Façamos uma pausa necessária em Camões, para retomar, em próximo texto, a análise de Os Lusíadas , com enfoque na Dedicatória do...

Sumarização e subjetividade

nelson goncalves bolero dolores sierra wilson batista jorge castro
Façamos uma pausa necessária em Camões, para retomar, em próximo texto, a análise de Os Lusíadas, com enfoque na Dedicatória do poema. Falemos de música, assunto que não está distanciado da poesia.

Escolhi para o texto sabático — como chamam meus amigos Davi e Germano — o bolero Dolores Sierra (1956), de autoria de Wilson Batista e Jorge de Castro, imortalizado na voz de Nélson Gonçalves,
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um dos maiores intérpretes do Brasil. Para podermos acompanhar a rápida análise, transcrevo abaixo a letra música, atribuindo-lhe uma pontuação que imagino ser a que dá melhor sentido à letra. Ressalto que, na ausência da música, a pontuação é necessária. Quando ouvimos a canção, sobretudo na voz de um intérprete como Nélson Gonçalves, as pausas e inflexões nos dão o sentido necessário para o seu entendimento. Segue a letra:

Dolores Sierra, Vive em Barcelona, Na beira do cais. Não tem castanholas E faz companhia A quem lhe der mais. Nasceu em Salamanca, Seu pai lavrador, Veio a maioridade. Como quem nasce na roça, Tem sempre a ilusão De viver na cidade. Sua mãe chorou, No dia em que ela partiu, Pra conhecer Dom Pedrito, Que prometeu e não cumpriu. Com frio e com sede, Só, na sarjeta, Sorriu para um homem E ganhou a primeira peseta. O navio apitou, paguei a despesa E a história se encerra. Adeus, Barcelona, adeus, Adeus, Dolores Sierra!

Referi-me no título a um processo narrativo conhecido, o sumário, e a uma qualidade intrínseca à Arte, a subjetividade. O sumário é um recurso para adiantamento de uma narrativa que já se conhece, funcionando também como uma motivação, digamos, para que o leitor vá em busca de preencher as lacunas
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do que foi apresentado, com a leitura minuciosa do texto objeto do sumário.

No caso da subjetividade, que se utiliza do sintetismo e de estruturas elípticas, o texto está ali, apenas escondido nas entrelinhas do que foi dito, funcionando como interdito. Às vezes interdito porque não se quer dizer claramente ou não se deve dizer, por seguir o decoro ou por temer a censura. Em ambos os casos – a sumarização e a subjetividade –, o texto vê-se reduzido a um entendimento mínimo, com o primeiro recurso funcionando como indicação de leitura, por haver um segundo texto que está ausente do texto principal. Já o segundo recurso atua como reflexão de leitura, pelo fato de que o texto está ali de forma subjacente, cabendo ao leitor ligar as pontas do que se diz e preencher as lacunas com o resultado de seu raciocínio.

O bolero Dolores Sierra não é um texto longo, nem tem um léxico ou alguma estrutura complexa. É de uma simplicidade franciscana na sua formulação, mas exigindo do leitor/ouvinte a sua complementação, o que livra a canção da pecha da simploriedade. São 5 estrofes, com versos curtos, com uma alternância predominante entre os redondilhos menores (pentassílabos) e os redondilhos maiores (heptassílabos).

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A maneira como foi estruturado o bolero é de chamar a atenção, tendo em vista a consciência do compositor com relação a contar uma história que, ao mesmo tempo, seja rápida, impactante, mas que seja sóbria o suficiente para não entrar em detalhes desnecessários, compreendendo que mais importante do que dizer algo é saber como dizê-lo. Eis o segredo do escrever, artisticamente ou não, mas sobretudo quando se trata de Arte.

A história se inicia in medias res, com a ação já bem adiantada e próxima do seu final, no intervalo de poucas horas entre alguém, um embarcadiço, talvez, que desce de um navio, no porto de Barcelona,
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e passa alguns momentos em companhia da personagem Dolores Sierra, frequentadora habituée do ambiente, por razões óbvias. É o que diz a primeira estrofe.

Na segunda estrofe, há um corte na linearidade da narrativa, para, em flash-back, trazer à tona a história de Dolores Sierra: onde nasceu, quem é o seu pai, o que acontece ao atingir a maioridade, a ilusão da vida na cidade grande, semelhante a Conceição, outro bolero famoso; a dor da mãe na sua partida, a desilusão, diante da promessa não cumprida por aquele amor ideal. São três estrofes, cheias de elipses mentais, como disse Manuel Bandeira, em “Última Canção do Beco”, revelando a inexperiência da moça da “roça” –, afinal ela é Sierra –, com o espertalhão da “cidade”, de uma classe social superior à sua, rico e mimado, como expressa o tratamento que lhe é dado: Dom Pedrito. É o caso clássico e recorrente da moça ingênua enganada pela conversa do jovem rico e aproveitador.

Até então, vê-se a origem humilde de Dolores Sierra, origem de roceira, como diz o boleiro, mas através de uma sutil oposição entre Salamanca e a condição de lavrador de seu pai. Ela nasceu não da Salamanca de brilho cultural, oriundo da respeitada Universidade, mas na roça, não tendo tido oportunidade de frequentar estudos superiores. Em duas estrofes, está posto o drama,
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portanto, da personagem, que se enche de ilusão com a dita cidade grande. Ilusão que a levará à catástrofe ou reviravolta, como se diz na tragédia grega, jogando-a na miséria da prostituição: no cais, ela não é dançarina de flamenco — “não tem castanholas” —, mas prostituta — “e faz companhia a quem lhe der mais”.

A última estrofe retoma o fio da linearidade narrativa, com o verso mais longo do bolero – “O navio apitou, paguei a despesa” –, a que se segue o fecho da narração – “a história se encerra” –, acelerando o final por não haver nada mais a dizer. Trata-se de um primor de sintetismo, com 3 orações coordenadas curtas, cujo ritmo acelerado e objetivo não é apenas porque o navio está partindo, mas porque aquilo que foi dito, de modo sucinto, é mais do que suficiente para o leitor/ouvinte, afinal de contas, intelligenti pauca, dizia o latim: para o inteligente, poucas coisas. Não falta à narrativa, sequer um epílogo – “Adeus, Barcelona, adeus!/ Adeus, Dolores Sierra!”.

O que temos, em suma, é uma narrativa sintética, densa, dramática, por falar da dor humana, daí a personagem chamar-se Dolores, que se aproveita de muitas das técnicas narrativas, para se contar uma boa história: a apresentação do personagem, no tempo presente do narrador;
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a volta ao passado para fazer o contraponto com o presente, muito mais do que para simplesmente contar a sua história; o retorno ao tempo presente da narração, que se acelera no seu término, por não haver mais necessidade de detalhes, com direito a um epílogo.

Há quem possa ver aí um script que, mesmo eficazmente preenchido, não causaria o impacto estético igual, tendo em vista a presentificação que a música nos traz, em poucos minutos de sua interpretação. Além da velocidade com que se conta a história, com orações curtas, em que predomina a coordenação, expressas à maneira de flashes, revelando cenas que trazem em si uma concatenação voluntariamente oculta, que impacta o leitor/ouvinte e torna esse bolero imorredouro, há uma economia narrativa que se impõe: tudo o que se disser a mais é pura excrescência. Como se diz, popularmente, com relação a algo que é excelente – se melhorar, estraga.

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  1. Eu nem conhecia Dolores, mas gosto muito de Wilson Batista- Eu sou assim, quem quiser gostar de mim
    Eu sou assim Kubi

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  2. Excelente texto, Mestre! Informativo, sonoro e musical!

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  3. Análise cirúrgica da canção, que só um mestre pode fazer. Parabéns, Milton. Francisco Gil Messias.

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