A palavra quase traz em si uma frustração. Como advérbio, significa algo que chegou muito próximo do alvo ou do destino, mas de fato não chegou lá. Quase! Muitas vezes a usamos com a exclamação, para acentuar o quanto se esteve perto do acontecimento feliz ou infeliz, conforme o caso. É essa mera possibilidade, eventualmente tão cheia de promessas,
que Machado de Assis explora em Quase Ministro (Editora Todavia, São Paulo, 2025), sua primeira incursão na chamada sátira política.
A obra narra a situação do deputado Martins, o qual tem de repente a casa cheia de bajuladores, face a notícia de que pode vir a ser nomeado ministro do governo. Como se vê, algo muito comum, em todo lugar, desde que o mundo é mundo. Um tema clássico, portanto, que poderia perfeitamente ser abordado no teatro grego, como tragédia ou como comédia, a depender do ângulo adotado pelo autor. A bajulação integra a natureza humana desde sempre, assim como a aversão ao fracasso, à decadência e à morte. Normalmente, os homens querem ficar próximos dos poderosos e vitoriosos, e distantes dos perdedores e moribundos. Claro que nesse quadro funesto e revelador há gradações, de modo que nele, em alguma medida, há lugar para nós todos. Talvez escapem apenas os santos, mas estes são uma outra história.
Pois então o deputado Martins se vê de repente cogitado para o ministério. Sua rotina mais ou menos tranquila cede lugar ao furacão decorrente da possibilidade, mera possibilidade de sua ascensão ao poder. Sua casa é invadida por áulicos de todas as espécies e patentes. Gente que ele conhece e desconhece, todos irmanados no desejo de agradá-lo e de servi-lo, com vistas ao promissor futuro que se anuncia. Gente que se insinua explícita ou discretamente, de modo a merecer alguma dádiva ministerial. Gente sutil e gente grosseira em busca de seus próprios interesses, disfarçados mais ou menos habilmente, pois é do vício, quando a situação exige, essa serpenteante capacidade de se apresentar como virtude. E o deputado, quase ministro, vai administrar essa repentina invasão e essa multidão de aduladores ávidos.
A genialidade do nosso Machado de Assis se revela nessas coisas. Um tema tão rico e tão universal poderia não ter sido aproveitado, mesmo estando, digamos, tão à vista do escritor, fino observador da vida política e social do Rio de Janeiro de seu tempo. Ele deve ter testemunhado ou tido notícia de muitos “deputados Martins”. A propósito, lembrei logo de Tolstói e de seu moribundo Ivan Ilitch, assunto também tão rico e universal, digno de um autor de alta estirpe.
O célebre personagem da novela russa é o contrário do deputado Martins, a despeito de se igualarem no advérbio “quase”, pois enquanto o político está quase ministro, o magistrado está quase morto. Ou seja, um está ascendendo, e isso explica o cerco dos aduladores, e o outro está descendo a ladeira da existência, e isso explica a fuga dos familiares e conhecidos. Um tem, potencialmente e abundantemente, o que oferecer e prometer; o outro, nada mais tem a ofertar, salvo a degenerescência física progressiva e o eventual mau cheiro de suas feridas. Martins e Ilitch são portanto o verso e o reverso da mesma moeda. E pode-se dizer, sem ufanismo, que o nosso Machado, ao seu modo, soube estar à altura de seu tema tanto quanto Tolstói soube estar à altura do seu.
E não posso deixar de citar o caso de José Américo de Almeida, quase presidente da República em 1937. Quem conta é Afonso Arinos de Melo Franco em suas memórias, portanto fonte fidedigníssima. Candidato com altíssima chance de ser eleito, a casa do paraibano, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, vivia tão cheia de gente que não era fácil estacionar nas imediações. Dia e noite, uma multidão a cercar aquela concreta perspectiva de poder, tal como ocorreu ficticiamente com o deputado Martins. Arinos também foi lá, em companhia de seu irmão Virgílio de Melo Franco, um dos líderes de 1930, depois rompido com Vargas. Foram não para pedir nem para bajular, mas para tratar de assuntos mais sérios. Segundo o mineiro, não foi fácil chegar até o candidato, tanta era a gente que disputava sua proximidade. E então veio o golpe de Getúlio que instaurou a ditadura do Estado Novo, e adeus eleições, e adeus candidato. Afonso Arinos mais uma vez foi visitar José Américo, este agora sem nada para oferecer a ninguém. A rua estava vazia e a casa do ex-candidato também. Até as luzes do terraço estavam apagadas, testemunhando o abandono a que o “homem de Areia” fora relegado. José Américo não era mais quase presidente e sim um completo destituído de quaisquer horizontes políticos, pelo menos no curto prazo. Virara um quase leproso.
Vê-se, portanto, com estes poucos exemplos, a riqueza literária da palavra quase. Como ela pode render na mão de um escritor de escol. Como ela rendeu nas mãos de Tolstói e de Machado de Assis. Como ela poderá ainda render na mão de outros. Nosso Dom Hélder Câmara quase ganhou o Nobel da Paz, mas não chegou lá por ingerências de alguns brasileiros. Esta é também uma história que espera ser contada, um interessante “quase” à procura de um autor.