A pedido do meu amigo, Marcílio Franca, em 2019, fiz a tradução de “À Paz”, hino da autoria do internacionalista holandês Hugo Grotius, um dos fundadores do Direito Internacional, no século VII. O aludido hino consta em artigo de autoria de Marcílio Franca e de Alessandra Franca, intitulado “Os Epigramas da Haia – Direito Internacional e Poesia em Epitácio Pessoa e Hugo Grotius”, que veio a ser publicado no livro Pensar, ensinar e fazer Justiça – Estudos em homenagem a Paulo Ferreira da Cunha, com organização
de Jean Lauand e João Relvão Caetano (Santo André: Kapenke, 2020, volume 2, p. 267-274). A tradução foi publicada com algumas notas explicativas, nas páginas 272-273.
Em seu artigo, Marcílio e Alessandra fazem um paralelo entre dois internacionalistas famosos, o paraibano Epitácio Pessoa, que nos representou em Haia, e Hugo Grotius, no dizer deles, um Foundig Fathers (p. 271) daquela ciência. Embora distanciados no tempo, com um espaço de 300 anos entre eles, ambos têm em comum a ligação com o Direito Internacional e a criação poética, o holandês aparecendo com uma obra sólida e variada, nessa área – “religiosa, heroica, quotidiana, erótica, didática, humorística, dramática etc” (p. 271), mas ainda sem tradução em nossa língua.
Depois de reproduzir alguns textos epigramáticos, de Epitácio Pessoa, escritos em francês e traduzidos por eles, os articulistas se manifestam a respeito dos dois grandes homens do Direito Internacional:
“Liberalismo, legalidade e paz constituíam a base dos ideários internacionalistas de Grotius e Pessoa, ambos influenciados pelas guerras e pelos tratados de paz que acompanharam de perto – a Guerra dos Trinta Anos (1616-1648) e os Tratados de Paz de Westphalia (1648), para o primeiro, e a Grande Guerra (1914-1918) e o Tratado de Versalhes (1919), para o segundo. Dada essa circunstância, vale a pena reproduzir, pela primeira vez, para o leitor lusófono, o poema-prece “À Paz”, de Hugo Grotius, escrito em janeiro de 1608, e gentilmente traduzido pelo eminente Prof. Dr. Milton Marques Junior.”
p. 272
Agradecendo aos amigos, a generosidade de tratamento a mim dirigida, transcrevo abaixo o texto em latim, seguido de nossa tradução, com os comentários cabíveis:
AD PACEMMitis filia maximi parentis,
Cuius iam Batavi cruenta septem
Per quinquennia nesciere nomen,
Da nobis veniam, quod ille alumnus
Bellorum populus, sati sub armis5
Et quorum clypei fuere cunae,
Externis toties dolis petiti,
Quorum non meminisse tam suave est,
Quantum oblivia sunt periculosa,
Securique diu timore solo,10
Quam mens tota cupit petitque, nondum
Audemus tamen invocare Pacem.
At tu semina disparata mundi
Certo foedere quae vetas perire,
Belgis redde fidem, soloque fruges15
Cives moenibus amnibusque merces:
Aut nondum bona tanta si meremur,
Illos vincere da benigna, bello
Qui belli sibi quaesiere finem;
Illos da Dea pessime perire,20
Qui per foedera quaesiere bellum.
À PAZTerna filha do máximo pai,
Cujo nome já os Batavos ignoraram
Por sete cruentos quinquênios,
Perdoai-nos, pois aquele povo,
Nutrido de guerras, engendrados sob armas5
E dos quais os escudos foram berços,
Atingidos tantas vezes por dolos externos,
Dos quais não ter lembrado e tão suave,
Quanto são perigosos os esquecimentos,
E, por muito tempo, seguros só pelo temor,10
Ó Paz, que, embora a toda a mente deseje
E busque alcançar, ainda não ousamos invocar.
Mas tu que as sementes dispersas do mundo
Por pacto certo proíbes perecer,
Devolve a confiança aos Belgas, e ao solo os frutos15
Os cidadãos às cidades e as mercadorias aos rios:
Ou se ainda não merecemos tantas coisas boas,
Concede aqueles vencer de modo benigno,
Os que, para si, buscaram pela guerra o fim da guerra;
Concede, Deusa, aqueles perecer da pior maneira,20
Os que, por alianças, buscaram a guerra.
A deusa da Paz foi uma divindade venerada apenas em Roma. Otávio Augusto César ergueu-lhe um templo no Campo de Marte, em 13 a. C., denominado Ara Pacis, o Altar da Paz, atualmente, estabelecido na Via Flamínia, cuja lateral, onde se encontra insculpido no mármore a Res Gestae, o testamento político de Augusto, dá para a frente do seu Mausoléu, na Via di Ripetta. Posteriormente, o imperador Vespasiano (69-79 d. C.) e seu filho, Domiciano (81-96 d. C.), construíram o Fórum da Paz, na Via dos Fóruns Imperiais, logo após o Fórum de Nerva, cujas ruínas ainda podem ser vistas hoje.
Ruínas do Templo da Paz, no Fórum RomanoChabe / Wikimedia
Com relação à deusa da Paz, não existe qualquer genealogia ligando-a a alguma divindade, muito menos a Júpiter, embora o primeiro verso do hino — Mitis filia maximi parentis (Terna filha do máximo pai) — seja uma referência ao maior dos deuses olímpicos, consagrado como Juppiter Optimus Maximus, em Roma, cujo templo foi erigido no Capitólio. Quem visita o Museu do Capitólio ainda vê ruínas desse templo.
Reconstituição em maquete (no alto) e ruínas do Templo de Júpiter no Museu do Capitólio, Roma ▪ Imagens: Wikimedia
Na construção do hino, chamamos a atenção dos leitores para dois fatos, que julgamos interessantes. O primeiro é a escolha do neutro plural para o verso 9 — Quantum oblivia sunt periculosa (Quanto são perigosos os esquecimentos). Como o metro utilizado por Grotius é o hendecassílabo faleciano (verso de 5 pés, cuja descrição obedece à seguinte estrutura: ‐/‐ ᴗ ᴗ/‐ ᴗ/‐ ᴗ/‐ ᴗ/. O primeiro pé é um espondeu, o segundo um dáctilo e os três restantes são troqueus), se ele tivesse utilizado o singular — Quantum oblivium est periculosum —,
Monumento a Hugo Grotius em Delft, Países Baixos / Franciscus Stracké, 1886 ▪ Wikimedia
o verso não ficaria na mesma medida, ocasionando o famoso “verso de pé quebrado”. A estrutura neutra plural utilizada por Grotius é o que se chama de metri gratia, por graça do metro, visto que é indiferente o verso ser traduzido pelo singular ou pelo plural.
O segundo fato é o paralelismo entre os versos 18 e 20, em que a voz poética que dirige a prece à Paz deseja a vitória dos que buscaram a guerra como um modo de pôr um fim nela, daí o pedido de vencer de modo benigno, e ser a morte, a pior possível, aos que buscaram a guerra por alianças: Quem buscou a guerra para o fim da guerra, concede a estes vencer do modo benigno. Quem buscou a guerra por alianças, concede a estes perecer da pior maneira possível.
Do mesmo modo, o paralelismo entre os versos 18 e 20 deveria continuar, se levarmos em consideração os advérbios, oriundos dos adjetivos benignus e pessimus. A rigor, ou, nos dois versos, os termos devem ser benigna e pessima ou os dois são benigne e pessime. A caligrafia de Grotius, nos seus manuscritos, não é clara. No entanto, acatamos a transcrição canônica, utilizada por Marcílio e Alessandra, conforme o que está assentado,
Horácio, escultura da artista chilena Rebeca MatteC.Q. Valdés
segundo eles afirmam (p. 272, nota 477), em EYFFINGER, Arthur. Outlines of Hugo Grotius' Poetry (Grotiana, v. 3, p. 72-75).
Finalmente, tomando como parâmetro o hino de Grotius, gostaríamos de fazer um breve paralelo com o Carmen Saeculare de Horácio, dedicado a Augusto e saudando a Pax Augusta. Nesse hino do final do século I a. C., Horácio prima pela paz como promotora da abundância. Diferentemente, Grotius pressupõe uma Paz de dupla face: a benigna aos que confrontam o inimigo buscando, com a guerra, o fim da guerra, e a Paz vingativa aos que buscam a guerra com alianças, como pode se supor, espúrias.
Horácio utiliza-se de um coro de jovens — moças e rapazes —, que são os mais afetados pelas guerras, sobretudo os rapazes, os primeiros a ser chamados ao campo de batalha, e exalta a Paz. Para que isso aconteça é preciso que Apolo e Diana, duas das divindades invocadas no seu Canto Secular, abandonem a sua beligerância. Apolo deve deixar de lado suas armas e, pacífico e gentil (mitis placidusque, verso 33), ouvir o coro dos rapazes suplicantes (súplices audi pueros, verso 34), enquanto Diana bicorne deve ouvir o coro das moças (audi puellas, verso 35-6), numa atitude de fomentação da paz e, consequentemente, da abundância.
Bustos de Apolo e DianaCapitolium Art
Embora, como sabemos, a Paz seja uma divindade sem genealogia, Horácio a coloca no mesmo nível de importância da Confiança (Fides), da Honra (Honor), da Pudicícia (Pudor) e da Virtude (Virtus), não só qualidades divinas, mas sobretudo sustentáculos da sociedade romana. Juntamente com elas, a Paz (Pax) fará transbordar o chifre da feliz Abundância (Copia), o que, na sua concepção, caracteriza o governo de Augusto. É com clareza que Horácio expressa, estrofe sáfica abaixo, do Canto Secular, ser a Paz uma divindade especial para a construção de uma sociedade próspera (Carmen Saeculare, versos 57-60):
Já a Confiança e a Paz e a Honra e o Pudor
antigo e a Virtude negligenciada retornar
ousam e surge, com o chifre pleno,
a feliz Abundância.
A concepção horaciana não só diverge daquela apresentada por Hugo Grotius. Ela reafirma o propósito de Ésquilo, em Eumênidaes, drama final da trilogia Oresteia (Agamêmnon, Coéforas e Eumênides), peça do século V (a. C.), que apregoa só a Paz ser capaz de fazer prosperar os Estados, trazendo a abundância e a proteção da juventude. Isso se dá quando as Erínias, as deusas furiosas infernais, convencidas da necessidade de deixar de lado as perseguições, se transformam nas Eumênides, as deusas do bom vigor.
Orestes atormentado pelas Erínias (Fúrias)William-Adolphe Bouguereau, 1862
Ao que tudo indica, passados já tantos séculos, o mundo não soube seguir a lição de Ésquilo, preferindo seguir a de Grotius, ainda que os principais responsáveis pelos vários conflitos e pelo fomento às dissensões sociais, não tenham lido um ou outro. O fato é que, sendo os instintos, como força natural, mais fortes para agir, a maioria se deixa levar por eles, apostando na vingança, na perseguição, abandonando a razão, cujo custo social é bem menor, mas exige abrir mão da ganância, da ambição e do poder.
Já está mais do que na hora de a humanidade escolher as Eumênides, em lugar de viver no culto às Erínias. As sociedades não se desenvolverão com a busca da vingança, mas com a busca da paz, porque só a Paz gera a Justiça.