Quem nas novas gerações se lembra de Milton Campos? Quem na minha geração de setentões se lembra de Milton Campos, o honrado mineiro que, ao lado de Afonso Arinos de Melo Franco, representou um dos melhores espécimes do liberalismo brasileiro? Praticamente ninguém, infelizmente. O próprio Arinos jaz no esquecimento dos compatriotas, o que diz muito sobre a nossa gente e o nosso país.
E como o mineiro de Ponte Nova, nascido com o século XX, em 16 de agosto de 1900, veio agora ao meu pensamento distraído?
Pelo velho caminho dos livros, aquele que já me trouxe tanta coisa boa nesta vida. Outro dia, passeando, sem compromisso, pelos sebos virtuais, deparei-me com a oferta de uma 1ª edição de Minha Formação (H. Garnier, Livreiro-Editor, Rio de Janeiro-Paris, 1900), o célebre livro de Joaquim Nabuco. O preço era muito atraente para a raridade do pequeno volume, o qual trazia como acréscimo uma assinatura do ilustre proprietário: Milton Campos, B. Horizonte, 1919. É possível que tenha havido outros donos após ele, mas bastava seu nome para valorizar – e muito – aquele verdadeiro achado. Acredito que o alfarrabista, ao cobrar um preço tão razoável pela obra, provavelmente não se deu conta de que tinha em mãos nada mais nada menos que um livro duplamente raro: por ser uma 1ª edição mais que centenária e em ótimo estado de conservação, e por trazer o autógrafo do grande homem público brasileiro. Não preciso dizer que imediatamente comprei o livro, e que esta
é a razão pela qual posso agora afirmar, orgulhoso, que possuo Milton Campos na minha estante.
Algum espírito de porco poderá dizer: E daí? E daí, nada, respondo eu, pouco disposto a argumentar com quem não vale a pena. Quem não compreende a importância de uma aquisição dessa natureza não merece a menor contemplação, Deus me perdoe a falta de paciência cristã. Mas é isso mesmo, nada posso fazer por um ímpio que não aprecia as primeiras edições e desconhece a recente história do Brasil. Entretanto, para compensar, disponho-me a compartilhar com o leitor eventualmente menos informado alguns dados biográficos desse político, jurista e intelectual de Minas Gerais, um dos mais importantes do país no século XX.
Em política, pode-se dizer que Milton Campos foi praticamente tudo, menos presidente da República. Deputado estadual, deputado federal, governador de Minas Gerais, senador e ministro da Justiça. Um senhor currículo. Sempre com a marca da retidão, reconhecida até pelos adversários. E também nisso se pareceu com Afonso Arinos de Melo Franco, também mineiro como ele. Por duas vezes concorreu à vice-presidência do país, sendo derrotado por João Goulart nas duas eleições.
Milton Campos (centro), Evento nas obras do Sanatório Benjamin Guimarães, em Minas Gerais ▪ Imagem: Fiocruz / Gov. BR
Liberal clássico é uma definição que lhe cabe bem, tomando-se o alto sentido da expressão. Não se pode jamais, ressalte-se, chamá-lo de fascista nem de reacionário. Sua “direita” é a esclarecida, a que não se envergonha de si, a que julga possível promover-se a justiça social sem prejuízo das liberdades públicas e individuais. Seu ideário poderia, pois, ser resumido da seguinte forma: Estado de Direito, democracia representativa, economia de mercado e descentralização administrativa. Mas, diga-se, sem se esgotar nestes pilares básicos do liberalismo e sem adotá-los fanaticamente, já que a mineiridade do personagem, essa célebre mineiridade mítica,
Foi com alegria que tomei nas mãos o pequeno volume das memórias de Nabuco, com a assinatura de Milton Campos. Um pernambucano e um mineiro que honraram e honram o Brasil de ontem e o Brasil de sempre.
também está presente em sua personalidade, o que faz muita diferença, no bom sentido. Os mineiros, sabe-se, são – ou eram – um caso à parte, em tudo.
Ter sido um dos fundadores da UDN – União Democrática Nacional, partido que originalmente surgiu para combater a ditadura Vargas numa perspectiva liberal, tem tudo a ver com o seu perfil ideológico. A UDN, sabe-se, teve essa origem libertária, e só depois foi se tornando mais conservadora e até reacionária, principalmente quando muitos de seus filiados abraçaram, sem pudor, o autoritarismo pós-1964. Todavia, não foi esse o caso de Milton Campos, como não foi o de Afonso Arinos, seu companheiro de partido. E sobre isso há fatos incontornáveis.
Milton Campos / Fonte: Jornal Parnaíba
Não se desconhece que Campos apoiou a derrubada de João Goulart, assim como a totalidade de seus colegas de partido, e que, acreditando na transitoriedade do regime de exceção, até aceitou ser ministro da Justiça do presidente Castelo Branco, o qual, a princípio, governaria até as eleições presidenciais de 1965. E também se sabe que pediu exoneração desse cargo (tão poderoso) tão logo constatou a guinada autoritária do governo, que acabaria por levá-lo, o governo, à ditadura do AI-5. Um gesto de tal grandeza é raríssimo na política, e só ele basta para alçar o discreto e digno Milton Campos ao panteão nacional.
Muito mais se pode escrever sobre esse mineiro exemplar, cuja respeitabilidade se impôs a todos de maneira quase unânime, acima dos partidos, das ideologias e dos interesses. Ao se afastar deliberadamente dos militares linha-dura,
Milton Campos ▪ IHG/MG
enfrentou com altivez o ostracismo a que foi relegado, a despeito de ter sido eleito senador em 1966, cargo em que veio a falecer, em 1972. Nisso também lembra Afonso Arinos de Melo Franco.
Por tudo isso, foi com alegria que tomei nas mãos o pequeno volume das memórias de Nabuco, com a assinatura de Milton Campos. Um pernambucano e um mineiro que honraram e honram o Brasil de ontem e o Brasil de sempre. Vê-se assim que o colecionismo, mesmo que modesto, como é o meu, serve afinal, entre outras coisas, para isso: preservar em pequenas coisas, pequenos objetos, um pouco de nossa história cultural e política. O verdadeiro colecionador não é nunca um proprietário, mas apenas alguém que toma conta de algo, com a missão de passá-lo adiante, de modo que esse “algo” sobreviva através das gerações.
Ao lado dos autógrafos ilustres de um Carlos Drummond de Andrade, de um Manuel Bandeira, de um José Lins do Rego, de um José Américo, de um Gilberto Freyre e de um Antonio Carlos Villaça, entre outros, orgulho-me de agora colocar na minha despretensiosa estante aldeã o do grande brasileiro Milton Campos, aquele bravo que ao poder preferiu a honra.