“Eu mesmo estou colocado entre os imperecíveis que estão no Céu / Pois eu sou Ta-Miu, o Triunfante.”
Inscrição orgulhosamente proclamada no sarcófago de Ta-Miu, gato que terá pertencido a Tutmés, antigo príncipe herdeiro egípcio da Décima Oitava Dinastia.
Durante a transição do Neolítico para a Idade do Bronze, o Crescente Fértil — que abrangia as regiões da Mesopotâmia, do Levante e do Egito — era considerado o berço da agricultura.
Com o advento do plantio de sementes e a acumulação de excedentes alimentares, houve necessidade de construir grandes celeiros e depósitos de grãos, uma inovação fundamental para a sustentação
Delimitação da área historicamente conhecida como Crescente Fértil.
das primeiras sociedades sedentárias. Contudo, esse armazenamento de alimentos trouxe também uma preocupação acrescida, relacionada com a proteção contra a proliferação de roedores, como ratos e camundongos ou murganhos, que ameaçavam os estoques de provisões.
Nesse contexto, o Felis silvestris lybica, ou gato-do-mato-africano, gato-da-Núbia ou gato-da-Líbia, desempenhou um papel crucial. Numeroso em todo o Crescente Fértil, esse predador ágil e eficiente foi atraído para os assentamentos humanos pela abundância de presas. Com o passar do tempo, uma relação simbiótica estabeleceu-se naturalmente: os gatos controlavam as populações de roedores, cobras — muitas das quais eram venenosas — e escorpiões, enquanto os humanos lhes ofereciam segurança e um ambiente propício para a sua sobrevivência. Essa convivência gradual, motivada pela necessidade prática de proteção dos grãos e dos alimentos básicos, marcou o início da domesticação do gato.
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Curiosamente, embora houvesse mais do que uma espécie de gato no antigo Egito, os egípcios tinham apenas uma única palavra para felino, a onomatopeia “miu” ou “miit”, que significa literalmente “aquele ou aquela que mia”. Algumas pessoas até receberam nomes de gatos, incluindo o faraó Pami, cujo nome significava “aquele que pertence ao Gato (Bastet)”.
Figura representativa da deusa Bastet / Wikimedia
Embora comuns em todo o Crescente Fértil, seria no Egito que os gatos domésticos alcançariam um estatuto cultural singular. Por volta do segundo milénio a.C., começaram a ser associados à fertilidade, conservação, proteção e harmonia familiar, simbolizados na figura da deusa Bastet (também conhecida como Bast e Ubasti).
Representada como uma mulher com um ceptro e uma cabeça de gato, Bastet (Bast) era venerada como a protetora do lar e uma divindade ligada ao amor e à alegria. O seu culto era especialmente importante em Tell Basta, ou Bubastis (“Casa de Bastet”), na zona do Delta, onde terá existido um santuário. Foi aliás num cemitério desta cidade que, no século XIX, uma equipa de arqueólogos descobriu mais de 300 mil múmias de gatos que mereceram os mesmos ritos fúnebres que os seres humanos, tendo sido embalsamados e sepultados.
Gatos mumificados encontrados em escavações realizadas no Egito, no século XIX, pertencentes ao acervo do Museu Britânico.British Museum
O mais conhecido desses caixões pertencia a um animal de estimação, retratado como qualquer outro respeitável nobre falecido. Por volta de 1350 a.C., o príncipe Tutmés (“Nascido de Thoth”), filho mais velho do faraó Amenófis III (Amenotepe), enterrou o seu estimado felino, Ta-Miu, num caixão de calcário lindamente decorado.
Sarcófago do gato Ta-Miu, do príncipe Tutmés.Met Museum
Em outras cenas, são mostrados deitados ou sentados debaixo de cadeiras, perseguindo pássaros ou a brincar. Em alguns textos mortuários, são inclusivamente mostrados com uma adaga, cortando Apopis (também chamado Apep, Apepi ou Rerek), antigo demónio egípcio do caos, que tinha a forma de uma serpente, inimigo do deus Sol, Re (Rá).
Um gato ataca Apopis ▪ Pintura egípcia, pertencente ao acervo do Museu BritânicoBritish Museum
Os egípcios dedicavam tal veneração aos gatos que as mulheres pintavam os olhos tentando imitar o contorno perfeito do olhar daqueles felinos. A representação artística de gatos em pinturas egípcias confirma essa afeição. Uma das representações mais antigas de um gato doméstico como um “caçador de roedores” refere-se a uma pintura de jazigo que remonta ao século 21 a.C. O afresco encontrado na tumba de um oficial egípcio, Baqet III, mostra um gato confrontando um rato do campo, provando o papel vital deste animal em manter as plantações seguras.
Um gato a perseguir um rato, no afresco da Tumba de Baqet IIIBritish Museum
Nas paredes do Túmulo de Nebamun, na margem oeste do Nilo, em Luxor, antiga cidade de Tebas (Thebes), conhecida pelos antigos egípcios como Waset, e atualmente abrigada no British Museum (British Museum), em Londres, existe uma pintura que apresenta um gato a caçar aves, enquanto Nebamun pesca. Nessa obra, o gato apanha um pássaro com a boca, enquanto agarra outros dois com as suas garras. Um dos olhos do gato é embelezado com douramento em folha de ouro que, de acordo com o Museu, é o único exemplo conhecido de douramento em pinturas murais em capelas de túmulos de Tebas.
Um gato persegue um rato ▪ Detalhe do painel do Túmulo de NebamunBritish Museum
Foram igualmente concebidas inúmeras esculturas de gatos com propósitos espirituais, na esperança de que as divindades respondessem às orações, ou então consagradas como forma de agradecimento pelas preces atendidas. Uma dessas estátuas, o chamado gato de Gayer-Anderson, uma obra-prima da elegância felina, decorada com brincos de ouro e um piercing no nariz, que evoca os antigos felinos,
O gato de Gayer-AndersonBritish Museum
usando joias luxuosas feitas de ouro e outros metais preciosos, pode também ser apreciada no acervo do Museu Britânico.
Os gatos não eram adorados como deuses em si, mas como recipientes que os deuses escolheram habitar, e cuja semelhança os deuses escolheram adotar. No fundo, os egípcios olhavam para o gato da mesma forma que olhavam para tudo, como uma maneira de explicar e personificar o universo. Através da sua presença omnipresente na arte, pinturas, moda e ornamentação doméstica do antigo Egito, os gatos serviam como um pensamento diário do poder dos deuses.
De acordo com Polyaenus, um historiador do século II d.C., o rei da Pérsia entre 530 e 522 a.C., e segundo governante da dinastia dos Aqueménidas, Kambujiya (Cambises II) terá aproveitado esse factor de adoração para atacar o Egito, em 525 a.C., na Batalha de Pelusium. Conta-se que como Cambises II estava ciente da veneração dos egípcios por gatos, terá decidido atacar os seus rivais voltando-se
Estatueta da deusa BastetLouvre
contra as suas crenças, mandando pintar a imagem de Bastet nos escudos dos seus soldados e libertado, na linha da frente, uma enorme quantidade de gatos. Além disso, os céus foram preenchidos por outros felinos que eram catapultados pelas tropas persas na direção dos soldados egípcios. Estes, com medo de ferir os felinos sagrados (e incorrer na ira de Bastet), ofereceram pouca resistência, permitindo que os persas tomassem a cidade fortificada de Pelusium. Ainda que sendo provavelmente uma lenda, o facto é que, após esta vitória, os persas tomaram conta de todo o Egito.
Animais muito apreciados pelas qualidades de caçador que possuíam, ajudando a exterminar espécies prejudiciais às colheitas, o papel dos gatos como caçadores de roedores foi complementado pela sua inclusão na vida doméstica egípcia, tornando-se em ícones de devoção religiosa.
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Misteriosos, graciosos, ágeis, sensíveis, independentes, de hábitos noturnos, comportamentos intrigantes e instintos aguçados, estas características fizeram com que os gatos fossem amados, reverenciados e até temidos pelos seres humanos, desde as mais antigas civilizações. Com frequência foram associados a aspectos místicos e mitológicos, povoando o imaginário das pessoas. Talvez por isso os gatos carreguem, ainda hoje, uma aura de fascínio em seu redor.