O escritor Manoel Lobato (11.12.1925—25.07.2020) foi meu correspondente por mais de 40 anos. Suas cartas, enviadas mais de duas v...

A vida e a morte

morte descrenca vazio existencial velhice
 
O escritor Manoel Lobato (11.12.1925—25.07.2020) foi meu correspondente por mais de 40 anos. Suas cartas, enviadas mais de duas vezes por semana, às quais eu respondia religiosamente, eram datilografadas porque nunca se interessou em utilizar um computador que havia ganho (evite-se o arcaísmo "ganhado”) do musicólogo e também escritor Holbein Menezes, morto em fevereiro de 2024, aos 99 anos. Deixava o PC
morte descrenca vazio existencial velhice
Manoel Lobato ▪ 1925—2020
ainda embalado em seu escritório, na sua casa no bairro Sagrada Família. Suas cinco mil crônicas, quase sempre informativas, publicadas no jornal O Tempo, de BH, eram enviadas por fax, igualmente datiloscritas.

Tenho todos os seus livros, devidamente autografados, desde o primeiro, de contos, chamado Garrucha 44 que, só por ter capa vermelha, foi queimado em praça pública quando ocorreu a revolução de 1964. Seguiu-se o romance Mentira dos Limpos, escrito quando ainda morava em Vitória. Mudou-se logo depois para BH, onde comprou uma farmácia localizada perto da rodoviária. Numa de suas cartas (tenho muitas delas arquivadas, infelizmente não todas), escreveu-me, comentando desolado as deficiências próprias da sua idade. E preocupou-me com um apelo final: “Ensine-me a aceitar meu resto de vida. Ajude-me a compreender que a morte não dói.”

morte descrenca vazio existencial velhice
morte descrenca vazio existencial velhice
morte descrenca vazio existencial velhice
morte descrenca vazio existencial velhice
morte descrenca vazio existencial velhice
morte descrenca vazio existencial velhice
morte descrenca vazio existencial velhice
morte descrenca vazio existencial velhice

A morte talvez doa, até antes de acontecer, por ser o ponto final de tudo, o retorno absoluto à eternidade do nada. Acho que a morte, mais do que o fim da vida, é a negação do sentido que a vida poderia ter. O que aprendemos, o que vivemos, o que não deixamos registrado de alguma forma se vai para sempre sem retorno, sem possibilidade de recuperação. Talvez até mesmo o que deixamos registrado se perca ao longo do tempo. O homem acredita numa outra vida porque não consegue aceitar a morte. Como diria Augusto dos Anjos, na segunda parte de seu poema “As cismas do destino”: “Morte, ponto final da última cena / forma difusa da matéria imbele. / Minha filosofia te repele, / meu raciocínio enorme te condena.” Não sei exatamente o que ele quis dizer com “forma difusa da matéria imbele”, mas sei que ele revela não entender o significado da morte.

morte descrenca vazio existencial velhice
GD'Art
Acho que a trilogia do provérbio árabe tem algum valor, embora relativo: é preciso que o homem plante uma árvore, publique um livro e tenha um filho para garantir postumamente, ainda que por pouco tempo, a marca de sua passagem pela vida. A árvore pode ser cortada; o filho, ainda que não morra cedo, antes do pai, logo esquecerá o nome dele e não deixará essa tarefa aos seus descendentes. Que trineto ou tetraneto hoje se lembra pelo menos do nome do seu trisavô ou tetravô (“tataravô”)?... E o livro, se for fruto de inspiração literária, cairá na vala comum da literatura, fazendo companhia às obras de Madeira de Freitas ou de Coelho Neto... Se for um livro científico, cedo ficará defasado, graças aos avanços rápidos da ciência
morte descrenca vazio existencial velhice
GD'Art
que desmentem hoje o que Newton escreveu ontem e desmentirão amanhã o que Einstein provou hoje... Afinal, para a ciência, tudo se passa como se fosse verdade o que ela diz, até que outra verdade melhor ou menos pior apareça. Afinal, o papel da ciência não é o de revelar verdades, mas o de corrigir seus erros...

É cometendo erros que a gente aprende a errar menos. A experiência não é mais do que uma longa sequência de erros que vão calejando a alma e ensinando a gente a suportar melhor a própria fraqueza ou incompetência. A morte é apenas o resultado do último erro que cometemos... Ainda que seja o grande erro que todos praticamos ao aguentar a nossa vida besta.

Eu não soube o que dizer ao Manoel Lobato em resposta ao seu apelo sofrido. Não só porque também sou um velho. Mas também porque é impossível enganar alguém, tentando ajudá-lo a compreender a grande mentira da vida.

Lamento não ter podido animá-lo. Sei apenas que o que lhe disse em resposta não terá sido um consolo. A morte dói muito. Mas é na velhice que a vida dói muito mais.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também