O sol da manhã se derramou sobre a aldeia no norte da Itália. As casas simples, de pedra e madeira, respiravam quietude. Sophia atrav...

O último caçador

conto literatura paraibana celio furtado
O sol da manhã se derramou sobre a aldeia no norte da Itália. As casas simples, de pedra e madeira, respiravam quietude. Sophia atravessava a pequena praça com um cesto de remédios e lençóis. Tomás, ao longe, ajudava um vizinho a consertar o telhado. A filha Clara corria entre as oliveiras, leve, livre.

Tudo seguia como sempre. Mas naquela manhã, o ar parecia estranho, pesado.

conto literatura paraibana celio furtado
GD'Art
Um vento forte passou de repente, levantando poeira e folhas secas. Sophia parou, apertou o cesto contra o peito. "Nossa senhora nos proteja!", disse, voltando-se para o muro. Um vaso de barro tombou e se quebrou no chão com um estalo seco. Ela virou a cabeça rápido, os olhos procurando Clara.

A menina brincava perto do poço, distraída. Foi então que o galho de uma árvore se partiu, assustando um cavalo solto, que disparou pela rua estreita, indo direto em direção à criança.

Sophia deixou o cesto cair e correu. Mas antes que pudesse chegar, um homem agarrou as rédeas e conteve o animal. Clara, assustada, se encolheu nos braços da mãe.

A praça voltou ao silêncio, mas não era o mesmo silêncio. Havia algo mais. Uma idosa, sentada à porta de casa, observava tudo com olhos duros. Quando Sophia passou carregando a filha, ela falou baixinho, num tom grave, sem desviar o olhar:

— Coisas ruins avisam antes de chegar, Sophia. Às vezes, a gente não entende o aviso.

conto literatura paraibana celio furtado
GD'Art
Sophia assentiu, mas seu olhar ficou preso no céu, agora cinzento, como se algo se aproximasse.


Na região da Úmbria, Dom Henrique de Alencar permanecia sentado à cabeceira da longa mesa de carvalho. A taça de vinho, intocada à sua frente, representava seu desânimo. A casa estava silenciosa demais. Nenhum riso, nenhum passo leve nos corredores. Apenas ele e seus criados, que falavam baixo e evitavam seu olhar. O administrador entrou e se curvou. Dom Henrique ergueu os olhos estreitos e firmes. — Já enviei mensageiros a diversas regiões. Ninguém sabe do paradeiro deles — disse o administrador. Dom Henrique manteve-se imóvel. Em seguida, deu um leve aceno com a mão.
— Chega de perguntar. Agora precisamos caçar.

conto literatura paraibana celio furtado
GD'Art
O administrador hesitou.

— Há um homem, senhor. Ele é bom no que faz. Trabalho limpo e discreto. Nunca falha.

O velho limpou os restos de comida nos cantos da boca. Olhos presos na chama da lareira; não precisou ouvir mais. Apenas ordenou:

— Chame esse homem. Diga que pagarei o que for preciso. Quero que encontre Tomás. E quando encontrar, acabe com ele.

Meses se passaram. O inverno avançava nas colinas, trazendo noites longas. O administrador voltou certa manhã. Dom Henrique, mais abatido, olhava pela Janela, olhos vazios no horizonte.

conto literatura paraibana celio furtado
GD'Art
— O caçador já partiu há semanas. Não temos notícias dele — disse o criado.

Henrique permaneceu calado. Desde algumas noites, o sono lhe fugia. Sonhava com Verônica parada à porta do convento, olhos presos nele. O rosto de Sophia, jovem, sumia na multidão.

Naquela tarde, Dom Henrique chamou o mesmo administrador:

— Envie outro homem. Quero que encontre o caçador e lhe dê nova ordem: pare tudo. Diga que volte. E... me traga notícias.

Mas o mensageiro voltou dias depois, sem as notícias esperadas.

— Não o encontramos, senhor. Ele sumiu. Ninguém sabe onde está.

Dom Henrique se recostou na cadeira pesada, olhando para os próprios punhos fechados. Pela primeira vez em anos, não sabia se venceria mais nem a si mesmo.

conto literatura paraibana celio furtado
GD'Art

O estranho chegou à aldeia numa tarde chuvosa. Trazia um manto grosso, um chapéu baixo, e uma expressão que ninguém sabia decifrar. Disse que era viajante, vindo do sul, em busca de abrigo por uma noite. As mãos carregavam marcas de luta, o rosto trazia um corte recente.

Sophia observou o homem de longe enquanto ele falava com um dos vizinhos. Havia algo em seus olhos que incomodava, mas ela não disse nada. Era hábito dela acolher os que batiam à porta.

Tomás foi quem estendeu a mão primeiro, como sempre fazia.

— Há comida quente e um canto seco na nossa casa. Fique enquanto precisar – disse Tomás.

conto literatura paraibana celio furtado
GD'Art
O estranho agradeceu, voz baixa. Instalou-se sem pressa, atento aos movimentos ao redor. Nos dias seguintes, ficou pelas redondezas, observando. À noite, o olhar seguia Clara correndo no quintal, os passos de Tomás entre as oliveiras. Ele esperava o momento certo.

Na manhã em que decidiu agir, o destino mudou os planos. O caçador subiu cedo até uma trilha estreita atrás da aldeia. Ali, procurava um ponto onde pudesse emboscar Tomás ao fim daquele dia.

Mas, de repente, o chão cedeu sob seus pés. Um buraco entre as pedras, um deslizamento. O corpo rolou encosta abaixo, até parar na terra enlameada. As pernas feridas, o braço quebrado. Não conseguiu levantar.

Horas depois, Tomás o encontrou desacordado.

Sem saber de nada, levou o visitante de volta à casa. Sophia correu, limpou os ferimentos, preparou remédios. Por dias, cuidaram dele como a qualquer outro. Não perguntaram de onde vinha, nem para onde ia.

conto literatura paraibana celio furtado
GD'Art
Foi ali, deitado, que o caçador sentiu um peso novo. Um lampejo de compaixão brotou em seu peito, e pela primeira vez, duvidou se cumpriria o serviço. Mas o corpo não resistiu.

Na véspera da morte, chamou Sophia com um fio de voz.

— Eu vim para matar seu marido — disse, olhos secos. — Seu pai me mandou.

Ela ouviu em silêncio, sem surpresa.

Naquela casa, ninguém devolvia ódio. Nem mesmo para quem o trazia no peito.


O homem foi enterrado na clareira atrás da igreja. Poucos sabiam seu nome. Sophia e Tomás não falaram sobre a confissão do caçador feita na noite anterior. Continuaram seu trabalho: curando, cuidando, vivendo.

Dias depois, chegou um novo mensageiro. Vinha de longe, das terras de Dom Henrique. Entregou a Sophia um pergaminho selado.

conto literatura paraibana celio furtado
GD'Art
Ela leu devagar.

Na carta, Dom Henrique admitia sem rodeios que tinha enviado alguém para lhes trazer desgraça, tomado pelo orgulho e pela raiva. Mas dizia também que, logo após, arrependeu-se dos seus planos. Infelizmente, não sabia onde encontrar o homem a tempo de desfazer o que havia ordenado. Agora, à beira da morte, pedia perdão. Queria saber se havia um neto, alguém a quem pudesse deixar suas terras.

As palavras vinham pesadas, trazendo mais arrependimento do que pedidos.

Sophia dobrou a carta sem responder.

Naquela tarde, enquanto Clara ajudava Tomás a colher lenha, Sophia ficou diante da porta, observando.

O vento soprava leve, sem susto.

Nenhum cavalo desgovernado. Nenhum galho partido.

conto literatura paraibana celio furtado
GD'Art
O peso que antes rondava a aldeia parecia ter ido embora com a morte do caçador e o homem que chegou e partiu sem deixar rastro, exceto pelo aviso que carregava.

Clara correu até ela, rindo, e perguntou:

— Mamãe, vovô vai nos visitar?

Sophia passou a mão pelos cabelos da menina e respondeu com calma:

— Às vezes, filha, não precisamos voltar para buscar o que nunca foi nosso. Então, voltou-se para dentro da casa simples, onde o amor não precisava de herança para sobreviver.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Um conto fascinante!

    ResponderExcluir
  2. Que continuação esplêndida, muito bom saber o desfecho das vidas de Tomás e Sophia.

    ResponderExcluir
  3. Para que a gente seja feliz no amor não precisa ser rico.

    ResponderExcluir

leia também