Do livro à tela, da literatura à pós-televisão Muito se tem escrito sobre o estrondoso sucesso da série Cem Anos de Solidão , ex...

O trágico, fantástico e maravilhoso no Imaginário de 'Cem anos de Solidão'

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Do livro à tela, da literatura à pós-televisão

Muito se tem escrito sobre o estrondoso sucesso da série Cem Anos de Solidão, exibida no canal de streaming NetFlix, uma adaptação da obra pós-modernista do colombiano Gabriel García Márquez (prêmio Nobel de Literatura, em 1982). E grande parte da crítica observa o modo como os diretores Alex García Lopez e Laura Mora Ortega lidaram com a extrema complexidade narrativa da obra (publicada em 1967). Este é considerado o livro mais importante da Literatura Hispânica, ficando atrás apenas de Dom Quixote de La Mancha (Miguel de Cervantes),
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graças – certamente – ao emprego do gênero bastante popular do “realismo mágico”, mas também é um ícone da Literatura Universal.

O enredo extraordinário de García Márquez narra a saga da família Buendia Iguarána, a fundação e longevidade do fictício povoado de Macondo, que depois se tornaria uma “comunidade independente”, no seio da Colômbia, na América Latina, entre os anos de 1850 e 1906.

Vamos tentar aqui um método heterodoxo. Assim, assinalamos alguns elementos para uma interpretação da obra que pode interessar aos leitores, cinéfilos, estudiosos da literatura latino-americana. E lançar um olhar para os nexos, conexões e distinções nas adaptações das obras literárias para estética e linguagem dos audiovisuais.

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O realismo mágico ou fantástico de García Márquez mistura partes da realidade histórica latino-americana e seus aspectos míticos, sobrenaturais, junto com a dimensão intimista, pessoal, subjetiva que flui da imaginação criadora do autor.

Gabriel García Márquez ▪ 1927—2014
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O romance faz a inserção de matizes históricos como a ditadura, a guerrilha, as tensões e conflitos sociais na Colômbia dos anos 1820-1920. E, fotografa o território, os aspectos rudes da natureza e ao mesmo tempo um retrato da pobreza social no contexto latino-americano;

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Casa onde nasceu García Márquez, em Aracataca, Província de Madalena, Colômbia ▪ Museu GGM
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O livro contribui para o resgate da identidade decolonial e a riqueza do continente (sendo o ganhador do prêmio Nobel de literatura, em 1982);

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A obra foi escrita durante o exílio de Gabo no México, na ditadura colombiana, durante 18 meses, com sérias dificuldades financeiras;

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A cidade de Macondo é fictícia e inspirada na cidade natal do escritor, Aracataca, na Colômbia. A matéria resulta da memória afetiva de García Márquez;

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A maldição que reina sobre a família advém na crendice popular que duas pessoas da mesma família não poderiam se casar, arriscando a geração de filhos com deformações genéticas (ou com rabos de porco);

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A narrativa retrata a América Latina, o imperialismo, a colonização, os conflitos socioeconômicos e políticos, no período da história colombiana conhecido como “La Violência” – entre o fim da guerra civil espanhola e o início da segunda guerra mundial e que causou mais de 200 mil mortos;

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Bogotá, Colômbia, no período de turbulências sóciopolíticas historicamente conhecido como "La Violência"Wikimedia
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A série foi gravada em espanhol, os diretores e atores (na maioria) são colombianos, conforme desejo de Gabriel García Márquez e sua família;

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A inspiração da obra advém das influências familiares e leituras das obras As mil e uma noites (Contos Árabes), A metamorfose (Kafka), O som e a fúria (Faulkner);

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A mensagem mais forte do livro é que corremos o risco de repetirmos a tragédia da história senão cultivarmos a memória histórica e afetiva.

Este texto não seria exatamente o lugar para aprofundar as questões essenciais de uma obra tão complexa; entretanto, poderíamos focalizar os aspectos básicos do realismo mágico ou fantástico que atravessam o livro. O boom da literatura latino-americana coincidiu com a revolução cubana: os escritores e intelectuais avessos à luta armada, encontraram na produção literária uma
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estratégia para divulgar seus ideais anti-imperialistas, e o gênero do realismo mágico foi o caminho viável para essa empreitada. Não se trata de uma invenção, mas uma ressignificação da História, onde os hábitos, crenças, mitos, etnicidade, tensões e conflitos sociais interagem na espessura do real, orientados pelas identidades culturais latino-americanas.

O fato é que García Márquez imprimiu na sua obra essa marca extraordinária: narrar os fatos comuns, corriqueiros e cotidianos de modo objetivo, realista, pragmático, e os vultos e acontecimentos históricos através de uma representação fictícia, fantástica, sobrenatural. Destarte, ele evitou a dimensão violenta e sanguinária da História, e deu a máxima importância à memória familiar, às reminiscências dos afetos nas relações com a vizinhança, ao relato da vida das pessoas simples, às experiências comuns, populares e coletivas.


O universo de Macondo visto pelo pintor Flávio Tavares

Para iniciar uma discussão sobre as adaptações da obra para outros suportes, meios e linguagens, referimos a transmutação do livro à pintura.

E nesse veio, a obra do paraibano Flávio Tavares, ‘Cem Anos de Solidão’, merece um estudo particular dada sua inventividade e primor na representação do povoado de Macondo, flashes nos personagens, cenas e acontecimentos, e o empenho extraordinário na riqueza dos detalhes.

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Croqui do artista plástico Flávio Tavares para o quadro "Cem Anos de Solidão", 2020 ▪ Acervo particular do artista.
Notamos na figuratividade de Flávio Tavares uma gigantesca alegoria do povoado de Macondo e dos personagens que habitam o universo de Gabo. O artista – cuja obra que tem matizes muralistas – constrói a sua representação detalhada do realismo mágico (como o faz em outras obras, a exemplo de ‘A Pedra do Reino’ (1986), ‘Avohai’ (1999), ‘O Claustro’ (2021), perfazendo uma grande epifania em que os personagens do romance de ficção ganham vida, corporeidade, movimento, visibilidade e plasticidade constituindo uma transfiguração que não deturpa o sentido original, mas recria uma nova produção de sentido, uma ressignificação da Colômbia e da América latina. Uma descoberta de elementos universais em uma narrativa com matizes primitivos, telúricos, agrícolas e locais de alta voltagem simbólica. E esse simbolismo serve para traduzir outros mundos.

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"Cem Anos de Solidão" Flávio Tavares, 2020 ▪ Acervo: Pedro Peixoto
Caberia aqui assinalar o percurso histórico de uma construção estética que começa pelo desenho dos croquis e se estende sob a forma da pintura. No primeiro há o exercício da imaginação criativa, o instante da transposição da imagem mental para o desenho (advinda da lembrança do romance). Mais intuitivo, sensorial, resultante de uma imaginação instituinte que dá forma à percepção mnemônica do universo criativo do escritor, e junto com suas intuições e insights, será a base para a elaboração figurativa do quadro.

No segundo, a fase epifânica, já é mais cerebral, racional, objetiva, funcionando como uma engenharia feita de cores, volumes, luzes e sombras,
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Flávio Tavares, 2020
superfície e profundidade, uma cidade imaginada em cuidadosa perspectiva. Se no primeiro momento havia a projeção quase inconsciente ou involuntária da matéria de que é feito o sonho de García Márquez transmutado na tela do artista, na segunda se realiza a “vontade de criar”, o desejo se materializa na espessura alegórica do quadro. Uma passagem-transmutação do onírico em vibrantes “imagens-movimento” (2020), que antecipariam, de algum modo, a adaptação da obra literária às imagens cinemáticas da série na televisão (2024).

Esta experiência é um rito de passagem que convém ser estudado: dos croquis à tela há o milagre da representação que nasce do olho do artista em conexão com o espírito da obra literária e se projeta como aparição extraordinária.

O quadro desvela o universo fantástico do “país Macondo”, em que se movem os amantes, os camponeses, os homens e as mulheres da terra, o mago-cigano, a figura do militar, os pobres,
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Flávio Tavares, 2020
os poderosos, todos numa projeção fenomenal que revela a ossatura simbólica da narrativa.

À superfície da tela transitam as carruagens, os trens, as caravelas, metáforas da passagem do tempo. O circo, o acordeon, a parte do lúdico, de um lado, e as invenções, construções e tecnologias, do outro, aludem o agenciamento da razão prática. A conjugação dessas faculdades distintas desvela modos comuns de experimentar a duração do tempo. Esses “cem anos” carregam relatos de longas (sobre)vivências, fatos imaginários e ocorrências extraordinárias. Sendo assim, o pintor é desafiado a interpretar plasticamente a vasta complexidade de um livro que se impõe como um profundo relato do mundo, cuja marca é a duração, a temporalidade das vivências dos seres e coisas.


Biografia de Gabriel García Márquez em Quadrinhos
Oscar Pantoja e outros ▪ Editora Veneta, 184 págs

Um segundo exercício semiótico ressalta favoravelmente numa interpretação do sentido da obra no imaginário através da sua adaptação para a linguagem gráfica e deliciosa das histórias quadrinhos.
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Fonte: Ed. Veneta
Cumpriria observarmos a recomposição da forma cultural e conteúdo do livro no formato industrial da literatura de massa na versão dos quadrinhos. Note-se de saída a impressão dos olhares, gestos, posturas dos personagens que se mesclam aos desenhos do barco a vapor e do automóvel, signos da recente urbanidade latino-americana, marcas do progresso e da barbárie na sociedade de consumo colombiana.

O matiz poético sensorial da narrativa é atualizado com singeleza na representação gráfica dos quadrinhos, em que pai e filho caminham pelo povoado, circundados por borboletas amarelas, a espiritualidade, como um simbolismo central na obra.

E a parte afetiva, sensual, amorosa que emana intensamente na literatura de García Márquez, cintila vibrante em azul, nas cenas desenhadas da intimidade afetiva do casal. A edição em quadrinhos reproduz detalhes biográficos de Gabo e sua parceira Mercedes, como o momento em que o casal dança e Gabo pede a mão de Mercedes em casamento (em 1958).

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Gabo / Ed. Veneta


A adaptação da obra literária na série da Netflix

A difusão da série na TV, demanda uma interpretação atualizada do problema da adaptação do livro à tela. Trata-se aqui de examinar a passagem da palavra literária à linguagem do cinema-televisão (ou pós-TV Netflix), tarefa difícil, também quando se sabe que García Márquez (Gabo) se opusera veementemente a essa operação.

É quase unânime o elogio da crítica e público sobre a “transmutação” da obra que salta do reino exclusivo da palavra ao domínio das imagens do
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Fonte: Imdb
cinema (a rigor da série de TV, em grandes planos cinematográficos).

A alquimia da passagem do verbal ao visual é explorada no livro Conjunções, disjunções, transmutações – Da literatura, ao cinema e à TV (Ana Maria Balogh, 2005), tratando das obras Vidas Secas e Grande Sertão: Veredas, que servem de estímulo a um entendimento.

Importa sobretudo compreender como as imagens fantásticas da narrativa literária migram para o ambiente audiovisual. Logo, cumpre examinar como as imagens do sobrenatural criadas por Garcia Marquez se transfiguram sem perder a aura de originalidade nas telas do NetFlix.

É desafiador o fato de uma narrativa literária chamar a atenção - pela via da audiovisualidade - tendo tantos leitores (são estimadas 50 milhões de cópias vendidas). Luciana Coelho (correspondente internacional da FSP) menciona a dificuldade na captura da riqueza onírica relacionada à região junto com a aspereza econômica e política do lugar, algo que permanece por quase seis décadas no imaginário latino.
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Cem Anos de Solidão (2024) ▪ Netflix
Coelho comenta ainda sobre a conjunção dos temas universais, gregos e bíblicos, com matizes latinos – algo de difícil apreensão pelo telespectador médio norte-americano (e o público similar). Há sábia maestria na representação visível das formas imaginadas, como as circunstâncias da sorte, do azar e do trágico que envolvem os personagens. Convém notar aí como se instala o dispositivo criador da catarse, que arrebata leitores e telespectadores.

Conviria não se comparar o livro com a série (são substâncias culturais distintas). Mas há que se elogiar o trabalho na direção, dos atores, o esmero dos profissionais nas artes audiovisuais, muito respeitosos como relação ao tratamento da obra original.

Milton Marques Junior, referindo Cem Anos de Solidão, fala da liberdade de criação dos escritores: “Como sabemos, a ficção não deve satisfação à realidade, atendo-se apenas a uma verossimilhança interna, nem sempre clara ao leitor que, muitas vezes, tem de se desdobrar, para encontrar um caminho de leitura” (Texto de Milton Marques Junior, finamente editado e ilustrado no Ambiente de Leitura Carlos Romero).

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Claudio Cataño (Aureliano Buendía), em Cem Anos de Solidão (2024), prod. Netflix / Fonte: Imdb

Marques faz um elogio à adaptação da série. Todavia vai mais fundo na interpretação da obra literária. Fala do seu conteúdo, da metáfora do tempo eternamente circular da América Latina, como se não avançasse no contexto das outras civilizações que lhe são contemporâneas. Faz-nos lembrar um pouco a mítica trágica formulada por Stefan Zweig sobre a nossa nação: “Brasil, País do Futuro” (1941) e que nunca chegou lá.

Por sua vez, o artigo-ensaio “Fidelidade Canina”, sobre ‘Cem Anos de Solidão’, do paraibano Chico Viana (no Facebook) traz insights iluminados para uma compreensão da obra adaptada para o video: as visões do patriarcado, a terra,
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Marleyda Soto (Úrsula), em Cem Anos de Solidão (2024), prod. Netflix / Fonte: Imdb
a luta (relembrando uma outra epifania dos ‘Sertões’), o uso da alquimia simultaneamente à busca pela decifração dos segredos da natureza, o enigma da vida e da morte, o mistério de Deus, a entrega às pulsões sexuais (algumas incestuosas), o anseio pela descoberta de outras terras, a paixão revolucionária. A irrepreensível representação da personagem Úrsula “paradigma da mulher que se impõe pelo discernimento e a sensatez num cenário de homens tíbios ou tresloucados” (Viana, FB). A trajetória da câmera clara que adentra na casa escura desvendando um “micromundo”, a captura dos quadros-personagens (sequestro da imagem-tempo), como quem descreve a relação das pessoas com o ambiente, a psicologia dos personagens. A imagem do patriarca enlouquecido preso à árvore é descrita exitosamente na digitação de Viana.


De alguma maneira o público brasileiro fã do realismo fantástico reconhece em algumas passagens de ‘Cem Anos de Solidão’ as astuciosas narrativas de Dias Gomes (em “O Bem Amado”, “Saramandaia”, “Roque Santeiro”) ou Aguinaldo Silva, cuja teledramaturgia é cheia de recursos e temáticas sobrenaturais, como “Pedra sobre Pedra (1992), “Fera Ferida” (1994), “A Indomada” (1997), “Império” (2014) e “O Sétimo Guardião” (2018). Restaria saber o que Aguinaldo Silva nos oferecerá, em seu retorno à Rede Globo, em termos de visões do sobrenatural na sua próxima novela “As Três Graças” (programada para 2025). Evitando quaisquer heresias deveríamos ser justos e referir antes a influência de Cem Anos de Solidão sobre os dramaturgos brasileiros movidos pela verve do realismo fantástico, mágico ou maravilhoso, e sua irreprimível atração pelo sobrenatural.

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