A tradução nunca é pacífica. A complexidade da tradução está em não percebermos que não é o tradutor que conduz o texto, como sugere a formação da palavra latina – “trans”, através de, além, e “duco”, aquele que conduz, estando à frente. Quem sempre está à frente é o texto, é ele que conduz o tradutor para além da sua língua. Se tal não acontece é porque o tradutor tem veleidades poéticas e, muitas das vezes, quer ser maior e melhor do que o autor do texto que ele traduz.
HeraAlonso Cano, c.1651
É o que constatamos, com muita frequência, na tradução das obras clássicas. Vejamos alguns exemplos.
A tradução de λεκώλενος, “braços brancos”, epíteto de Hera, como “bracinívea”, por exemplo, não soa para nós com a naturalidade com que aquela palavra soaria no grego arcaico ou no grego clássico, havendo vários motivos para que isso não ocorra. Um deles é que a estrutura de nossa língua, mais próxima do latim, rejeita as aglutinações de radicais, tanto quanto a língua de Virgílio rejeitava. De resto, “bracinívea” (“braços cor de neve”), não tem o mesmo sentido de “braços brancos”, fazendo surgir um problema de compreensão, que, a priori, não deveria existir. A língua grega é precisa. Se o escritor quisesse dizer “braços cor de neve”, ele teria criado o epíteto assim, pelo fato, sobretudo, de que a neve faz parte do seu mundo, havendo um termo para ela, usado só no acusativo, νίφα (o nominativo *νίψ é hipotético), ou em palavras com radicais aglutinados, como νιφαργής, cujo significado é “branco como a neve”. Às vezes, o que parece ser, em um determinado momento, uma saída criativa de tradução, apresenta-se, em outro, como ridícula. É o caso da tradução de ποδώκης, “pés ágeis” ou “pés rápidos”, epíteto de Aquiles, por “velocípede”...
A que vem a tradução de βοῶπις, “dos olhos bovinos” ou “dos olhos de vaca”, como “olhitáurea”, se no mundo grego, assim como no nosso, há uma diferença estabelecida entre os termos vaca-boi, para o qual existe uma única palavra βοῦς, e outra para touro, ταῦρος? Não só existem palavras diferentes, para designar
O Rapto de EuropaF. Goya, 1772
os animais, mas também as atribuições delegadas a eles são diferentes, na Grécia antiga ou no Brasil atual. O boi, por ser castrado, é submetido ao trabalho de puxar a carroça ou a charrua. Destina-se o boi/vaca ao trabalho no campo ou ao corte e à produção de leite. O touro, além de reprodutor, símbolo da fertilidade – não é à toa que Zeus se transforma em touro para raptar Europa – é feroz e jamais se submeteria ao jugo da canga. Pensemos também que não existe “toura”, só existe vaca. O epíteto dado a Hera, quero supor, diz respeito aos olhos amendoados, brilhantes, de cílios longos, que dão um ar de beleza e sensualidade. Mesmo que, aqui e acolá, a deusa-mãe tenha seus arroubos de ferocidade contra Zeus, o epíteto deseja traduzir a sua beleza. É preciso entender a estrutura e o contexto do que se traduz, para se evitar confusão. Se “olhitáurea” não condiz, tampouco devemos traduzir o termo grego por “de olhos de vaca”. Bem mais condizente, principalmente na atual realidade, é fazer a negociação tradutória, para chamar Hera “de olhos bovinos”.
Zeus e Hera no Monte IdaJames Barry,1790s
Recentemente, surpreendi-me, ao ver que um dos epítetos de Poseidon, o deus do mar, κυανοχαίτης (“o da cabeleira de um azul escuro ou sombrio”), foi traduzido por “coma-cobalto”! Não consegui entender o porquê de o tradutor complicar ainda mais, na língua portuguesa, o que se encontra no grego. Não resta dúvida de que a poesia utiliza “coma”, termo erudito, proveniente do grego, para designar a cabeleira de alguém. É só ver, por exemplo, o poeta Gonçalves Dias, descrevendo a preparação de um índio para a ritual de sacrifício e de antropofagia, numa sextilha de belos hendecassílabos, na primeira parte de “I-Juca-Pirama”:
Em tanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,
O índio já querem cativo acabar:
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.
No caso da divindade marinha, a tradução de seu epíteto por “coma-cobalto” não consegue esclarecer mais do que o próprio termo grego. Pode até ser que o tradutor a considere poética, mas a sua solução, se assim se pode chamar, não tem em português o efeito que tem o termo original na língua grega. É inegável, a quem escuta, que o primeiro termo “coma” produza uma possível confusão entre o substantivo erudito e a forma verbal, trazendo um sentido não pensado de um Poseidon comedor de cobalto. Digamos, no entanto, que se não existe a confusão sonora, quem conhece o cobalto, a ponto de saber que esse elemento químico, com aparência cinza-metálico,
PoseidonL. Giordano, S.XVII
pode transmitir, depois de processado, a cor azul em objetos? Além disso, o grego, com certeza não conhecia o cobalto e, se o conhecesse, assim não o denominaria, por ser um termo proveniente do germânico, com o significado de “Demônio das minas”, por sua toxicidade. Esse é um dos casos em que a tradução não funciona, a não ser para gáudio de quem a fez.
A tradução é um processo, é um vir-a-ser, tendo em vista que nunca podemos dá-la por acabada, devendo sempre ser revisitada. Há que se conhecer não só as línguas envolvidas na tradução, mas o contexto e a estrutura do que se traduz. Do mesmo modo devemos respeitar o escritor, não querendo inventar ou competir com ele. A tradução exige também humildade da parte do tradutor, para saber que há nós impossíveis de desatar. Se eles existem nas línguas modernas, faladas e divulgadas, a que temos um acesso relativamente fácil, sobretudo na era da internet, é de se prever que esses nós também se apresentem nas línguas antigas. Κύανος, por exemplo, pode ser um mineral de um azul sombrio, empregado em tingimentos, como pode ser o lápis-lazúli, rocha de cor azul, que, ao ser moído serve para dar a cor azul em objetos. O grego, inclusive, registra mais dois termos κυανός: substantivo que designa apenas o lápis-lazúli aqui já referido, e κυανός, adjetivo, com o sentido de “azul sombrio, escurecido”. É como adjetivo que ele aparece em κυανοχαίτης, que me parece querer representar, nos cabelos de Poseidon, a cor azul profunda do mar Egeu.
Lembro-me que Paulo Rónai, falando da tradução da Comédia Humana, de Balzac, foi questionado pelo fato de ter deixado em francês o título La rabouilleuse. A sua resposta foi que não seria possível traduzi-lo para o português,
senão por uma perífrase: “pessoa que agita e turva a água, para espantar os caranguejos e pescá-los mais facilmente”. Em francês, se diz com uma palavra só; em português, é impossível. Assim, é também a tradução de La curée ou de Pot-bouille, romances de Émile Zola, títulos impossíveis de se traduzirem com uma só palavra.
Quando não observamos e não esclarecemos os critérios de tradução, o resultado é a confusão e a incompreensão do texto traduzido. Sem querer ofender a fé de ninguém, referindo-me apenas à questão técnica, o dogma da virgindade de Maria resulta de uma má escolha tradutória. Conforme nos ensina Cyril Aslanov, em seu importante livro, para quem se interessa pelo tema, A tradução como manipulação (Perspectiva, São Paulo, 2015). No trecho de Isaías (7, 14) em que se anuncia a profecia do nascimento de Cristo, a palavra hebraica almāh (garota) foi traduzida como παρθένος (virgem), quando da tradução da Septuaginta ou Bíblia dos Setenta, iniciada no século III a. C., sob os auspícios de Ptolomeu Filadelfo, na primeira tradução de um texto judaico para o grego, e, com certeza, a primeira tradução de um texto religioso, longo, do mundo ocidental.
Ptolomeu Filadelfo discute a tradução das Escrituras com estudiosos hebraicos, na Biblioteca de Alexandria V. Camuccini, 1813
Ora, garota e virgem são termos muito diferentes: uma garota pode não ser virgem e uma virgem pode já não ser garota. O termo para virgem em hebraico é betūlāh, assim como o termo para garota em grego é κόρη ou κούρη. A palavra hebraica almāh pode ser traduzida como “garota em idade de casar” ou como sugere Aslanov, “menina casadoura”. O tradutor do livro de Isaías para o grego não considerou as diferenças entre as culturas hebraica e grega, nas quais as fronteiras entre virgindade e defloração não são as mesmas, e, consciente ou não do deslize cometido, ajudou a criar um dogma de virgindade.
Maria em OraçãoSassoferrato, c.1800
Reafirmo que me refiro aqui a técnicas de tradução, sem qualquer ofensa à fé de quem quer que seja. Não se trata de uma discussão de doutrina, mas de tradução. Quem tem fé na virgindade de Maria deve continuar a tê-la.
Ao fim e ao cabo, a tradução, por mais eficiente que seja, deve ser entendida apenas como uma referência, um meio de se obter acesso aos textos, quando desconhecemos as línguas em que foram escritos. Dou razão, portanto, a Machado de Assis, quando põe na boca do Conselheiro Ayres, em Esaú e Jacó, uma afirmação que deveria nortear, sobretudo, os tradutores picados pela mosca azul da “criatividade”: nenhuma tradução vale o original.
E na minha experiência com tradução, posso afirmar que o original é, muitas vezes, mais fácil do que a tradução “criativa” proposta.