Cedi o meu espaço, nesta semana, para um amigo escritor, Earth Blair, inglês radicado no Brasil, que me pediu para divulgar trechos de um romance que ele está escrevendo, no intuito de testar a recepção. Como ele me autorizou, reproduzo aqui o que disse a ele: acho muito difícil a aceitação da sua narrativa, porque a considero demasiadamente distanciada da realidade, ainda que a criação literária não precise ter qualquer compromisso com os acontecimentos do mundo real.
São oito pequenos capítulos, possíveis balões de ensaio para a composição do romance, que deixo para a apreciação dos leitores.
I. Metas e Produções
A tarefa de W. era retificar os números originais, fazendo-os corresponder aos resultados de fato obtidos. Em fevereiro último, o Ministério da Pujança fizera publicamente a promessa (no linguajar oficial: “assumira o compromisso categórico”) de não promover nenhum corte na ração de chocolate no decorrer de 2034. Na verdade, como W. já sabia, no fim daquela semana a ração de chocolate seria reduzida de trinta para vinte gramas. Bastava substituir a promessa original pela advertência de que a ração de chocolate provavelmente sofreria uma redução em abril.
Esse processo de alteração contínua valia não apenas para jornais como também para livros, periódicos, panfletos, cartazes, folhetos, filmes, trilhas sonoras, desenhos animados, fotos – enfim, para todo tipo de literatura ou documentação que pudesse vir a ter algum significado político ou ideológico. Dia a dia e quase minuto a minuto o passado era atualizado. A história não passava de um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quanta fosse necessário.
Tratava-se apenas de substituir um absurdo por outro. Quase todo o material com que lidavam ali era desprovido da mais ínfima ligação com o mundo real – faltava até o tipo de ligação contido numa mentira deslavada. As projeções do Ministério da Pujança, por exemplo, indicavam que a produção trimestral de botas chegaria a cento e quarenta e cinco milhões de pares. A produção efetiva ficara em sessenta e dois milhões. Ao reescrever as estimativas, porém, W. baixara o número para cinquenta e sete milhões de pares, para dessa forma abrir espaço para as costumeiras declarações de que a cota de produção fora superada. De todo modo, os sessenta e dois milhões de pares não se aproximavam mais da verdade, do que os cinquenta e sete milhões ou os cento e quarenta e cinco milhões.
Era bem provável que nem um mísero par de botas tivesse sido produzido. Mais provável ainda era que ninguém soubesse quantos pares haviam sido produzidos, nem fizesse questão de saber. O que se sabia sem sombra de dúvida era que todos os trimestres uma quantidade astronômica de botas era produzida no papel, enquanto possivelmente metade da população da Oceânia andava descalça pelas ruas. E assim acontecia com todos os tipos de fatos documentados, importantes ou não. Tudo ia empalidecendo num mundo de sombras em que, por fim, até mesmo o ano em que estavam se torna incerto.
II. A Novafala
Estamos dando os últimos retoques na língua – para que ela fique do jeito que há de ser quando ninguém mais falar outra coisa. Depois que acabarmos, pessoas como você serão obrigadas a aprender tudo de novo. Tenho a impressão de que você acha que nossa principal missão é inventar palavras novas. Nada disso! Estamos destruindo palavras – dezenas de palavras, centenas de palavras todos os dias. Estamos reduzindo a língua ao osso. A Décima Primeira Edição não conterá uma única palavra que venha a se tornar obsoleta antes de 2050. Que coisa bonita, a destruição de palavras!
Você, W., não compreende a beleza da destruição de palavras. Você sabia que a Novafala é a única língua do mundo cujo vocabulário encolhe a cada ano? Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o âmbito do pensamento? No fim teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo. Todo conceito de que pudermos necessitar será expresso por apenas uma palavra, com significado rigidamente definido, e todos os seus significados subsidiários serão eliminados e esquecidos. Menos e menos palavras a cada ano que passa, e a consciência com um alcance cada vez menor. A revolução estará completa quando a linguagem for perfeita. A Novafala é o Socing, e o Socing é Novafala. Alguma vez lhe ocorreu,
W., que lá por 2050, no máximo, nem um único ser humano vivo será capaz de entender uma conversa como a que estamos tendo agora?
Lá por 2050 – ou antes, talvez – todo conhecimento real da Velhafala terá desaparecido. Toda a literatura do passado terá sido destruída. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron existirão somente em suas versões em Novafala, em que, além de transformados em algo diferente, estarão transformados em algo contraditório com o que eram antes. A literatura do Partido será outra. Os slogans serão outros. Como podemos ter um slogan como ‘Liberdade é escravidão’ quando o conceito de liberdade for abolido? Todo o clima de pensamento será diferente. Na realidade não haverá pensamento tal como o entendemos hoje. Ortodoxia significa não pensar – não ter necessidade de pensar. Ortodoxia é inconsciência.
Um dia desses, pensou W., assaltado por uma convicção profunda, Syme será vaporizado. É inteligente demais. Vê as coisas com excessiva clareza e é franco demais quando fala. O Partido não gosta desse tipo de gente. Um dia ele vai desaparecer. Está escrito na cara dele.
III. Moradias e Militantes
Era a sra. Parsons, mulher de um vizinho de andar. (‘Sra.” Era uma forma de tratamento pouco favorecida pelo Partido – a ideia era chamar todo mundo de “camarada” –, porém com certas mulheres seu uso era quase instintivo.) Ela devia ter uns trinta anos, mas aparentava muito mais. Dava a impressão de ter poeira acumulada nas rugas do rosto. Os apartamentos das Mansões Victory eram antigos, haviam sido construídos em 1930, por volta disso, e estavam caindo aos pedaços. Os consertos que os moradores não conseguiam fazer sozinhos precisavam ser autorizados por comitês inacessíveis, capazes de retardar por dois anos uma singela vidraça.
O apartamento dos Parsons era maior que o de W., e sua esqualidez era de outro tipo. Tudo tinha um aspecto surrado, maltratado, como se um animal grande e violento tivesse acabado de passar por ali. As paredes ostentavam bandeiras vermelhas da Liga da Juventude e dos Espiões e um pôster em tamanho natural do G. I.
Parsons trabalhava com W., no Ministério da Verdade. Era um sujeito gordinho, mas diligente, de uma estupidez paralisante, um amontoado de entusiasmos imbecis – um daqueles burros de carga absolutamente submissos e dedicados de quem dependia, mais até que da Polícia das Ideias, a estabilidade do Partido.
IV. O inalterável passado sempre alterado ou vá ler História...
O inimigo do momento sempre representava o mal absoluto, com o resultado óbvio de que todo e qualquer acordo com o passado ou futuro com ele era impossível. Se o Partido era capaz de meter a mão no passado e afirmar que esta ou aquela ocorrência jamais acontecera – sem dúvida isso era mais aterrorizante do que a mera tortura ou a morte.
O Partido dizia que a Oceânia jamais fora aliada da Eurásia. Ele, W. Smith, sabia que a Oceânia fora aliada da Eurásia não mais de quatro anos antes. Mas em que local existia esse conhecimento? Apenas em sua própria consciência que, de todo modo, em breve seria aniquilada. E se todos os registros contassem a mesma história –, a mentira tornava-se história e virava verdade. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”, rezava o lema do Partido. E com tudo isso o passado, mesmo com sua natureza alterável, jamais fora alterado. Tudo o que fosse verdade agora fora verdade desde sempre, a vida toda. Muito simples. O indivíduo só precisava obter uma série interminável de vitórias sobre a própria memória. “Controle da realidade”, era a designação adotada. Em Novafala: “duplipensamento”.
W. largou os braços ao longo do corpo e pouco a pouco voltou a encher os pulmões com ar. Sua mente deslizou para o labiríntico mundo do duplipensamento. Saber e não saber, estar consciente de mostrar-se cem por cento confiável
ao contar mentiras construídas laboriosamente, defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma à outra, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas; recorrer à lógica para questionar a lógica, repudiar a moralidade dizendo-se um moralista, acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo o que fosse preciso esquecer, depois reinstalar o esquecido na memória no momento em que ele se mostrasse necessário, depois esquecer tudo de novo sem o menor problema: e, acima de tudo, aplicar o mesmo processo ao processo em si. Esta, a última sutileza: induzir conscientemente a inconsciência e depois, mais uma vez, tornar-se inconsciente do ato de hipnose realizado pouco antes. Inclusive entender que o mundo em “duplipensamento” envolvia o uso do duplipensamento.
V. Grasnado da Militância
W. acabara com sua porção de queijo e pão. Virou-se um pouco de lado na cadeira para tomar seu café. Na mesa à esquerda o homem de voz estridente continuava falando sem dar trégua aos companheiros. W. conhecia o homem de vista, mas só sabia que ocupava um cargo importante no Departamento de Ficção. Era um homem de uns trinta anos, de pescoço musculoso e grande boca móvel. Jogava a cabeça um pouco para trás e, devido ao ângulo em que estava sentado, seus óculos refletiam a
luz e punham diante de W. dois círculos opacos no lugar dos olhos. O detalhe um tanto horrível da cena era o fato de ser praticamente impossível distinguir uma só palavra na torrente de ruídos que jorrava da boca daquele homem. Em uma única ocasião Winston entendeu uma frase – “completa e total eliminação do goldsteinismo” –, cuspida a grande velocidade e, aparentemente, formando um só bloco, como uma linha de tipos soldados uns aos outros. O restante era mero ruído, um grasnado ininterrupto. Isso não impedia, porém, que, mesmo sem conseguir escutar o que o homem dizia, você se assegurasse do sentido geral de suas palavras. Ele devia estar denunciando Goldstein e exigindo medidas mais severas contra os criminosos do pensamento e os sabotadores, devia estar lançando vitupérios contra as atrocidades do exército Eurasiano, devia estar enaltecendo o G. I. ou os heróis do fronte malabarense – dava tudo no mesmo. Fosse o que fosse, de uma coisa você podia estar seguro: cada palavra de seu discurso era pura ortodoxia, puro Socing. Enquanto fitava o rosto sem olhos com aquele maxilar que se mexia incansavelmente para cima e para baixo, W. teve a estranha sensação de que aquele não era um ser humano de verdade, mas alguma espécie de simulacro. O que falava não era o cérebro do homem, era sua laringe. O material que ele produzia era formado de palavras, contudo não era fala no sentido lato: era um ruído emitido sem a participação da consciência, como o grasnado de um pato.
“Tem uma palavra em Novafala” disse Syme, “que não sei se você conhece. Patofala, grasnar feito um pato. É uma dessas palavras interessantes com dois sentidos contraditórios. Quando aplicada a um adversário, é ofensa; aplicada a alguém com quem você concorda, é elogio”. Syme será vaporizado, sem sombra de dúvida, pensou Winston de novo.
VI. A Beleza Muar do Duplipensamento
Espera-se que um membro do Partido não tenha emoções privadas nem momentos de suspensão do entusiasmo. Supõe-se que ele viva num frenesi contínuo de ódio aos inimigos estrangeiros e aos traidores internos, de júbilo diante das vitórias e de autodepreciação diante do poder e da sabedoria do partido.
Criminterrupção significa a capacidade de estacar, como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso. O conceito inclui a capacidade de não entender analogias, de deixar de perceber erros lógicos, de compreender mal os argumentos mais simples, caso sejam antagônicos ao Socing,
e de sentir-se entediado ou incomodado por toda sequência de raciocínio capaz de enveredar por um rumo herético. Em suma, criminterrupção, significa burrice protetora. Mas burrice não basta. Ao contrário, a ortodoxia em sentido pleno exige um controle tão absoluto sobre os próprios processos mentais quanto o do contorcionista sobre o próprio corpo. A sociedade oceânica repousa, em última análise, na crença de que o G. I. é onipotente e o Partido infalível. Mas, dado que na realidade o G. I. não é onipotente e o Partido não é infalível, existe a necessidade de adotar-se o tempo todo uma flexibilidade incessante no tratamento dos fatos. A palavra-chave é negribranco. Como tantas outras palavras em Novafala, ela tem dois sentidos mutuamente contraditórios. Aplicada a um adversário, alude ao hábito que esse adversário tem de afirmar desavergonhadamente que o negro é branco, em contradição com os fatos óbvios. Aplicada a um membro do Partido, manifesta a leal disposição de afirmar que o negro é branco sempre que a disciplina do Partido o exigir. Mas significa ao mesmo tempo a capacidade de acreditar que o negro é branco e, mais, de saber que o negro é branco, e de esquecer que algum dia julgou o contrário. Isso exige uma alteração contínua do passado, tornada possível pelo sistema de pensamento que realmente abrange tudo o mais e que é conhecido em Novafala como duplipensamento.
VII. O Poder, Ah! O Poder...
O Partido deseja o poder exclusivamente em benefício próprio. Não estamos interessados no bem dos outros; só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade:
só o poder pelo poder, poder puro. [...] O objetivo do poder é o poder. O poder real, o poder pelo qual devemos lutar dia e noite, não é o poder sobre as coisas, mas o poder sobre os homens.
Poder é infligir dor e humilhação. Poder é estraçalhar a mente humana e depois juntar outra vez os pedaços, dando-lhes a forma que você quiser. E então? Está começando a ver que tipo de mundo estamos criando? Exatamente o oposto das tolas utopias hedonistas imaginadas pelos velhos reformadores. Um mundo de medo e traição e tormento, um mundo em que um pisoteia o outro, um mundo que se torna mais e não menos cruel à medida que evolui. O progresso, no nosso mundo, será o progresso da dor. As velhas civilizações diziam basear-se no amor ou na justiça. A nossa se baseia no ódio. No nosso mundo as únicas emoções serão o medo, a ira, o triunfo e a autocomiseração. Tudo o mais será destruído – tudo. Já estamos destruindo os hábitos de pensamento que sobreviveram da época anterior à Revolução. Cortamos os vínculos entre pai e filho, entre homem e homem, e entre homem e mulher. [...] A procriação será uma formalidade anual, como a renovação do carnê de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistas já estão trabalhando nisso. A única lealdade será para com o Partido. O único amor será o amor ao G. I. O único riso será o do triunfo sobre o inimigo derrotado. Não haverá arte, nem literatura, nem ciência. quando formos onipotentes, não precisaremos da ciência. Não haverá distinção entre beleza e feiura. Não haverá curiosidade, nem deleite com o processo da vida. Todos os prazeres serão eliminados. Mas sempre – não se esqueça disto, Winston –, sempre haverá a embriaguez do poder, crescendo constantemente e se tornando cada vez mais sutil. Sempre, a cada momento, haverá a excitação da vitória, a sensação de pisotear o inimigo indefeso. Se você quer formar uma imagem do futuro, imagine uma bota pisoteando um rosto humano – para sempre.
Quanto mais poderoso for o partido, menos tolerante será. Quanto mais fraca a oposição, tanto mais severo será o despotismo. Será que você não entende que a morte do indivíduo não é morte? O PARTIDO É IMORTAL.
VIII. Novafala ou arte de articular 3 ou 4 grasnados exigidos pelo Partido
Todas as palavras cujo sentido giravam em torno dos conceitos de liberdade e igualdade, por exemplo, estavam contidas na palavra Crimepensar. Teria sido perigoso lidar com sentidos mais precisos. O que se exigia de um membro do Partido era uma visão similar àquela do hebreu antigo, que, embora não soubesse muito mais que isso, sabia com certeza que, fora a sua, todas as outras nações adoravam “deuses falsos”.
Era-lhe desnecessário saber que esses deuses se chamavam Baal, Osíris, Moloque, Astarote e que tais. Com toda a probabilidade, quanto menos soubesse a respeito deles, mais convicta a sua ortodoxia. Em Novafala era praticamente impossível fazer um pensamento herege ultrapassar a constatação de que ele era uma heresia; inexistiam as palavras para avançar mais que isso.
Um exemplo era Papaproleta, termo que servia para designar os noticiários fraudulentos e os eventos e espetáculos abomináveis que o Partido oferecia para o divertimento das massas.
No âmbito da vida cotidiana, era sempre ou por vezes necessário pensar antes de falar, porém um membro do Partido instado a fazer um julgamento político ou ético devia ser capaz de emitir opiniões corretas com o automatismo com que uma metralhadora dispara uma saravaida de balas. Seu treinamento o preparava para isso, o idioma lhe fornecia um instrumental praticamente infalível e a textura das palavras, com sua sonoridade rude e certa deselegância intencional em conformidade com o espírito do Socing, prestava um auxílio adicional ao processo.
Para isso contribuía também a limitada gama de palavras que o falante tinha à disposição. Em comparação com o inglês atual, o vocabulário da Novafala era minúsculo, e havia uma busca incessante de mecanismos que permitissem restringi-los ainda mais. De fato, se havia algo que diferenciava a Novafala de quase todas as outras línguas era o fato de que, em vez de se expandir, seu vocabulário encolhia a cada ano. Toda redução era um ganho, de vez que quanto menor fosse a possibilidade de escolha, mais tênue seria a propensão ao pensamento. Contava-se chegar um dia a falas articuladas que emergissem da laringe sem nenhuma participação dos centros mais elevados do cérebro. Tal objetivo era francamente reconhecido por meio do termo Patofala, que significava “grasnar como um pato”. Como várias outras palavras do vocabulário B, o sentido de Patofala era ambivalente. Se as opiniões grasnadas fossem ortodoxas, o termo só implicava elogios, e quando a imprensa dizia que determinado membro do Partido era um orador Patofalosoduplomais, isso era visto como uma calorosa e significativa manifestação de apreço...