Esclareço de antemão que sou um defensor da tradução, muitas vezes a única opção que temos para conhecer um texto. Do mesmo modo, ratifico a boutade do Conselheiro Ayres, personagem de Machado de Assis, no caso específico, em Esaú e Jacó, ao afirmar que nenhuma tradução vale o original. Gostaria de deixar claro que as duas proposições não se excluem, antes se complementam. Sempre será melhor poder ler no original.
Lion Cachet, S.XX
A tradução é apenas um meio, para se atingir uma finalidade. Divirjo, portanto, de muitos tradutores do texto literário, que veem, para gáudio próprio, a sua tradução como uma finalidade em si mesma.
Gostaria, também, de dialogar com Arina Fonseca Alba que, em tempos passados, foi minha aluna de Literatura Brasileira, no Curso de Letras, por cujo trabalho de tradutora profissional eu tenho o maior respeito. Diga-se, como habeas corpus preventivo, que essa tentativa de diálogo tem para mim o sentido de fazer mais uma reflexão a respeito de tradução.
Concordo plenamente que as línguas são um fato humano e por isso mesmo, em algum ponto elas se tocam. Claro, nós, seres humanos, nascemos com uma estrutura pronta para falar qualquer língua. Essa é a possibilidade. A concretização dessa possibilidade é a língua particular que falamos, em suas diversas realizações em linguagens multifacetadas, por termos nascido ou sido criados naquela geografia específica.
E, finalizando esse preâmbulo, concordo em parte com a afirmação de Arina de que “todo texto é traduzível”. Sim, todo texto é traduzível, mas nem sempre o traduzível é o desejável. De modo a embasar a minha argumentação, tecerei comentários a
E. Kirchner, S.XX
respeito de alguns fatos tradutórios da literatura clássica, especificamente, na Ilíada, tendo em vista que nada sei a respeito de tradução em outras áreas.
Antes de entrar no texto homérico, gostaria de falar de um fenômeno que acho curioso e interessante. Na Paraíba, antes da chegada do vírus da febre “cafeteira europeia” – notadamente a italiana –, um café era um café, todos se entendiam. No máximo, havia a possiblidade de um café com leite. O capuccino chegou timidamente, mas o cafezinho ou o café com leite, estavam lá, donos da situação. Hoje, para se tomar um café simples, nas elegantes cafeterias da cidade, é um verdadeiro tour de force. Pedir um café se tornou um suplício, diante de tantas possibilidades. O cafezinho tradicional simplesmente desapareceu. O café se tornou, como se dizia apenas de determinados antibióticos, “de amplo espectro”. É curioso imaginar como alguém pediria um café em Roma... Mas não vamos muito longe. Aqui, na nossa velha e querida Filipeia, café já não é só café. Vamos a Homero.
No Canto I da Ilíada, na tradução de Haroldo de Campos (2. ed. Mandarim: São Paulo, 2002), o verso 7, Ἀτρεΐδης τε ἅναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς, tornou-se, em português “O Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles”.
Com todo o respeito que se deve a Haroldo de Campos — sei que estou mexendo num vespeiro, mas quem está na chuva é para se molhar... — ouso discordar da sua tradução. Na minha concepção, tomando como parâmetros os critérios do contexto e da estrutura do poema homérico, eu optaria por “O Atreide, senhor dos heróis, e o divino Aquiles”.
A diferença está em que o epíteto ἅναξ ἀνδρῶν (senhor dos heróis) é uma honraria concedida pelos deuses, que distingue Agamêmnon, em relação aos demais. Rei, como seu irmão Menelau, como Aquiles, Ajax, Diomedes e Odisseu, Agamêmnon é o senhor dos reis. Ele não é apenas um rei (βασιλεύς), mas aquele que comanda todos os reis Aqueus (nome coletivo para designar todos os povos reunidos sob o comando de Agamêmnon. Surpresa! na Ilíada, não há gregos...), com a missão de destruir Troia. A honraria é tamanha, a distinção é tão nítida que, ao final do Proêmio, antes da pergunta retórica e da sua resposta, para dar início à narração, Agamêmnon é referido por dois epítetos: Atrida ou Atreide (filho de Atreu) e o senhor dos heróis. O primeiro epíteto, Atrida, de origem parental, poderia confundi-lo com o seu irmão, Menelau, também filho de Atreu. O segundo, o senhor dos heróis, dirime qualquer dúvida: trata-se de Agamêmnon.
AgamêmnonG.B. Tiepolo, S.XVIII ▪ Villa Valmarana, Vicenza, Itália
Como temos certeza disso, se o seu nome não foi claramente dito? Nós, pobres mortais, longe no tempo e no espaço — real e mítico — daqueles acontecimentos, temos que nos desdobrar para tentar saber de quem o poeta fala, buscando descobrir quem é o Atrida, senhor dos heróis, cujo nome só será inquestionavelmente citado no verso 25. No entanto, para o público a quem o poema se destinava, os epítetos eram bastante claros, devido à notoriedade do personagem Agamêmnon, que vem de uma antiga oralidade, suplantando, de longe, o poder e o prestígio de Menelau, seu irmão, a quem Homero concede o epíteto de pastor das tropas (ποιμήν λαῶν).
MenelauG. Tischbein, 1816 ▪ Coleção: Großherzogliches Schloss Eutin
Não se trata aqui de especular se Haroldo de Campos conhecia ou não o contexto e a estrutura em que o termo foi empregado, no texto original. Acredito que conhecia. O que posso afirmar é que a tradução foi produto de uma escolha dirigida. E eu diria uma má escolha, perdoem-me a ousadia. Como se sabe, Haroldo de Campos optou por traduzir o hexâmetro grego, medida utilizada no poema épico, em versos alexandrinos. Esclareço que não basta o verso ter doze sílabas para ser alexandrino. Para que assim se considere, o dodecassílabo tem que apresentar uma cesura, na sexta sílaba, que o divide ao meio, chamada tecnicamente hemistíquio (meio verso). Assim, a tradução do hexâmetro dactílico homérico — Ἀτρεΐ/δης τε ἅ/ναξ ἀν/δρῶν καὶ /δῖος Ἀ/χιλλεύς/ — não poderia ser, dentro dos padrões estabelecidos por Haroldo de Campos, para a sua tradução,
O A/trei/de,/ se/nhor/ de he/róis,/ e o/ di/vi/no A/qui/les
porque, apesar de ter doze sílabas, a cesura não recai na 6ª sílaba, mas na 7ª. Haroldo de Campos preferiu, portanto, a tradução abaixo, por caber nos seus propósitos poéticos, mesmo que, assim procedendo, diminua o impacto do verso homérico, pelo simples fato de que chefe de homens qualquer um pode ser, senhor dos heróis, não:
O A/trei/de,/ che/fe/ de ho/mens,/ e o/ di/vi/no A/qui/les
A disputa entre Agamemnom e AquilesG.B. Gaulli, 1690 ▪ Musée d'Oise, Beauvais, França
Não se trata de um fato isolado, contudo. Devido ao espaço, ficarei apenas em mais dois exemplos, ambos no Canto II, conhecido como “O Catálogo das naus e dos heróis”. Homero dedica um grande número de versos para os Aqueus (versos 484-767), enquanto para os Troianos, sob o comando de Heitor, um número muito menor (versos 815-877).
No caso dos Aqueus, que seguiram para Troia através do Mar Egeu, o poeta diz o número de naus que cada povo leva, seu comandante e os seus principais heróis. Os povos conduzidos por Eurípilo, oriundos de Ormênia, de Astéria, da fonte Hipereia, de Titânio, levam consigo 40 naus, mas, na tradução de Haroldo de Campos, vemos apenas 30. Qual a razão da subtração de 10 naus? A mesma que já tivemos na troca de senhor dos heróis por chefe de homens: quarenta não caberia no metro escolhido por Haroldo de Campos, o dodecassílabo alexandrino (verso 737):
Muitos podem achar irrelevante trocar 40 (τεσσαράκοντα) por 30 (τριήκοντα), o número das naus dos Epeios (versos 617-624). Contudo, mesmo que fosse o inverso, 30 por 40, seria uma infidelidade ao texto homérico, não pelo fato de que
TrirremesHutchinson's, 1915
o tradutor deva ser obrigado a fazer uma tradução literal, mas porque fere a essência do significado do catálogo das naus e dos heróis, fere a sua significância, cuja simbologia ensina que quanto maior o número de naus, maior o poder. Sobretudo quando se trata de poder social. Ninguém comanda mais naus do que Agamêmnon, 100 (v. 576), cujo poder social, como senhor (ἅναξ) é indiscutível. O segundo de maior prestígio social, Nestor, senhor de Pilos, que ali se encontra na condição de conselheiro dos Atridas – Agamêmnon e Menelau –, leva consigo 90 naus (verso 601). O fato de que ambos, Agamêmnon e Nestor, têm poder social indiscutível não exclui a sua atuação como heróis: ambos vão para o campo de batalha, apesar da idade provecta de Nestor, o mais velho de todos os Aqueus, em Troia.
Continuando a argumentação, com relação ao sentido de senhor, vemos que é impossível dissociar o epíteto do sentido de poder social e bélico, daí o ἅναξ ἀνδρῶν, da referência inicial a Agamêmnon. Por isso, não é possível ele ser titulado apenas como rei. Conforme já afirmamos, ele é o rei que comanda todos os reis, alçado por Zeus a uma condição distinta e elevada (ἐκπρεπής, ἔξοκος, versos 482-3), entre muitos, incluindo os inúmeros heróis. O Atrida, no entanto, pode ser chamado metaforicamente pastor das tropas,
Máscara mortuária de Agamêmnon (atr.), descoberta em Micenas (Grécia), em 1876 ▪ Museu Arqueológico Nacional, Atenas.
mas não rei, como na tradução da passagem por Haroldo de Campos, no verso 773. Um rei não comanda, necessariamente, um exército; um pastor das tropas, sim. A consequência de uma tradução que prioriza o metro – e um metro estranho ao mundo grego — é a destruição de um contexto histórico-mítico, banalizando o texto original. Os fatos aqui apresentados se circunscrevem a 3 versos, a Ilíada tem cerca de 15000...
Em suma, direi que a tradução é uma possibilidade, cujos limites estão entre o traduzível e o desejável. O traduzível é o que se tem para o momento; o desejável é o que se gostaria de expressar, respeitando-se as muitas exigências durante o trajeto, dentre elas o contexto e a estrutura, de modo a não soar anacrônico, banal ou de um preciosismo que não tem lugar no texto de partida. Não é o tradutor, portanto, o guia da tradução (trans+duco), mas o texto de origem, com todos as suas nuances. Guia que vai na frente, conduzindo, como sugere o verbo latino duco, ducĕre. Vejo a tradução como a retirada das várias camadas de uma cebola, com um simples detalhe: até atingir o seu cerne, o tradutor já derramou muitas lágrimas.