Astor Pantaleón Piazzolla (1921 – 1992) foi um compositor e bandoneonista argentino que revolucionou o tango tradicional, criando um ...

Expressão da existência humana no tango

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Astor Pantaleón Piazzolla (1921 – 1992) foi um compositor e bandoneonista argentino que revolucionou o tango tradicional, criando um gênero híbrido que ficou conhecido como "tango nuevo" (tango novo), fundindo-o com elementos da música erudita, do minimalismo do jazz e do dodecafonismo. Sua contribuição para a arte de compor foi bem diversificada.

Antes de Piazzolla, o tango era uma dança e gênero musical popular, com forte destaque para a melodia em ritmo dançante. A introdução do instrumento alemão bandoneón em orquestras e a integração de instrumentos como piano, violino, violoncelo e violão incorporaram Piazzolla às peças de concerto, com caráter camerístico ou sinfônico.

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Bandoneón de Astor Piazzolla ProtoplasmaKid
O bandoneonista argentino buscou transformar o tango em uma linguagem musical mais sofisticada, mais complexa, ao usar técnicas de composição do período barroco e incorporar recursos de improvisação característicos do jazz, introduzindo dissonâncias e polirritmia para compor sonatas, sinfonias, concertos e peças para pequenos grupos de câmara, como trios, quartetos e quintetos. Esta inovação teve influência determinante da professora francesa, Nadia Boulanger (1887 – 1979), em sua formação e no seu estilo de escrever o "novo tango".

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Nadia Boulanger
Centro International Nadia e Lili Boulanger (Paris)
Boulanger, uma das melhores pedagogas de música do século 20, incentivou-o a explorar novas possibilidades e a se aprofundar no estudo da obra de compositores clássicos, como o russo Ígor Fiódorovitch Stravinski (1882 – 1971), o alemão Johann Sebastian Bach (1685 – 1750) e o francês Joseph Maurice Ravel (1875 – 1937), fazendo tal influência se refletir no conjunto de sua obra. A partir daí, Piazzolla passou a utilizar o estilo contrapontístico, como a fuga, nos temas do tango, além de explorar orquestrações mais complexas e as novas técnicas de composição da música contemporânea.

A fuga se desenvolve a partir de um tema principal, que é apresentado inicialmente por um dos instrumentos, ou naipe, isoladamente. Este tema é então exposto por outros instrumentos sucessivamente, e se desenvolve em planos sonoros justapostos criando o entrelaçamento melódico polifônico que caracteriza o contraponto. A melodia principal passeia pela tessitura, ora na íntegra, ora com variações e fragmentos temáticos, e evolui para ser executada por todo o conjunto, podendo retornar à ideia principal interpretada por instrumentos isolados. Assim, o contraponto é uma técnica de composição que consiste em sobrepor duas ou mais vozes que expõem o tema inicial em vários momentos e timbres, interpostos para atingir a alta qualidade harmônica que é gerada pela sobreposição das linhas melódicas.


Exemplo de uma pequena Fuga de Bach @Classical Music & Soundtracks

As técnicas de composição da música contemporânea, influenciada pelo Serialismo, método desenvolvido pelo austríaco Arnold Franz Walter Schönberg (1874-1951) no início do século XX, conhecido como Dodecafonismo, também foram adotadas por Piazzolla. A principal característica da dodecafonia é a utilização simultânea de todas as 12 notas da escala cromática (com sustenidos e bemóis), sem que a música se desenvolva dentro de uma determinada tonalidade. A ordem das notas pode ser aplicada de maneira original, retrógrada ou inversa – ou seja, cada intervalo de uma série melódica pode ser invertido de forma ascendente, descendente e vice-versa, e ser tocada de trás para frente, de maneira retrógrada ou invertida (espelhada).

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Arnold Schoenberg Fritz Dobert
Essas variações proporcionam ao compositor ampla flexibilidade na construção melódica em harmonia atonal, preservando, no entanto, a ideia central de que todas as 12 notas devem ser livre e igualmente utilizadas.

O dodecafonismo rompeu com o sistema de composição tradicional, em que a música se estruturava em torno de uma tonalidade dominante, extrapolando todas as convenções harmônicas do século XIX. Dentro desta técnica, o compositor tem a liberdade de criar variações e transformações da série de 12 tons de maneira totalmente livre. A atonalidade se caracteriza pela criação de temas que utilizam intervalos irregulares e acordes que não são resolvidos com a harmonia tradicional. Além disso, o uso da polifonia – combinação de várias vozes independentes que se entrelaçam – cria uma textura ainda mais complexa.

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Trecho de Peça para Piano, Opus 33 (A. Schoenberg) Hyacinth
A dissonância, outra característica da música contemporânea, frequentemente utiliza acordes e intervalos que podem soar desagradáveis ao ouvido, desafiando os métodos tradicionais de composição. Esta música também pode apresentar compassos compostos, com mudanças frequentes no tempo, alternância rítmica, que resutam em métricas irregulares e assimétricas. A polirritmia, por sua vez, introduz ritmos contrastantes simultaneamente, muitas vezes com diferentes grupos de instrumentos soando em tempos distintos. O uso de ritmos fluidos, como o rubato, por exemplo – em que o intérprete acelera ou desacelera ligeiramente o tempo da peça – contribui para a sensação de liberdade, permitindo que o tempo seja alterado pelo próprio músico. Além disso, pode ocorrer uma fusão de texturas monofônicas (com uma única melodia) e polifônicas (com múltiplas melodias simultâneas), assim como a combinação de diferentes timbres com efeitos diversos.

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Atonalismo com séries de tríades @ufpr.br/
A música contemporânea também explora novas sonoridades dos instrumentos, utilizando técnicas inovadoras como harmônicos, pizzicato e percussão corporal. Em vez de melodias longas e contínuas, muitos compositores contemporâneos preferem usar fragmentos melódicos que se sobrepõem ou se repetem de maneiras variadas. Essas melodias tendem a ser menos definidas, mais dispersas, com intervalos maiores ou menores, criando uma sensação de instabilidade e imprevisibilidade.

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Astor Piazzolla History of Music
Com o tango novo de Piazzolla deu-se a transição do tango simples e dançante para uma melodia mais introspectiva, com perfil de concerto, constituindo-se em uma inovação da música erudita, que tradicionalmente evitava associar-se a gêneros populares. Com o tango novo, ele tornou seu estilo mais intelectual, que não se destinava apenas ao prazer de dançar, mas também ao prazer de ouvir, refletindo a complexidade da composição e a intensidade emocional das interpretações, bem como uma compreensão da existência humana com seus conflitos e superações.

Entre suas composições mais destacadas estão "Adiós Nonino" , "Libertango" e "La Muerte del Ángel" . Ele compôs arranjos que possibilitavam o trabalho com músicos solistas em peças sinfônicas, de concerto e de câmara. Suas orquestrações do tango para quinteto e para grandes orquestras ampliaram as possibilidades sonoras deste gênero, transformando-o em uma linguagem mais intimista. O uso do bandoneón como solista de concertos contribuiu para redefinir a funcionalidade dos instrumentos de tango para peças eruditas e populares.


As peças de Piazzolla são hoje interpretadas em salas de concerto e festivais internacionais de música erudita, e o conjunto de sua obra está presente em programas de pesquisas acadêmicas em universidades de países tanto no Ocidente quanto no Oriente. Sua capacidade de transitar entre o popular e o erudito, trazendo a sensibilidade e os ritmos do tango para o universo da música, revolucionou não só o tango, mas também a maneira como a música erudita poderia ser compreendida e vivida. Ele abriu novos caminhos para o uso do tango como uma forma musical que vai além do entretenimento e da dança, permitindo-lhe encontrar seu lugar no cenário da música erudita e popular contemporânea para compreender os conflitos da existência humana.

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