— Que você faz com um pão velho e duro como esse, que não dá pra comer? – perguntei a Da Luz. — Nunca tive esse problema, seu Luiz, ...

Relendo o coronel José Rufino

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— Que você faz com um pão velho e duro como esse, que não dá pra comer? – perguntei a Da Luz.

— Nunca tive esse problema, seu Luiz, mas dá pra fazer farinha de pão. Também só compro na conta, nunca deu pra sobrar.

Da Luz ganhava o salário, o vale-transporte e uns trocos. Ouvia as queixas da patroa por conta da alta abusiva dos preços, mas, recostada à pia, sempre de costas para a conversa, nos afazeres entre fogão, pia, geladeira e o armário das compras.

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Chegava na hora, raramente saindo antes de deixar tudo pronto a tempo. Um dia se saiu com esta: — Seu Luiz, o senhor sabe me dizer onde é que conserto meu micro-ondas?

Da Luz de micro-ondas! Sufocou-me, o macarrão atado na goela, indeciso, eu esquecido por completo de que os tempos mudaram, de que a versão atual dos moradores do antigo engenho, por mais que a renda grande se concentre nos ricos (e quanto mais progresso mais concentrada) não impede que a versão operária atual ingresse ou participe do mercado, consumindo não só o fubá, a farinha, o ovo, o feijão da subsistência, como também a tevê, a geladeira, o micro-ondas, num et cetera ambicioso que não custaria a chegar ao automóvel.

Um dia, num fim de almoço, dessa vez um cabritinho guisado em que ela era mestra, sapecou-me esta surpresa: “O senhor pode avalizar um carro de segunda pra meu marido?” Sentiu imediato o meu espanto e julgando-me receoso, tentou negociar: “O senhor fica livre do vale transporte.” Não tinha como me negar: “Não, não é isso Da Luz. O vale é seu direito.”

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José Rufino de Almeida
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“Mas já parte para o automóvel?!” – indaguei calado. Da Guia morreu, o coração traiu-a. E agora, alguns anos depois, revendo o livro do mais ilustre dos coronéis do meu mundo, o letradíssimo José Rufino de Almeida, editado há trinta anos pelos filhos Antônio Augusto e Alice Almeida, lamentando as condições de vida em que terminou a opulenta geração de antigos senhores de engenho, caio em mim ajudado pela nova realidade de Da Luz.

Tem fundamento o meu espanto. Nasci numa casa de chão batido, criei-me em outra um tanto melhor que de grande só tinha o nome, as cadeiras estofadas da sala combinando com o relógio inglês numa parede e o coração de Jesus bem à vista da porta principal. Metade da sala de jantar era tomada por um caixão enorme de farinha à espera dos tropeiros do Cariri. No mais não fazia muita diferença da pobreza dos moradores, salvo pelo tamanho da casa e pela despensa. Desconhecíamos a geladeira e a própria comedoria não ia além do feijão, da farinha, da carne seca, do pirão gordo e do bacalhau, que era comida que pobre renegava, mesmo importado. Vim conhecer macarrão no internato de Campina Grande. Dormia em rede como meu pai, a cama de couro reservada à dona da casa. Não havia banheiro, salvo um cubículo para o banho de cuia da patroa. Eu e meu pai descíamos a ladeira para nos lavar num poço de água corrente, os mais confortantes de toda a minha vida.

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Não sei como está o campo hoje, pois não vejo casas, que foram trocadas pelas das pontas de rua. Mas tenho de reconhecer, frustrado na maioria dos sonhos, que o mundo é outro. Aqui na Paraíba o socorro cardiológico que é dado ao governador está aberto ao pobre. A lei do mercado, ainda que abuse da concentração e do privilégio, não pode discriminar a classe das Da Luzes. Longe, bem longe do meu tempo de sítio, quando a comunicação se resumia à pureza do cordel.

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