O Proêmio de Os Lusíadas, contando 114 versos, espraia-se pelas primeiras 18 estrofes, constituindo-se de 3 partes: a Proposição (estrofes 1-3), a Invocação (estrofes 4-5) e a Dedicatória (estrofes 6-18).
Trata-se de um Proêmio extenso, com relação aos padrões da épica grega e da latina, cujos poemas não incluem a Dedicatória. Para que se tenha uma ideia, a Ilíada
apresenta um Proêmio com 8 versos (Invocação, Proposição e pergunta retórica); a Odisseia o apresenta com 10 (Proposição e Invocação), e a Eneida, com 11 (Proposição, Invocação e pergunta retórica), para ficarmos apenas no que consideramos a Épica Maior.
A divisão operada por Camões é bastante nítida, diferindo dos poemas homéricos, em que existe uma tênue fronteira entre Invocação/Proposição (Ilíada) ou Proposição Invocação/Proposição/Invocação (Odisseia). Camões segue o modelo virgiliano de Proposição/Invocação, claramente separados, a que ele acrescenta a Dedicatória.
Com a nítida divisão das partes integrantes do Proêmio, podemos constatar qual a matéria que estrutura cada uma delas, além do que elas dizem, per se, a partir de suas definições: na Proposição, apresenta-se a matéria do poema, desfazendo do mito clássico e optando pelo heroísmo lusitano documentado, porém tratado ficcionalmente, evidenciando a dificuldade de sua realização; na Invocação, revelam-se o seu gênero e seu estilo, e, na Dedicatória, apresentam-se aqueles que haverão de fornecer material para o canto a ser desenvolvido na Narração, a principal, mais longa e substancial parte do poema épico, a partir da estrofe 19.
Na Dedicatória, constata-se que os “feitos valerosos” portugueses (estrofe 9, verso 7) de um passado remoto, aqueles de um passado menos remoto e os mais recentes serão parâmetro para emular os heróis do presente a realizá-los ainda maiores no futuro. Desse modo a conquista de Portugal, no século XII; a expansão portuguesa, intramuros, no final do século XIV, e extramuros, no final do século XV, são os modelos para que, no século XVI, a nação lusitana reafirme o seu poder, em todos os lugares do orbe terrestre. O poema, projetando-se, portanto, para o futuro, não se vê restrito ao passado de glórias de Portugal.
Se Camões não pode ainda cantar os feitos do rei-menino – D. Sebastião, rei desde 1568, tinha apenas 18 anos, em 1572, na data de publicação de Os Lusíadas –, ele espera que, com os exemplos do passado, o rei possa, mais do que igualá-los, ultrapassá-los, concedendo a um novo poema “matéria a nunca ouvido canto” (estrofe 15, verso 4), ainda que os fatos passados não sejam fáceis de suplantar: Viriato, no século III a. C., quando ainda não existia Portugal, resistindo aos Romanos; D. Afonso Henriques, em 1139, fundando a nação portuguesa, ao vencer os mouros na Batalha de Ourique, e depois, em 1147, expandindo o território em direção ao Sul, com a tomada de Lisboa; D. João I, o mestre de Avis, vencendo os espanhóis, na Batalha de Aljubarrota, em 1385, delimitando as fronteiras orientais do reino; D. Manuel, o Venturoso, financiando duas grandes expedições, a de Vasco da Gama, em 1498, em busca do caminho para as Índias, objeto do poema, e a de Pedro Álvares Cabral, em 1500, que, a caminho das Índias, toma posse do Brasil; D. João III, o avô de D. Sebastião, iniciador da colonização do Brasil e gestor das crises deixadas por seu pai, D. Manuel... Ou seja, o poema que acaba de ser entregue ao público é, por si só, grandioso.
O que há de vir, exaltando os novos feitos heroicos deste “novo temor da Maura lança” (estrofe 6, verso 5), no caso, D. Sebastião, deverá ser ainda maior, esperança do poeta revelada ao final do poema, no Canto X (estrofes 155-56):
Pera servir-vos, braço às armas feito,
Pera cantar-vos, mente às Musas dada:
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a pressaga mente vaticina
Olhando a vossa inclinação divina.
Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter inveja.
O que veremos, no entanto, é que, com a derrota de D. Sebastião, em Alcácer-Quibir, em 1578, os planos de Camões se frustram e o resultado é a descontinuação da saga portuguesa, cuja ousadia abriu as portas do Oriente para o mundo, ligou o Oceano Atlântico ao Índico, transformou Goa na capital portuguesa da Índia e expandiu “a Fé e o Império” (estrofe 2, verso 3), para os cinco continentes, no combate contra os mouros, velhos inimigos, e contra os novos, o gentio Hindu e os turcos islâmicos, estes dominadores, na ocasião, da bacia do Mediterrâneo, razão da busca dos novos caminhos marítimos para o comércio.
Como já tratamos, em textos anteriores da Proposição e da Invocação, o nosso intuito é analisar a Dedicatória, cuja extensão (13 estrofes) nos obrigou a dividi-la, segundo a nossa percepção, em 4 partes – Apresentação de D. Sebastião (estrofes 6-8), Natureza da Obra (estrofes 9-14), D. Sebastião, o continuador das glórias portuguesas (estrofes 15-17) e Pedido de Favorecimento do Poema (estrofe 18).
Em um próximo texto sobre o assunto, iniciaremos o estudo da Dedicatória com a primeira parte – Apresentação de D. Sebastião. Até lá!