O pretérito imperfeito do indicativo é normalmente estudado como um tempo passado de ação incompleta, com aspectos vários: durativo (“Havia um ano que ele morava ali.”), progressivo ou cursivo (“Em 1910, ele estudava no Colégio de Jesuítas.” “A natureza quedava-se imóvel.”), iterativo (“Ele se ajoelhava sempre que passava diante do altar-mor.”) e imperfectivo (“Ele celebrava a missa quando ocorreu a explosão.”).
Harald Weinrich (1927—2022), escritor, filólogo e filósofo alemão
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A atitude comunicativa – A atitude comunicativa classifica-se em narrativa e em comentadora, à semelhança da dicotomia narração/discurso, de Benveniste (Les relations de temps dans le verbe français. In: ⏤.Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966, vol. I, p. 237-250). Em “Carlos está muito magro. Precisa alimentar-se”, temos o discurso, o mundo comentado (Besprochene Welt). Em “José tomou café e morreu”, temos uma narração, o mundo narrado (Erzählte Welt). Uma narrativa é aqui definida, segundo Wiliam Labov (Language in the inner city – Studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1975, cap. 9 – “The transformation of experience in narrative syntax”, p. 359-360) como a sucessão de pelo menos dois fatos ligados por um fator tempo, de tal modo que a inversão desses fatos altera a interpretação semântica original. No exemplo dado (“José tomou café e morreu.”),
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A perspectiva comunicativa ▪ Na perspectiva comunicativa, classificam-se os tempos verbais em tempos sem perspectiva e tempos de prospecção e de retrospecção. Numa narrativa, por exemplo, o pretérito perfeito é o tempo de perspectiva zero (o aoristo ou o “passé simple” francês); o mais-que-perfeito é retrospectivo (um tempo passado completo, anterior a outro tempo passado também completo); e o futuro do pretérito é um tempo prospectivo. O aoristo é o tempo do acontecimento
Vejamos um trecho narrativo sobre Sólon: “Entouré d’ennemis, mais résolu à ne rien changer de ce qu’il avait fait, croyant peut-être aussi que son absence calmerait les esprits, il decida de quitter Athènes.” (Cercado de inimigos, mas decidido a não alterar nada do que fizera, acreditando talvez também que sua ausência acalmaria os espíritos, ele decidiu deixar Atenas.) Segundo Benveniste, “O aoristo (passé simple) estabelece um elo vivo entre o acontecimento passado e o presente em que sua evocação se situa. É o tempo daquele que relata os fatos como testemunha, participando; é portanto também o tempo que escolherá quem quiser fazer repercutir até nós o acontecimento relatado e associá-lo ao nosso presente. Como o presente, o perfeito (passé composé) pertence ao sistema linguístico do mundo comentado, pois a referência temporal do perfeito é o momento do discurso, enquanto que a referência do aoristo (passé simple) é o momento do acontecimento” (O.c. p. 244). Num mundo comentado, o presente é o tempo de perspectiva zero; o pretérito perfeito é retrospectivo (o “passé composé” francês); e o futuro do presente é prospectivo e “implica prescrição, obrigação, certeza, que são modalidades subjetivas,
Os advérbios de tempo são traduzidos do mundo comentado para o mundo narrado: “agora, hoje, ontem, amanhã” são “traduzidos” para “naquele momento (então), naquele dia, no dia anterior, no dia seguinte”. Essa classificação dos tempos em mundo narrado e mundo comentado não leva em conta a “metáfora temporal” (cf. El sistema metafórico temporal, p. 137-167, do livro citado de Harald Weinrich) em que, por enálage, um tempo do mundo comentado se usa em lugar de um tempo do mundo narrado e vice-versa, como o presente de narração: “Em 1500, Cabral sai de Portugal e descobre o Brasil.” Ou como o futuro do pretérito de cortesia: “Eu gostaria de pedir-lhe um favor.”
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O relevo — O relevo aparece em alguns setores do sistema temporal e se divide em dois planos. Examinemos, e.g., o seguinte texto: “Era uma vez um rei que tinha duas filhas e vivia feliz no seu reino.
Ora, o que os estudos em princípio omitem é um emprego do pretérito imperfeito como o tempo das fábulas. Em seu belíssimo livro Gramática da fantasia (9.ed. São Paulo: Summus Editorial, 1982), Gianni Rodari dedica as páginas finais ao “verbo para brincar”, retomando observações que havia feito no cap. 33: “... imperfeito que as crianças pronunciam quando assumem uma personalidade imaginária, quando entram na fábula, quando terminam os últimos preparativos para a brincadeira. Aquele imperfeito, filho legítimo do ‘era uma vez’ que dá início às fábulas, é um presente especial, um tempo inventado para brincar...”. Que menino, criança ainda, não brincou de polícia e ladrão, combinando com o companheiro: “Agora eu era o bandido, e você era a policia"?
“Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava um rock para as matinês
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país
Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Vem, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade
Acho que a gente nem tinha nascido
Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim?”
Repare-se que o advérbio “agora”, em suas várias ocorrências, tem o significado de “neste momento”, “presentemente”, reforçando a ideia de que o pretérito imperfeito está aí como um tempo presente, e não como um tempo passado, como bem explicou Gianni Rodari na obra citada.
Espero que esse belo poema inaugure o capítulo esquecido das nossas gramáticas sobre esse emprego maravilhoso do imperfeito do indicativo...