O pretérito imperfeito do indicativo é normalmente estudado como um tempo passado de ação incompleta, com aspectos vários: durativo (...

Tempo de brincar: o pretérito imperfeito

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O pretérito imperfeito do indicativo é normalmente estudado como um tempo passado de ação incompleta, com aspectos vários: durativo (“Havia um ano que ele morava ali.”), progressivo ou cursivo (“Em 1910, ele estudava no Colégio de Jesuítas.” “A natureza quedava-se imóvel.”), iterativo (“Ele se ajoelhava sempre que passava diante do altar-mor.”) e imperfectivo (“Ele celebrava a missa quando ocorreu a explosão.”).

Harald Weinrich (1927—2022), escritor, filólogo e filósofo alemão
Harald Weinrich, num livro de 1968, traduzido nesse mesmo ano para o espanhol e publicado pela Gredos, de Madrid, com o título Estructura y función de los tiempos en el lenguaje (capítulo “Mundo comentado – Mundo narrado”, p.61-136), estabeleceu três dimensões do sistema temporal: 1. a atitude comunicativa; 2. a perspectiva comunicativa; e 3. o relevo.

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A atitude comunicativa – A atitude comunicativa classifica-se em narrativa e em comentadora, à semelhança da dicotomia narração/discurso, de Benveniste (Les relations de temps dans le verbe français. In: ⏤.Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966, vol. I, p. 237-250). Em “Carlos está muito magro. Precisa alimentar-se”, temos o discurso, o mundo comentado (Besprochene Welt). Em “José tomou café e morreu”, temos uma narração, o mundo narrado (Erzählte Welt). Uma narrativa é aqui definida, segundo Wiliam Labov (Language in the inner city – Studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1975, cap. 9 – “The transformation of experience in narrative syntax”, p. 359-360) como a sucessão de pelo menos dois fatos ligados por um fator tempo, de tal modo que a inversão desses fatos altera a interpretação semântica original. No exemplo dado (“José tomou café e morreu.”),
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a inversão dos fatos (“José morreu e tomou café.”) significa outra narrativa (uma narrativa extraordinária, como a de Érico Veríssimo, em Incidente em Antares, em que os mortos se recusam a aceitar que estão mortos, ou como a de Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, em que um morto escreve suas memórias). Já na frase “José morreu tomando café”, não há narrativa, porque os dois fatos podem ter sua ordem alterada (“Tomando café, José morreu”) sem que haja mudança da interpretação semântica original. Os tempos do mundo narrado são, basicamente, o mais-que-perfeito, o aoristo (correspondente ao “passé simple” francês ou, grosso modo, ao “Präteritum alemão”) e o futuro do pretérito; os do mundo comentado são o perfeito (correspondente ao “passé composé” francês ou, também grosso modo, ao “Perfekt” alemão), o presente e o futuro (o imperfeito é comum aos dois mundos).

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A perspectiva comunicativa ▪ Na perspectiva comunicativa, classificam-se os tempos verbais em tempos sem perspectiva e tempos de prospecção e de retrospecção. Numa narrativa, por exemplo, o pretérito perfeito é o tempo de perspectiva zero (o aoristo ou o “passé simple” francês); o mais-que-perfeito é retrospectivo (um tempo passado completo, anterior a outro tempo passado também completo); e o futuro do pretérito é um tempo prospectivo. O aoristo é o tempo do acontecimento
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fora da pessoa de um narrador, como se a história se contasse sozinha.

Vejamos um trecho narrativo sobre Sólon: “Entouré d’ennemis, mais résolu à ne rien changer de ce qu’il avait fait, croyant peut-être aussi que son absence calmerait les esprits, il decida de quitter Athènes.” (Cercado de inimigos, mas decidido a não alterar nada do que fizera, acreditando talvez também que sua ausência acalmaria os espíritos, ele decidiu deixar Atenas.) Segundo Benveniste, “O aoristo (passé simple) estabelece um elo vivo entre o acontecimento passado e o presente em que sua evocação se situa. É o tempo daquele que relata os fatos como testemunha, participando; é portanto também o tempo que escolherá quem quiser fazer repercutir até nós o acontecimento relatado e associá-lo ao nosso presente. Como o presente, o perfeito (passé composé) pertence ao sistema linguístico do mundo comentado, pois a referência temporal do perfeito é o momento do discurso, enquanto que a referência do aoristo (passé simple) é o momento do acontecimento” (O.c. p. 244). Num mundo comentado, o presente é o tempo de perspectiva zero; o pretérito perfeito é retrospectivo (o “passé composé” francês); e o futuro do presente é prospectivo e “implica prescrição, obrigação, certeza, que são modalidades subjetivas,
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não categorias históricas”(O.c. p. 245). Exemplo: “J’ai fini mon boulot, j’admire ce que j’ai fait, mais je reviendrai demain pour le retoucher.”(Terminei o trabalho, fico admirando o que fiz, mas voltarei amanhã para retocá-lo.)

Os advérbios de tempo são traduzidos do mundo comentado para o mundo narrado: “agora, hoje, ontem, amanhã” são “traduzidos” para “naquele momento (então), naquele dia, no dia anterior, no dia seguinte”. Essa classificação dos tempos em mundo narrado e mundo comentado não leva em conta a “metáfora temporal” (cf. El sistema metafórico temporal, p. 137-167, do livro citado de Harald Weinrich) em que, por enálage, um tempo do mundo comentado se usa em lugar de um tempo do mundo narrado e vice-versa, como o presente de narração: “Em 1500, Cabral sai de Portugal e descobre o Brasil.” Ou como o futuro do pretérito de cortesia: “Eu gostaria de pedir-lhe um favor.”

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O relevo — O relevo aparece em alguns setores do sistema temporal e se divide em dois planos. Examinemos, e.g., o seguinte texto: “Era uma vez um rei que tinha duas filhas e vivia feliz no seu reino.
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Um dia chegou ao reino um viajante cansado que tinha vindo de muito longe.” O imperfeito do indicativo nesse texto é exemplo de relevo de segundo plano: não inicia a narrativa, mas apresenta elementos necessários à sua compreensão. O pretérito perfeito inicia a narrativa: é exemplo de relevo de primeiro plano, junto com o mais-que-perfeito, que indica um tempo retrospectivo.

Ora, o que os estudos em princípio omitem é um emprego do pretérito imperfeito como o tempo das fábulas. Em seu belíssimo livro Gramática da fantasia (9.ed. São Paulo: Summus Editorial, 1982), Gianni Rodari dedica as páginas finais ao “verbo para brincar”, retomando observações que havia feito no cap. 33: “... imperfeito que as crianças pronunciam quando assumem uma personalidade imaginária, quando entram na fábula, quando terminam os últimos preparativos para a brincadeira. Aquele imperfeito, filho legítimo do ‘era uma vez’ que dá início às fábulas, é um presente especial, um tempo inventado para brincar...”. Que menino, criança ainda, não brincou de polícia e ladrão, combinando com o companheiro: “Agora eu era o bandido, e você era a policia"?

Para ilustrar o emprego do imperfeito de fantasia, nada melhor que o poema da canção “João e Maria”, de Sivuca e Chico Buarque:

“Agora eu era o herói E o meu cavalo só falava inglês A noiva do cowboy Era você além das outras três Eu enfrentava os batalhões Os alemães e seus canhões Guardava o meu bodoque E ensaiava um rock para as matinês Agora eu era o rei Era o bedel e era também juiz E pela minha lei A gente era obrigado a ser feliz E você era a princesa que eu fiz coroar E era tão linda de se admirar Que andava nua pelo meu país Não, não fuja não Finja que agora eu era o seu brinquedo Eu era o seu pião O seu bicho preferido Vem, me dê a mão A gente agora já não tinha medo No tempo da maldade Acho que a gente nem tinha nascido Agora era fatal Que o faz-de-conta terminasse assim Pra lá deste quintal Era uma noite que não tem mais fim Pois você sumiu no mundo sem me avisar E agora eu era um louco a perguntar O que é que a vida vai fazer de mim?”

Repare-se que o advérbio “agora”, em suas várias ocorrências, tem o significado de “neste momento”, “presentemente”, reforçando a ideia de que o pretérito imperfeito está aí como um tempo presente, e não como um tempo passado, como bem explicou Gianni Rodari na obra citada.

Espero que esse belo poema inaugure o capítulo esquecido das nossas gramáticas sobre esse emprego maravilhoso do imperfeito do indicativo...
LIVROS DE AUTORIA DE JOSÉ AUGUSTO CARVALHO
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