Os mitos sempre estiveram presentes nos poemas de Marcus Accioly, daí o título de vários de seus livros se referirem aos mitos – Sísifo, Érato, Narciso, Ixion. Não iremos tratar desses livros, mas de um poema inserido no livro “Guriatã: um cordel para menino” com o título “Da menina e seu espelho” que está intimamente relacionado com o mito de Narciso.
Narciso é nome de flor e de mito. A flor é uma planta herbácea, de flores brancas e amarelas que floresce na primavera em regiões úmidas, caracterizando-se pela beleza e
Eline Sun
por um intenso e penetrante perfume. Por apresentar uma haste ereta, é associado ao homem em pé, ao servidor assíduo que deseja consagrar-se ao serviço de Deus.
Chevalier e Gheerbrant (1991, p. 629-630) afirmam que os narcisos são plantados sobre túmulos para simbolizar o entorpecimento da morte, mas uma morte que não é talvez senão um sono.O narciso também se liga ao símbolo das águas e dos ritmos sazonais e, em consequência, à fecundidade.
Na mitologia grega, Narciso é um belo rapaz, filho do deus fluvial Césifo e da ninfa Liríope. Por sua grande beleza, Narciso atraía a atenção das ninfas, mas se mantinha indiferente a todas, até mesmo à sedutora Eco. O cego Tirésias, que possuía a capacidade de predição, profetizou que Narciso teria vida longa desde que não contemplasse sua própria imagem. Certo dia, atraído pela beleza de sua imagem refletida em uma fonte, Narciso mergulhou em suas águas e morreu afogado. De acordo com o mito, no lugar onde Narciso morreu nasceu uma flor solitária que recebeu seu nome. Por conseguinte, a atitude autocontemplativa do herói originou o termo “narcisismo” para nomear uma atitude de extrema vaidade pessoal. Como mito, Narciso tem inspirado poeta e pintores.
Jan Cossiers
A crítica psicanalítica também se utiliza desse mito para explicar certas obras de arte. Entre os psicanalistas que se preocuparam em fazer uma leitura desse mito, destaca-se Gaston Bachelard. No livro A água e os sonhos, Bachelard convida o leitor a seguir “o destino das águas” e dedica todo o primeiro capítulo às águas claras, às águas brilhantes, às águas primaveris, às águas correntes. Para ilustrar sua tese sobre a poética das águas, retirou a maioria dos exemplos da poesia, porque entende que “toda poesia da imaginação não se pode esclarecer atualmente senão pelos poemas que ela inspira.”
Para Bachelard (1989, p.23), o que determinou a psicanálise marcar com o signo de Narciso o amor do homem por sua própria imagem, por este rosto que se reflete numa água tranquila, não foi um mero desejo de fácil mitologia, mas uma verdadeira presciência do papel psicológico das experiências naturais.
John William Waterhouse
Inicialmente precisamos compreender a utilidade do espelho das águas. A água naturaliza a nossa imagem. O mirar na água é um volver a um estágio de inocência e naturalidade, diferente do mirar no espelho. Narciso vai à fonte e só na fonte sente que é duplo. É diante das águas que tem a revelação de sua identidade e de sua dualidade. Contemplando-se, ele medita sobre sua beleza, sobre seu futuro. Os espelhos soam por demais civilizados, manejáveis e geométricos. Os espelhos de vidro produzem uma imagem estável, enquanto o espelho da fonte produz um reflexo vago, difuso, ondulante.
Dentre as características mais simples da psicologia das águas, o filósofo/poeta destaca um componente da poesia das águas: “o frescor”. Esse frescor que sentimos ao lavar as mãos em um regato apodera-se da natureza inteira e associa-se ao “frescor da primavera”. Para um ouvido francês, não existe uma expressão mais agradável do que “eaux printanières” (águas primaveris). Se o frescor se liga intimamente à primavera, não se pode dizer o mesmo com relação a “vento fresco” no reino das imagens do ar. O vento fresco dá-nos a sensação de frio. Aqui, no Brasil, de forma mais específica, no Nordeste, podemos ligar o frescor das águas à estação das chuvas, ao inverno.
Monika MG
Os rios, os riachos e as cascatas dos períodos de chuva caracterizam-se por uma água fresca, daí Bachelard falar em “águas risonhas e cascatas ruidosamente alegres”. Essas águas risonhas e alegres se encontram nas mais variadas paisagens literárias.
Na poesia brasileira contemporânea, Marcus Accioly é poeta que demonstra fascínio pelo destino das águas. Na sua produção poética, há inúmeros poemas em que a água aparece como elemento mítico, como no poema “ XXVIII - da menina e seu espelho” que se encontra no livro Guriatã: um cordel para menino ( 1980, p. 64-65):
XXVIII – da menina e seu espelho
Com sete notas de pássaro
dentro do seu assovio
e um verde alguidar de louça,
a menina foi ao rio.
No sabão de pedra branca
bateu pano, lavou mágoa
Pissaro
e escreveu, com os cinco dedos,
sobre a página da água,
as vogais, as consoantes,
a fácil prosa corrente,
os versos soltos da folha
do caderno transparente.
Depois de assinar o nome
sob as palavras da carta,
descobriu a própria sombra
no espelho claro da água.
Ali, mirando o seu sonho,
ela viu outra menina
com os fios do seu cabelo
na trança da água fina,
com os aruás dos seus olhos
na pupila da onda pouca,
com os seixinhos dos seus dentes
nos peixes alvos da boca,
com seu vestido de ramas
no manto cheio de flores,
com a cor rosa do seu rosto
na face que treme as cores,
com seu anel mariado
na mãozinha de princesa
com sua cara perdida
na imagem de tal beleza.
Há várias passagens do poema que nos levam ao mito de Narciso: a primeira é o subtítulo – “ da menina e seu espelho”-; as outras passagens, de acordo com a sequência, são estas:
[...]
descobriu a própria sombra
GD'Art
no espelho claro da água.
[...]
Ali, mirando seu sonho,
ela viu outra menina
[...]
com sua cara perdida
na imagem de tal beleza.
Observamos que o vocábulo “espelho” aparece duas vezes. A primeira no subtítulo, mas seu sentido não é o espelho de vidro ou metal que aprisiona, como nos fala Bachelard, antes se refere à forma como vem especificado no fim da primeira estrofe – “espelho claro da água”. “Sobre a página da água”, a menina escreveu “as vogais, as consoantes”, depois de assinar o nome descobriu sua própria sombra “no espelho da água”. A menina não é Narciso, é a ninfa Eco que vive na cavidade da fonte, que está constantemente com Narciso. Tem a voz dele, tem o seu rosto. Ela é ele, é seu duplo.
Ainda podemos explorar nesse poema as imagens que se associam à brancura, limpidez, transparência: “os seixinhos de seus dentes” vêm interligados aos “peixes alvos da boca”.
GD'Art
Acrescentamos mais: “página da água, caderno transparente, água fina e espelho claro da água.”
Não poderíamos deixar de fazer referências aos números cinco e sete, eles aparecem na primeira estrofe do poema. O número cinco comparece no 7º. verso da primeira estrofe: “ e escreveu com cinco dedos”. O número sete aparece no primeiro verso da 1ª estrofe: “ Com sete notas de pássaro”. As sete notas de pássaro se associam às sete notas musicais, daí a referência ao pássaro e à sonoridade do seu canto.
O poema é formado por versos em redondilha maior, versos de sete sílabas, tipo de métrica muito comum entre os poetas populares. É o mais simples e predomina nas quadrinhas e canções populares. Norma Goldstein (1985, p. 27) afirma que é um verso tradicional em língua portuguesa, frequente nas cantigas medievais.
Para Chevalier e Gheerbrant (Op. cit, p. 828), o número sete é poderoso e mágico. É um número sagrado e benéfico, está presente na Bíblia, no Antigo Testamento. No sonho do faraó, havia sete vacas belas e gordas e sete vacas feias e magras. No Apocalipse, encontramos o maior número de referências ao sete: 7 igrejas, 7 espíritos, 7 candelabros, 7 estrelas, 7 lâmpadas, 7 selos, 7 olhos, sete anjos, 7 trombetas, 7 trovões, 7 raças, 7 pragas.
No Islamismo, o sete é o símbolo da perfeição: são sete céus, sete terras, sete mares. Sete são os versículos que abrem o Corão que, segundo os místicos mulçumanos, enceram sete sentidos. É presença também nos contos populares e tradicionais e nos contos de fada: sete irmãos, sete cisnes encantados, sete segredos, sete obstáculos, sete mortes.
O mito de Narciso e todo o simbolismo da água marcam este belo poema que é um canto de louvor à natureza. Dotado de forte sensibilidade poética, Marcus Accioly canta e encanta os leitores com um poema banhado de puro lirismo.