Refletindo sobre a leitura das três primeiras estrofes de Os Lusíadas , que correspondem à Proposição do poema, dá para perceber...

Os barões assinalados

camoes lusiadas
Refletindo sobre a leitura das três primeiras estrofes de Os Lusíadas, que correspondem à Proposição do poema, dá para perceber a complexidade do que se diz, o mais das vezes de modo simples na expressão, mesmo com as inversões sintáticas de praxe, mas com uma construção, em direção à significância, que exige muito do leitor.

camoes lusiadas
Comecemos a nossa análise, apresentando o Proêmio (junção da Proposição com a Invocação) da Eneida, de Virgílio, com tradução nossa, para que possamos entender melhor como se construiu o poema de Camões (Livro I, versos 1-11):

Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris Italiam, fato profugus, Lauiniaque uenit litora, multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram; multa quoque et bello passus, dum conderet urbem,               5 inferretque deos Latio, genus unde Latinum, Albanique patres, atque altae moenia Romae. Musa, mihi causas memora, quo numine laeso, quidue dolens, regina deum tot uoluere casus insignem pietate virum, tot adire labores                                   10 impulerit. Tantaene animis caelestibus irae?

Eu canto as armas e o herói que, das margens de Tróia, banido pelo fado, primeiro chegou à Itália e aos litorais Lavínios, por muito tempo, foi jogado de um lado a outro, nas terras e no mar, pelo poder dos deuses Superiores e pela ira memorável da cruel Juno; muito também sofreu na guerra, ao tempo em que fundava a cidade 5 e transportava seus deuses para o Lácio, de onde veio a gente Latina e os nossos pais Albanos e as muralhas da altiva Roma. Musa, lembra-me as causas, por que poder ofendido ou por que, ferindo, a rainha dos deuses terá levado um herói insigne pela piedade a lançar-se em tanto infortúnio, 10 a expor-se a tantas provações. Tantas iras existem nos ânimos celestes?

Do Proêmio, destacamos o hemistíquio do verso inicial – Arma uirumque cano – e a nova referência ao herói – insignem... uirum do verso 10,
camoes lusiadas
de modo a formar a frase Arma insignem uirumque cano, cuja tradução é — Eu canto as armas e o herói insigne.

A transformação de dois hexâmetros latinos em uma frase é necessária para que se revele o processo da tessitura poética, a partir do qual Camões cria um épico, retomando a tradição, não só no gênero, mas nos detalhes da composição do seu poema, e, claro, no seu conteúdo. Entenda-se que, nessa criação, o poeta lusitano não recusa a tradição, mas também não se lhe torna subserviente, como veremos, posteriormente.

A partir da junção operada nos versos de Virgílio, percebe-se, claramente, que o verso inicial de Os Lusíadas encontra-se muito próximo da tradução daquilo que se diz da essência do herói latino:

Arma insignem uirumque cano (Eu canto as armas e o herói insigne) As armas e os barões assinalados
camoes lusiadas
Vejamos as estrofes camonianas (Canto I, 1-3):

1. As armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; 2. E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé e o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando: Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. 3. Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta.

Considere-se que barões é a forma alternativa para varões, designando o homem viril, o herói, mais do que o barão, como título nobiliárquico. Já na poesia de Virgílio, o herói é designado pelo termo uir (varão, homem do sexo masculino), com o sentido de herói (no texto encontra-se no acusativo, daí a forma uirum, por tratar-se
camoes lusiadas
de nome da segunda declinação latina – uir, uiri). Embora não haja uma aproximação etimológica entre os termos, a aproximação semântica é indiscutível.

Sabemos ser Eneias o uir não nomeado por Virgílio, identificado como um herói insigne, o que significa ter sido marcado pelos deuses com um sinal (in + signum, em quem há um sinal), no caso a piedade, como se pode ver no verso 10 (insignem pietate uirum). Eneias é o herói pio, sendo a piedade um dos seus atributos mais importantes na Eneida, diferenciando-o com relação aos demais companheiros. Insigne, portanto, é adjetivo semelhante ao assinalados, utilizado por Camões. A diferença consiste no fato de que Eneias é o herói assinalado pelo fado, o destino, que está nas mãos dos deuses. A sua saída de Troia, quando da destruição da cidade pelos gregos, não é só para evitar a sua morte, mas para que se cumpra a determinação divina de fundação de uma nova Troia, sob o seu comando. Daí a necessidade de Eneias fazer uma viagem pelo mar e pelas terras, até chegar ao Ocidente, nas terras de Hespéria, onde deverá fundar um reino, de que se originará a grandiosa Roma, conforme vimos acima, na Proposição da Eneida.

camoes lusiadas
A viagem de Vasco da Gama, o maior dos “barões assinalados”, é diversa daquela realizada por Eneias, o “herói insigne”. Eneias sai de uma Troia arrasadas pelos gregos, para a fundação de uma nova Troia, ainda mais gloriosa que a anterior. Vasco da Gama, devidamente epitetado de “peito ilustre lusitano” (estrofe 3, verso 5), sai de um Portugal ascendente como nação, para dilatar o seu império e a sua fé (estrofe 2, versos 2-3), o que o caracteriza como o herói assinalado, cuja missão é a erradicação do islamismo e do politeísmo hindu, cujas “terras viciosas/De África e de Ásia” (estrofe 2, versos 3-4) devem ser devastadas, recebendo a catequese purificadora do Cristianismo e edificando um “Novo reino, que tanto sublimaram” (estrofe 1, verso 8). Em suma: a fundação da nova Troia por Eneias é decisão dos deuses;
camoes lusiadas
a edificação de um reino ideal e glorioso, por Vasco da Gama, é decisão do reino lusitano, na sua expansão como império.

Nos dois casos, na Eneida e em Os Lusíadas, o herói está devidamente caracterizado, pela sua missão e pelas dificuldades sobre-humanas enfrentadas. Eis o que pode identificar o herói: a ele é confiada uma missão divina, cujas dificuldades devem ser enfrentadas e vencidas pela sua força superior, seja com relação à sua ética, seja com relação a seus feitos no campo de batalha, as “obras valerosas” que o “vão da lei da Morte libertando” (estrofe 2, 5-6). É assim que Eneias, depois de enfrentar os dissabores na sua viagem terra marique, por terra e por mar, enfrenta o da guerra, além da perseguição de uma divindade poderosa como Juno.

Já Vasco da Gama enfrentará os “perigos e guerras esforçados/Mais do que prometia a força humana” (estrofe 1, versos 6-7), não lhe faltando a oposição cerrada do deus Baco, que aparece no poema como símbolo do politeísmo e do paganismo, abrangendo, a um só tempo, a propaganda cristã contra o islamismo e contra as diversas religiões hinduístas.

camoes lusiadas
É importante ressaltar que Eneias enfrentou vários perigos na sua viagem pelo Mediterrâneo, do mar Egeu ao mar Tirreno, sendo jogado de um lado para o outro, em tempestades e errâncias, como também sofreu com as guerras travadas contra os rútulos, após a sua chegada ao Lácio. Virgílio toma o cuidado de deixar bem claro, no seu Proêmio, as provações (labores), por que passou o herói. Vasco da Gama também passará por grandes perigos, por mar e por terra. Trata-se, porém, de um herói que se alça acima de Eneias, tendo em vista o seu poder de subjugar o mar revolto e a guerra cruenta, que aparecem na metonímia da estrofe 3 (versos 5-6):

Que eu canto um peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram.

Se Virgílio tem por propósito mostrar Eneias como um herói sofrendo provações, num processo de fundação de uma cidade, de que outra, altiva, surgiria, no caso Roma, Camões vai mais adiante e faz desmedida exaltação de Vasco da Gama,
camoes lusiadas
como herói que excede, em relação a Ulisses e a Eneias, cujas viagens pelo Mediterrâneo não se comparam com a viagem à Índia. Só a sua viagem, realizada em 1498, ampliando a chamada “rota do Cabo”, já é, em extensão, maior do que as viagens “do sábio Grego e do Troiano” (estrofe 3, verso 1).

A excelência de Vasco da Gama () não para por aí. Se “o peito ilustre Lusitano” revela-se maior do que os seus congêneres da ficção, quando confrontado com os personagens históricos da Grécia e de Roma, Alexandre Magno () e o imperador Trajano (), ele os deixa para trás, no que diz respeito à expansão portuguesa que foi além do qualquer outra, com relação aos gregos e aos romanos, alcançando o Oriente mais longínquo, passando além da Taprobana, o atual Sri Lanka, e chegando ao Japão, China e Oceania.

Não é à toa que Camões termina a sua Proposição da seguinte forma (estrofe 3, versos 7-8):

Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta.

Trata-se da síntese da grandeza lusitana, excelendo o mundo greco-romano, de que Portugal e o Ocidente são tributários. O que a Musa antiga canta reúne o mito, a religião e a história, ressaltando que se a Musa do poema épico é Calíope, a quem Camões invoca no início do Canto III – Agora Tu, Calíope me ensina/O que contou ao Rei o Ilustre Gama (estrofe 3, versos 1-2) –, a Musa da História era Clio, a quem o grego Heródoto (485-425 a. C.), o mais famoso historiador grego antigo do mundo ocidental, dedicou o primeiro dos seus nove livros. O Peito Ilustre Lusitano não subjuga apenas Netuno e Marte, mas também Calíope e Clio. Ou seja, se nos feitos gloriosos, o Ilustre Gama é maior que o mar, que a guerra e que Heródoto, nos feitos poéticos, Camões é maior que Homero e Virgílio. Já suas Musas, as ninfas do Tejo, suplantam as deusas Olímpicas. Alçam-se o herói, a nação e, evidentemente, o poeta.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também