Entendo que seja preciso um toque de erudição ao tema que a muitos não haverá de cheirar bem. Recorro, portanto, a “Os Lusíadas”, especificamente, à parte na qual o bom e velho Luís Vaz de Camões descreve o suplício dos marinheiros vitimados pelo escorbuto, a doença decorrente da deficiência grave de Vitamina C.
GD
E foi, que de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desampararam,
Muitos a vida; e em terra estranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram
Quem haverá que, sem o ver, o creia?
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crescia
A carne e juntamente apodrecia?
Apodrecia co’um fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho infeccionava:
Não tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião sutil menos se achava
Mas qualquer, neste ofício pouco instrutivo,
Pela carne já podre assim cortava
Como se fora morta; e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.
Vasculho a Internet e descubro a infinidade de textos acadêmicos relacionados à higiene e à medicina nas caravelas, a exemplo daquelas que trouxeram a esta parte do mundo Cabral e sua tropa. Outros tantos artigos dedicados a esta mesma questão saem de penas leigas e triviais.
GD
Grande parte desses escritos, pressuponho, não deve merecer o mínimo crédito. Aceito a informação de que, até o início do século passado, os médicos bons e responsáveis atuantes nos quatro pontos do mundo cheiravam e remexiam o conteúdo dos penicos para a identificação dos males que afligiam seus pacientes. Não ocorreria de modo diferente com o médico de família em visita profissional aos lares dos avós que muitos de nós tivemos. Afinal, são cuidados necessários aos diagnósticos expressos, ainda hoje, por outros meios. Ou seja, o progresso despachou a tarefa para a análise laboratorial.
Mas eu me recuso a acreditar, por exemplo, na utilização das espigas de milho para o asseio dos idos, em qualquer tempo, a moitas, ou buracos. Aceito a eficácia da limpeza em lagos e rios e o uso, não tão eficaz, pelos povos antigos de folhas que não tivessem a ardência das urtigas.
Joseph Gayetty (1827—1895) ▪ Wikimedia
E até creio no uso largo para tal fim, na terra do Tio Sam, das páginas de catálogos como o da “Sears, Roebucks & Co.” e o “Farmers Almanac”, embora desconfie da história de que este último tenha sido produzido com um buraco destinado, depois da leitura, à transposição de um prego na parede da casinha. Seriam tais publicações artigos de dupla utilidade.
Afinal, por que a recorrência a tema tão nauseabundo? A curiosidade, meus caros, levou-me a isso tão logo tive minha página eletrônica invadida por um vídeo explicativo da vida no espaço. Chegou-me, compulsoriamente, sem que eu o pedisse.
Pois bem, como qualquer um de nós, seres humanos, o astronauta precisa se aliviar, esteja na terra, ou nos céus. Mas, lá em cima, onde a força da gravidade inexiste, tudo o que se desprende flutua, ao invés de despencar. Ali, quem for à casinha deve colocar as coxas em barras de estabilização ligadas às laterais do vaso.
Estação Espacial InternacionalNasa
Os cheira-penicos de antigamente agora põem máscaras, vestem macacões, botas especiais e operam em ambientes terrestres lacrados onde não entra e de onde não sai germe, a fim de examinar dejetos não descartados, pois úteis ao estudo da fisiologia humana no espaço sideral. Isto é, guarda-se um tantinho daquilo para exame científico.
Creiam, a perfeição do tal vídeo sugere o uso da Inteligência Artificial para mostrar como obram (o termo vem do meu avô) os homens do espaço, tintim por tintim. As figuras parecem pessoas de verdade. Assim, também, o cocô dos astronautas.
Li, certa vez, que os recém-chegados às estações espaciais para a substituição das equipes mais antigas se assustam com a fedentina ali reinante, embora disso tenham sido avisados. O espanto seria explicado pelo fato de a situação ser pior do que a imaginada. Suores, gases e arremedos de banho devem aproximar, então, o cheiro dessa gente e o ar por ela respirado em algo bem próximo daquilo que ia às narinas dos pobres e nobres do tempo de Camões e de outros velhos tempos.
Fica-me, desse modo, a impressão de que a evolução tecnológica não conseguiu eliminar o rastro fétido dos que se lançam à exploração de novos meios e novos mundos desde as viagens de longa duração em lombo de caravela. Com velas ao vento, ou em rabo de foguete, nós, os humanos, não cheiramos bem se longe dos sabões, dos perfumes e da zona de conforto. Não é não?
Agora mesmo, dito isso tudo, ocorre-me a brandura da sentença bíblica: “Tu és pó e ao pó voltarás”. Ninguém se indignará com isso se considerar os meios, as situações e os estágios da vida humana desde a primeira morada, o ventre materno, até a última, o cemitério. Ao contrário dos bichos, disfarçamos nosso cheiro ao longo de todo esse percurso. Também me ocorre a preferência de um general-presidente, aquele que preferia o cheiro dos cavalos. Mas isso fala de outra coisa e de outra causa. É outra história.