O livro O caçador de lagostas (São Paulo: Labrador, 2018; ilustrações de Flávio Tavares), de Sérgio Rolim Mendonça, se parece com o seu autor. Não é pelo fato de que é uma autobiografia, mas pela escrita em si mesma. Sérgio escreve bem, sua narrativa flui e há um prazer em ler o seu livro. O segredo é que Sérgio consegue reproduzir na escrita o modo como fala – abundante, preciso, minucioso, enfático, sem permitir ao interlocutor a pausa do tédio –, não dispensando o bom humor, como ele demonstra na sua
passagem pelo “Orfeão Carlos Gomes”, coral do Pio X, que integrou, quando criança:
“Minha voz de menino era a de soprano. Depois que comecei a mudar de voz, dos 13 para os 14 anos, fui afastado do coral, e até hoje não consigo cantar nem no chuveiro” (p. 183).
Quando digo que ele escreve bem, estou afirmando que ele respeita a língua portuguesa e as suas normas, mas, ao mesmo tempo, rejeita qualquer linguagem empolada e cediça. Pode-se dizer que Sérgio Rolim de Mendonça é um erudito. Explique-se. Sua escrita avança em vários saberes, é refinada, como deve ser a escrita de que se extraiu a rudeza que compromete o entendimento; refinada como as receitas de lagosta que ele apresenta entre as páginas 421 e 423 do seu livro. Sérgio, com a mesma objetividade e tonalidade persuasiva com que fala, não se extravia, contudo, em firulas ou em gongorismos. A escrita correta e agradável aos olhos denuncia o homem simples, que gosta de falar, mas também o homem de visão técnica, engenheiro civil e apaixonado pela Matemática e pela Engenharia Sanitária, que se acostumou a desbastar os excessos, as rebarbas, as inutilidades, que levam a perdas. Sua escrita, portanto, não traduz a abundância da superfluidade, mas aquela de quem tem muito a dizer.
Ilustração da contracapa do livro O caçador de lagostas, ed. Labrador, 2018Flávio Tavares
Apenas 12 anos nos separam, tempo que, nos dias de hoje, não faria tanta diferença, entre duas pessoas que tenham nascido em 1990 e 2002. No entanto, entre 1944, a data de nascimento de Sérgio, e 1956, a data em que nasci, há uma diferença enorme. Sérgio parece ser um homem do século XIX, dotado de uma cultura sólida, não só na sua área, a do saneamento, sendo uma das autoridades mundiais no assunto, mas também na cultura geral.
O pequeno Sérgio ao lado da irmã, Selda, e dos pais Zuleida Rolim e Francisco Mendonça. ▪ Ilustração do livro O caçador de lagostas.
Ele credita isso à persistência e ao seu perfil desafiador (“Parece que quanto mais as dificuldades surgem na minha vida, mais aumenta o desejo de dobrá-las.”, p. 317). Acredito, contudo, que, além da persistência, concorreu o exemplo doméstico do pai médico a ensinar-lhe as primeiras letras em língua inglesa, e um energizado pendor para o saber, para o conhecimento, para a pesquisa. Segundo ele próprio confessa – “Sempre fui muito e irrequieto” (p. 173).
Homem simples, de boa conversa, Sérgio sabe de sua capacidade como sanitarista, se reconhece competente no assunto, mas não se ufana, não anda de nariz empinado e não vive à procura de holofotes, embora, desde 1989 ele já fosse “um dos instrutores mais requisitados para ministrar cursos de curta duração no Brasil” (p. 284), alcançando, depois, boa parte da América Latina, incluído o México.
Considero-o um homem de “um saber de experiências feito”, como diz Camões, em Os Lusíadas, a respeito do Velho do Restelo. Sérgio Rolim de Mendonça é o professor com o cuidado de ensinar o que sabe,
Sérgio Rolim Mendonça
ensinar verdadeiramente buscando o diálogo da compreensão do saber entre quem ensina e quem tenta aprender. Assim foi com o primeiro livro, Manual do reparador de medidores de água, publicado em 1975, um sucesso que sobrevive, enquanto sobreviver o mecanismo. É o profissional da engenharia sanitária, que passou dez anos fora de seu país, ensinando os conhecimentos sobre saneamento, tarefa muitas vezes inglória, nessa tragédia que nos abate de ignorância e miséria programadas pelos donos do poder, que não se interessam em investir no saneamento básico e na água tratada, fator de melhora sensível a curto prazo na saúde da população. Veja-se, como exemplo, este depoimento, expressando uma verdade inquestionável e atual:
“O difícil acesso a água de boa qualidade e condições precárias de saneamento são um risco muito maior à saúde humana do que abuso de drogas, poluição do ar, práticas sexuais de risco, saúde ocupacional, consumo de cigarro, vida sedentária, desnutrição e consumo de álcool. A falta de saneamento básico, em número de mortes, só perde mesmo para a hipertensão”
p. 347-8
R. Lach (adapt.)
O seu livro, O caçador de lagostas, não diz apenas das memórias do garoto que se tornou um exímio caçador dessa espécie de crustáceo, veraneando no Poço, com os pais, numa época em que era uma dificuldade para se chegar a essa praia e outra mior para lá ficar, devido à falta de um sistema de distribuição de água. Ele assim, se autodenomina, por ter realizado a façanha de ter pescado, junto com a sua equipe, em um único dia, 156 lagostas (p. 418). O trabalho reflete a visão do homem maduro sobre um tempo idílico, que já não existe; tempo em que a explosão urbana e a consequente poluição não estavam na preocupação dos mais velhos, muito menos dos meninos, que viam no mar e no verão, uma oportunidade de se esbaldar e de deixar de pensar nos bancos de escola, vivendo as maravilhas de um “verdadeiro paraíso tropical” (p. 150).
GD'Art
Por outro lado, Sérgio é também testemunha do corso (eu ainda peguei uma pequena fatia desse passeio), no carnaval, que se desenvolvia espontaneamente pelas ruas de João Pessoa, e se concentrava mais no percurso que se fazia pelas ruas principais do centro da cidade. Morador de um espaço privilegiado, na época, a casa nº 90, na esquina da Duque de Caxias com a Conselheiro Henriques, Sérgio não só estava no epicentro do carnaval, mas das procissões e da Festa das Neves, e a poucos passos do bulício da cidade, no Ponto de Cem-Réis.
Rua Duque de Caxias, João Pessoa ▪ Gmaps (adapt.)
O Caçador de lagosta é, pois, mais do que a memória de um descendente do chanceler Nicolas Rolin, nobre francês do século XV, que é personagem uma das telas do prestigiado pintor holandês Jan Van Eick; mais do que as memórias de um parente próximo do Padre Rolim, de Cajazeiras, que ficou famoso por o considerarem como o mestre que ensinou a Paraíba a ler, ou do comerciante Vergara, que se torna personagem bastante referido em Usina, de José Lins do Rego. Insisto que se trata mais do que o livro de um parente enviesado do intelectual, professor e fundador da Academia Paraibana de Letras, Coriolano de Medeiros, seu “bisavô torto” (p. 27), casado com a sua bisavó (1905), Eulina de Medeiros Rolim (Vó Neném), que enviuvara (1899). O livro é também a memória de um tempo em que as instituições de ensino eram limitadas, mas em que se aprendia e em que havia respeito e admiração pelos professores, como Sérgio Rolim demonstra pelas professoras Francisca Ascensão Cunha e Maria Tércia Bonavides Lins.
Coriolano de Medeiros e Eulina de Medeiros Rolim (Vó Neném) ▪ Fonte: Construindo a História
Este livro, minuciosamente documentado (“desde pequeno tenho o DNA de colecionador e, em consequência, continuo como um grande guardador de documentos antigos.”, p. 371), é também a memória de uma João Pessoa, de que compartilhamos um pouco; um pouco da Paraíba, revestida com o afeto de Sérgio Rolim Mendonça e que atingiu também o meu afeto. Sérgio é, por definição, um caçador de conhecimentos.