“Casalzinho lindo”, observava, costumeiramente, dona Tereza, a costureira. “Esses dois nasceram um para o outro”, profetizava dona Al...

A gente é para o que nasce

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“Casalzinho lindo”, observava, costumeiramente, dona Tereza, a costureira. “Esses dois nasceram um para o outro”, profetizava dona Alta, viúva de grande intimidade com os santos e os ritos católicos pois fabricante das hóstias que iam à boca e ao espírito daquele povo. Eu e parte dos meus amigos, por volta dos 10 ou onze anos, comíamos aquelas sobras. Tinham gosto de farinha crua e não se prestavam à mínima comunhão enquanto não merecessem as bênçãos do vigário nem entronizadas fossem no nicho do
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altar principal de onde ressurgiam, nas missas dos domingos, ao lado de um cálice de vinho.

“Vinho nada. Padre não bebe. Isso é suco de uva”, jurava Paulinho, menino de mente pura. Foi dele que me lembrei quando, já adulto, tive uma discussão com parentes evangélicos acerca do teor alcoólico daquele vinho do primeiro milagre. “Não continha uma gota de álcool”, assim decidira um primo querido.

“Pois contam que era vinho dos bons a que nada faltava, apesar de surgir daqueles seis potes d’água com capacidade mínima de 80 litros, cada um”, respondi. E ele, indignado: “Quem conta isso?”. Então, eu o fiz ler João. Vinho tão bom que o mestre de cerimônia das Bodas de Caná, na Galileia, cumprimentou, assim, o noivo: “É costume servir primeiro o bom vinho e, somente depois, quando os convidados já estão quase embriagados, servir o de pior qualidade. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora”. Quem desmentiria João? Eu, não. De todo modo, perdoem meus desvios. E tomem isso como uma conversa de varanda, um papo de rede com idas e voltas.

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“Dois bonequinhos”, dizia, também, do jovem casal, dona Laura, a hoteleira. Nos meus poucos anos, eu tinha a mais absoluta certeza de que o homem da Galileia não faltaria à festa do casório daqueles dois, se por aqui ainda andasse em carne e osso.

Casamento marcado, os céus pareciam conspirar para sua realização. Ele, a quem o pai já havia reservado uma parte da fazenda, fora aprovado em seleção do Banco do Brasil para uma agência sertaneja. Que maravilha. Os futuros sogros quase soltaram fogos. Imaginem o que significava casar uma filha com um bancário desses. Mas entendam que eram outros os tempos e outros os salários pagos pelo banco criado por Dom João VI.

Belos, mesmo, aquele moço e aquela moça. Namoravam a sério desde os 15 anos dele e, dela, os 14. “Dois lindos biscuits”, dizia minha mãe em referência à perfeição daqueles rostos: uns bonequinhos de massa feitos para a eternidade, abraçadinhos, em móveis de salas de visita.

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Minto. Cláudio, com ares de filósofo e do alto dos seus 20 e poucos anos, era a voz dissonante daquele imenso coro. Achava que casamento pode se desfazer até na calçada da igreja. Ninguém, segundo ele, poderia nascer com destino já traçado.

Regina, Maria e Conceição – as três moças de Campina Grande tocadoras de ganzá nas feiras livres em busca de esmolas e irmanadas, também, na cegueira congênita – tinham em seus lamentos que “a pessoa é para o que nasce”. Cláudio, que nunca soube da existência desse trio, ensinava o contrário: “Cada um faz seu destino”. Sei não... Basta ver a fama das três irmãs a partir do filme de 2005 com o qual o roteirista Maurício Lissovsky e os diretores Roberto Berliner e Leonardo Domingues as projetaram no mundo. As irmãs cegas não ficaram ricas, mas tiraram os pés da lama.


Sei, contudo, por assim ter ouvido no meu tempo de menino, que aquele noivo parou numa borracharia quando o pneu murcho interrompeu a viagem que então fazia a fim de conhecer a agência na qual iniciou a carreira vitoriosa, pois ocuparia, ao passar dos anos, uma superintendência regional no banco projetado pelo rei.

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Ali, naqueles dias e naquela ponta de rua, um cheiro bom, adocicado, aguçou-lhe a fome. E lá foi ele em direção à lanchonete instalada na calçada do borracheiro, três casas depois.

As mãos que lhe serviram um bom queijo de manteiga e a melhor pamonha que até então já experimentara (deve tê-la comido com o coração) não o encantaram menos do que aqueles olhos castanhos, aqueles lábios carnudos, aquele belo corpo de mulher. Puxou conversa, disse de onde vinha e para onde ia sem, em momento nenhum, falar da noiva e do casamento já próximo. A moça, que também o escutava visivelmente encantada, alegrou-se ao ouvir dele a promessa das paradas semanais em seu balcão, com ou sem pneu furado.

A noiva logo percebeu que aquele relacionamento esfriava. E esfriava, mesmo, no exato espaço de tempo em que, no caminho do noivo, as pamonhas se faziam mais quentes, fartas e saborosas. Ele dera para diminuir os retornos a seus braços. Substituía os beijos por telegramas concisos, lacônicos. Coisas do tipo: “Muito trabalho. Fico por aqui esta semana”.

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Todos sabemos de rompimentos dolorosos, de traumas intermináveis, de prantos eternos, até de suicídios por conta disso. Mas não foi assim com o casalzinho de biscuits. Ele, sem choro, assumiu a menina da pamonha. E a ex-noiva, felicíssima, foi em pouco tempo conduzida ao altar por um Cláudio apaixonado. Inicialmente compadecidas daquela separação, as senhoras da cidade logo também se acostumaram à parelha destoante: o marido grandalhão, desengonçado, e a mulher pequenininha, linda, uma bonequinha de massa.

Conceição, Regina, Maria, vocês estão cobertíssimas de razão, estejam onde estiverem. As pessoas são, mesmo, para o que nascem.

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  1. Beleza de texto, Frutuoso. O cronista também nasceu para sê-lo. E dos bons. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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