“Em minhas derivas, observando os mobiliários de iluminação pública, detectei algo que sempre me incomodava esteticamente nos centros mais urbanizados: a completa desordem neste tipo de equipamento, especialmente no que tange aos fios e cabos que compõem as várias redes: elétrica, telefonia, internet, etc. Dessa forma, este caos me fez refletir esteticamente sobre ele e sublimá-lo, me dando as bases que eu precisava para expurgar essa minha ojeriza pelo aspecto mal acabado dos postes e instalações elétricas tão presentes.”
Daniel da Hora
Eu podia ter parafraseado esta frase do artista plástico Daniel da Hora — que li logo ao chegar à sua exposição de fotografias e pinturas chamada Descaminhos — mas preferi transcrevê-la na íntegra e utilizá-la como introdução para esta crônica. Esta minha escolha é impulsionada pelo mesmo desconforto que sinto ao observar a mistura estética de cabos e fios nos postes de iluminação pública das
Daniel da Hora, designer, professor e artista visual, nascido no Recife-PEDiv.
zonas urbanas. Somente a arte, seja ela de natureza plástica ou literária, tem o poder de eliminar toda a aversão aos fios emaranhados das redes elétricas e internet que provocam uma poluição visual tão evidente. Da Hora expressou sua indignação por meio da pintura e fotografia, eu expressarei minha indignação por meio da literatura, das palavras e da escrita. Que sorte temos nossas artes para transformar o caos em arte.
Esta exposição veio em boa hora, pois estava com saudade de apreciar o belo. Definitivamente, estou cansado de observar caos e escutar barulhos, principalmente em grandes cidades. Desejo contemplar a beleza do amanhecer, ouvir o canto dos bem-te-vis e observar o céu estrelado, que, a propósito, não se observa com tanta frequência estrelas nos céus. Em relação a isso, li em uma revista de curiosidades científicas que, devido ao crescimento da poluição luminosa provocada pelo brilho noturno das luzes artificiais, a quantidade de imagens visíveis a olho nu diminuiu consideravelmente nos anos recentes. No entanto, recordo-me de quando era criança e via muitas estrelas no céu, algo que já não acontece mais.
DG'Art
Esta reflexão me fez lembrar de uma viagem a São Paulo, onde observei pessoas apressadas, se deslocando de um lugar para outro, entrando e saindo do metrô. Parei por alguns instantes para observar aquela cena, capturei aquela imagem com meus olhos e percebi que há arte em meio ao caos. Embora possa parecer contraditório, ao ver aquela situação de um serviço público ineficiente, por um momento vi beleza, arte e estética em meio à desordem.
DG'Art
Pablo Picasso certa vez falou que a arte é o caos tomando forma. Já Ferreira Gullar dizia que a arte existe porque a vida não basta e John Cheever afirmou que a arte é o triunfo sobre o caos. Possivelmente, essa é a característica dos artistas e dos indivíduos mais sensíveis que apreciam a beleza: quando sentimos falta dela, transformamos o caos em arte.
Quadro da série DescaminhosDaniel da Hora, 2023
Sorte a minha por ter contemplado uma exposição que transformou a bagunça dos fios elétricos dos postes de iluminação pública em belas fotografias e pinturas. Sorte a minha que disponho da literatura para transformar palavras em crônicas. Que sorte a nossa por termos artistas que compõem canções, pintam telas, fazem esculturas e recitam poesias. Que sorte por existir a arte em meio ao caos.