A Proposição e a Invocação, duas das partes estruturantes da narrativa épica, constituem o Proêmio, literalmente, “o que vem antes” (προοίμιον), por vir sempre no início do poema, como se pode observar
nos épicos do mundo greco-latino, Ilíada, Odisseia e Eneida. No caso de Os Lusíadas, o Proêmio ganha mais um elemento constitutivo, denominado Dedicatória.
Neste texto, trataremos da Invocação que, no poema camoniano, integra as estrofes 4 e 5 do Canto I. Para um melhor acompanhamento da análise, transcrevemos as duas estrofes referidas:
4.
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene.
5.
Dai-me ũa fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.
Sem deixar a tradição clássica, Camões inova, ao dirigir a Invocação principal não às Musas olímpicas, mas às Ninfas, divindades menores, habitantes do rio Tejo – as Tágides –, cujo nome, em latim, é Tagus. Digo “principal”, por ser aquela que abre o poema. É praxe, na épica, que a Invocação possa aparecer mais de uma vez e, se for necessário, endereçadas a divindades diferentes. Virgílio, no Livro I da Eneida, utiliza-se do termo Musa (verso 8), numa referência, por metonímia, a Calíope, a Musa do poema épico e que puxa o coro das Musas, de acordo com a Teogonia de Hesíodo (versos 77-79). Já no Livro VII, ao fazer a quarta Invocação do poema, Virgílio refere-se às “deusas do Hélicon” (verso 640), na introdução do catálogo dos heróis latinos, que irão se opor, sob o comando de Turno, rei dos Rútulos, aos Troianos. Trata-se de uma alusão ao Hélicon, monte da Beócia, também tomado como habitação das divindades olímpicas.
Em Os Lusíadas, Camões utiliza-se desse recurso várias vezes. Depois da referência às Tágides, Calíope é invocada no Canto III (verso 1). No Canto VII, entre as estrofes 78 e 85, as Invocações se sucedem, às Tágides, às Camenas e às Ninfas do Mondego, rio de Coimbra, onde o poeta viveu e estudou. Ainda nesse Canto, na estrofe 87, Apolo e as Musas são invocados. A intenção é determinar uma pausa na narrativa, trazendo uma nova Proposição, de modo a relembrar ao leitor a finalidade do poema: louvar os feitos daqueles que se tornaram imortais por suas “obras valerosas” (estrofe 2, verso 5).
No final do poema, no Canto X, Calíope é trazida de volta, para introduzir a fantástica Máquina do Mundo, a ser apresentada por Thétis, numa Invocação com referências à Odisseia (Demodoco e Feaces, Canto VIII) e à Eneida (Iopas e Cartago, Livro I) que define, com mais precisão, o que é um poema épico (estrofe 8), continuando na bela estrofe 9 o pedido de alento para o término do poema (“A Fortuna me faz o engenho frio”), tendo em vista a aproximação da morte (“Os desgostos me vão levando ao rio/Do negro esquecimento e eterno sono”):
Matéria é de coturno, e não de soco,
A que a Ninfa aprendeu no imenso lago;
Qual Iopas não soube, ou Demodoco,
Entre os Feaces um, outro em Cartago.
Aqui, minha Calíope, te invoco
Neste trabalho extremo, por que em pago
Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo
O gosto de escrever, que vou perdendo.
Vão os anos descendo, e já do Estio
Há pouco que passar até o Outono;
A Fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto nem me abono;
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono.
Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha
Das Musas, co que quero à nação minha!
O poema épico é “matéria de coturno, e não de soco”, termos que servem a definir a grandiloquência da épica, em contraponto ao nível considerado “chão” do poema cômico. Os atores da tragédia grega, como se sabe, se utilizavam do coturno, de modo a acompanhar com mais firmeza o ritmo do poema; ao mesmo tempo, revestiam o tema da gravidade que lhe era peculiar. Já na comédia, utilizava-se o soco, uma sandália rasteira e tosca, adequado à finalidade de provocar o riso. Lembremos que muitos dos 32 textos trágicos que chegaram até nós são oriundos da épica, o primeiro dos gêneros grandiloquentes.
Retornemos à Invocação principal. A elevação do herói Vasco da Gama e da glória lusitana acima da tradição histórica e poética do mundo greco-latino é reafirmada com outro valor que “se alevanta”, ao preferir as Tágides às Musas olímpicas. Diante da força inspiratória, que produza o “som alto e sublimado” e o “estilo grandíloquo e corrente”, as águas do Tejo deverão emparelhar-se às da fonte de Hipocrene.
Hipocrene é, literalmente, a “fonte do cavalo”, em grego (ἵππος, cavalo; κρήνη, fonte). Segundo a mitologia, o cavalo Pégaso, bate com os cascos na pedra da base da Hélicon, a montanha das Musas, como elegeu Hesíodo (Teogonia, versos 1-8), e de lá jorra a água da fonte, que inspira os poetas. Em Os Lusíadas, diante do resultado obtido (“matéria a nunca ouvido canto”, Canto I, estrofe 15, verso 4), resta a Apolo Febo, divindade da poesia e da música, que tem as Musas em seu cortejo (Ilíada, Canto I, versos 601-604), equiparar o poder poético das duas águas. Fica implícito que um rio caudaloso, como o Tejo, poderá inspirar mais do que uma fonte, ainda que seja uma fonte oriunda de uma montanha divina.
A estrofe 5 de Os Lusíadas continua a conceituação do que é a épica. Agora, não apenas através de adjetivos que corroboram aqueles presentes na estrofe anterior – “som alto e sublimado, estilo grandíloquo e corrente” (versos 5-6, itálicos nossos) –, mas continuando a estabelecer diferenças entre os gêneros épico e lírico. O Tejo já fora celebrado por Camões na poesia lírica, referida como “verso humilde” (estrofe 4, verso 3). Na estrofe 5, a lírica novamente aparece, em contraponto à épica. Se a lírica, sobretudo a bucólica, é caracterizada pela “agreste avena ou frauta ruda” (verso 2) – os instrumentos de sopro suave –, a épica, tendo como característica “a fúria grande e sonorosa” (verso 1), necessita de um instrumento de sopro metálico como a “tuba canora e belicosa” (verso 3), utilizada pelos romanos, no campo de batalha, para a excitação própria da guerra,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda (verso 4).
Assim como Ovídio define a poesia elegíaca, construindo a diferença entre o verso hexâmetro e o pentâmetro, sendo este o segundo verso do dístico elegíaco, aquele o verso do poema épico, Camões estabelece as diferenças entre o épico e o lírico, e entre o épico e o cômico, mais adiante, ao chamar, como já vimos, a épica de “matéria de coturno, não de soco” (Ovídio, Elegia I, Os Amores, Livro I, versos 1-4, em tradução nossa):Arma graui numero uiolentaque bella parabam
edere, materia conueniente modis.
par erat inferior uersus – risisse Cupido
dicitur atque unum surripuisse pedem.
Com pé grave preparava expor as armas e as guerras
violentas; com matéria harmônica às medidas.
O verso inferior era igual (ao superior); dizem Cupido
ter rido e além disso (dizem) ter furtado um pé.
Se Ovídio atribuía a Cupido, o menino deus do Amor erótico, o fato de ter roubado um pé do hexâmetro, ocasionando, assim, a criação do pentâmetro, Camões, em sua incursão na metalinguagem, vê como apropriado o canto de fúria belicosa, a “matéria harmônica às medidas”, no dizer de Ovídio, tão agradável a Marte, a divindade latina da guerra.
Diga-se que a Invocação, na poesia arcaica grega, com a épica de Homero e de Hesíodo, tem um caráter associado às práticas sagradas de então, quando não se dissociava a vida civil da vida religiosa. As Musas, concedendo a inspiração ao pastor, em plena atividade do pastoreio, substituem o seu cajado por um ramo vicejante de loureiro, a árvore dedicada a Apolo, fazendo-o, a um só tempo, pastor e vate, pois aquele que recebe os dons das filhas de Zeus, conhecerão o passado, o presente e o futuro (Teogonia, versos 34).
À época de Camões, a Invocação já é nitidamente um recurso retórico, para se falar de inspiração. A Invocação de Os Lusíadas, contudo, não se restringe à retórica. Camões a utiliza como uma maneira de elevar as Musas domésticas, as Tágides, além de se servir da metalinguagem para estabelecer a diferença do que já se conhecia como sua marca poética: a poesia lírica, composta de sonetos, sextinas, odes, églogas, oitavas, elegias e redondilhas.
Agora, com a épica, a esperança do poeta é a fama deixar de ser doméstica e seu canto se universalizar:
Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.