitá-los, não encontramos a mesma emoção ou encanto que um dia vivemos. Segundo ele, isso acontece porque o que realmente nos marcou não foi o lugar físico, mas sim as emoções, os sonhos e as pessoas que estavam presentes naquele momento. Talvez o mesmo se aplique a tentar reviver um sabor que ficou na lembrança, mas que nunca mais será o mesmo.

Heráclito Johannes Moreelse
Heráclito dizia não ser possível banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois o curso d'água que hoje flui, não é mais aquele no qual se mergulhou antes. "Nunca voltarei porque nunca se volta. O lugar a que se volta é sempre outro", afirmou Fernando Pessoa.

Marcel Proust disse que a verdadeira viagem de descoberta não consiste em procurar novas paisagens, mas em ter novos "olhos", numa reflexão extensiva aos outros sentidos. Ter um novo ouvido, língua e tato, talvez nos ajude a revisitar internamente o que passou, trazendo novas percepções sobre o que já vivemos. A cena clássica da madeleine mergulhada no chá é um exemplo de como um aroma ou sabor pode despertar lembranças adormecidas.

No filme "Viagem aos Seios de Duília", baseado no conto de Aníbal Machado e dirigido por Carlos Hugo Christensen, José Maria, um solteirão burocrata sem família nem filhos, repensa a sua vida monótona após se aposentar. Procura em suas recordações por algo que realmente o tenha motivado algum dia, até se lembrar de uma paixão de adolescência:
Viagem aos seios de Duília USB
Duília, a jovem que uma vez lhe mostrara os seios na cidadezinha em que moravam. Estimulado pela recordação, José Maria empreende uma dura viagem de volta ao interior de Minas Gerais do final dos anos 1950, na tentativa de reviver as emoções de sua longínqua juventude. Ao deparar-se com Duília, no entanto, encontra uma matrona experiente e algo triste, bem diferente da personagem que ele idealizara. Refletido no decadente objeto de seu desejo, decepciona-se e encara, enfim, a sua própria condição.

Outro filme, “Morangos Silvestres”, do diretor sueco Ingmar Bergman, aborda o mesmo tema através da história do médico Isak Borg, que vai de Estocolmo a Lund para ser homenageado. A jornada e as pessoas que encontra pelo caminho fazem com que ele reflita sobre sua existência e se recorde de sua primeira paixão, com quem colhia “morangos silvestres”, na juventude. O título do filme se baseia na expressão sueca “smultronställe”, que significa "lugar dos morangos silvestres" e que se refere a um local especial, idílico, escondido e nostálgico, onde se pode encontra paz e felicidade.

Milan Kundera Louis Monier
Conquanto o passado, ocasionalmente, possa ser um lugar para visitar, nele não devemos permanecer. Milan Kundera reconhece que a memória é essencial para a construção da identidade, mas adverte que o ser humano não é o senhor da memória, pois ela é uma força autônoma e imprevisível.

Recordar pode ser tanto um consolo quanto um fardo, pois as lembranças nem sempre são fiéis e podem carregar tanto o prazer quanto a dor. A memória pode nos prender ao passado, impedindo-nos de viver plenamente o presente. Kundera nos alerta para o risco de ficarmos aprisionados nas lembranças, seja pela melancolia, pela culpa ou pela idealização de momentos passados, que, por vezes, não têm mais vínculo com a realidade atual, sendo insustentável viver em constante retorno ao que foi, sem se permitir avançar.

As paisagens, os objetos, os cheiros, os sabores passam, assim como nós também passamos. Com isso devemos concluir que nos cabe apreciar o presente, vivê-lo, já que o passado nunca pode ser resgatado exatamente como foi? Possivelmente.

@vivagranel.pt
No meu caso, houve um jeito. É que me venderam fécula de mandioca pela de araruta. Embora o aspecto do mingau lembrasse o manjar da infância, a falsificação foi detectada pela minha memória gustativa e o sabor não foi aprovado. Ocorre que a farinha de araruta, antes encontrada em mercados populares, virou um produto raro. Só a localizei numa loja de produtos naturais, na qualidade de item exótico.

Com o principal ingrediente em mãos, preparei o desejado mingau e, dessa vez, o sabor correspondeu ao da minha recordação afetiva.

Não cheguei a experimentar a mesma epifania do personagem Anton Ego, o temido e arrogante crítico de gastronomia do filme Ratatouille, que, ao saborear a receita que lhe recordava a infância, foi transportado de volta à época em que sua mãe lhe preparava aquele prato em sua casa. Não revivi o passado, apenas desfrutei da experiência presente, decorrente de minha investigação culinária. O gosto foi o mesmo experimentado um dia pelo menino que fui, e do qual tudo o que restou é o homem que sou.

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