Não foi fácil, posso garantir, a entrada da passageira no ônibus urbano. Hoje, é comum que pessoas implorem um adjutório para esta ou aquela mazela: fome, remédio, gente desempregada, até bem adiantadas em anos; gente que traz a certos passageiros constrangimento visível. O itinerário é percorrido e eles contando seus dramas (desconfia-se de invencionices ou dribles, a fim de conseguirem money).
Mas o ingresso da menina ferida nos braços da mãe causou consternação em todos os viajantes, afora os que priorizavam os olhares às telinhas ou estavam desligadas de si mesmas. A mulher, meia-idade, trazia aos braços uma menina de dez anos, suponho, toda enroscada nos membros,
Celyn Kang
repetindo um idioma alheio. Um caramujo humano, para comparação sem preconceito, apenas para trazer a visibilidade imaginária a quem me dá o prazer em ler este relato dorido, agora.
Outros vendiam confeitos, balinhas, amenizavam tragédias, enfim, conseguiam traduzir suas mazelas sociais em pedidos leves. Mas a figura da mater dolorosa me veio, aquela que, por má gestão, resolveram tirar do lado direito da entrada da Catedral de Nossa Senhora das Neves. Não sei de quem foi a ordem ou desordem, para não dizer desrespeito.
Era linda e emocionante a imagem e traduzia a dor de Maria com o Filho entre os braços, recém descido do patíbulo da cruz. A menina do ônibus não estava morta, fisicamente, nem trazia marcas de sangue ou feridas externas. A mãe, sim. Tinha um olhar opaco, perdido, carregando o peso da cruz, um sofrimento que a reduzia a Maria das Dores (ela disse o nome),
Pietà de Madeira (destruída) J. Augusto Moraes
me honra da Virgem de que falei, cuja escultura foi desfalcada, deixando um vazio enorme. Feridas mais profundas do que as da alma? E como doem! A lágrima escorrendo pela face enrugada de Maria das Dores, a filha sem gesto, emitindo sons guturais, uma padecente atual, em vida vegetativa, que jamais iria viver, participar de brincadeiras, conviver livre em pátios abertos. O som emitido por ela era arrepiante, idioma que nem ela compreendia; os ocupantes do veículo nem olhavam para a mater dolorosa, nem se fixavam na menina, como se elas os incomodassem. Verdadeira falta de compaixão.
Alguns puxavam alguma nota ou moeda e entregavam, mecanicamente. Pude compreender, quando elas desceram, o quanto nossa sociedade se desumaniza, se torna alheia e cega a um fato daquela magnitude. O amor ao próximo, decorridos dois milênios, é sentença de Jesus que encontrou solos com pedras e ervas daninhas. As terras fecundas são bem mais raras. Existem como exceção.
As imagens da Pietà foram gentilmente
cedidas com exclusividade pelo administrador, historiador, escritor e curador artístico-cultural José Augusto de Moraes, de seu raro acervo particular.